Há
um ano, precisamente no dia 12 de Janeiro, num hospital de Madrid,
morreu Ángel González. Hospitalizado eu próprio em Lanzarote por
causa de uma doença similar à que o levou, atendi a chamada
telefónica de um jornal que queria publicar umas palavras sobre a
infausta notícia. Em termos que o meu interlocutor mal deve ter
ouvido, tão intensa era a minha emoção, disse que havia perdido um
amigo que era, ao mesmo tempo, um dos maiores poetas de Espanha. Em
sua lembrança deixo hoje aqui um dos seus poemas, que traduzo do
espanhol.
Assim
parece
Acusado
pelos críticos literários de realista,
os
meus parentes, em troca, atribuem-me
o
defeito contrário;
afirmam
que não tenho
sentido
algum da realidade.
Sou
para eles, sem dúvida, um funesto espectáculo:
analistas
de textos, parentes da província,
pelos
vistos, a todos defraudei
que
lhe vamos fazer!
Citarei
alguns casos:
Certas
tias devotas não se podem conter,
e
choram ao olhar-me.
Outras
muito mais tímidas fazem-me arroz-doce,
como
quando eu era pequeno,
e
sorriem contritas, e dizem-me:
que
alto,
se
o teu pai te visse…,
e
ficam suspensas, sem saber que mais dizer.
No
entanto, não ignoro
que
os seus gestos ambíguos
dissimulam
uma
sincera compaixão irremediável
que
brillha humidamente nos seus olhares
e
nos seus piedosos dentes postiços de coelho.
E
não são só elas.
De
noite
a
minha velha tia Clotilde regressa da tumba
para
agitar diante da minha cara os dedos como [sarmentos
e
repetir em tom admonitório:
De
beleza não se come! Que julgas que é a vida?
Por
sua parte,
a
minha falecida mãe, com voz delgada e triste,
augura
para a minha existência um lamentável final:
manicómios,
asilos, calvície, blenorragia.
Eu
não sei que dizer-lhes, e elas
regressam
ao seu silêncio.
O
mesmo, igual que então.
Como
quando era pequeno.
Parece
que
a morte não chegou a passar por nós.
José Saramago, in O caderno
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