quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Os "icebergs"

Eu só sentia, mas sentia intensamente uma tristeza: era você não estar ali; quanto mais eu via e achava lindo mais doía você estar tão longe de Copacabana naquele momento imortal. Os icebergs passavam; uns grandes, outros pequenos, um deles imenso, eles passavam na água azul, brilhando ao sol, ao largo de Copacabana, vindos do Sul.
Que festa! O domingo pleno cintilava de cores; todos riam; moças lindas, seminuas, gritavam de puro prazer saudando os icebergs.
Um deles então pareceu tomar o rumo da terra; sim, ele vinha vindo, cada vez maior, belo, brilhante, ele vinha vindo para a praia, e nós aplaudíamos o seu gesto de cortesia internacional — viva o Brasil! Veio até bem perto para se deixar ver, movia-se imponente, lentamente, fez uma curva graciosa, inclinou-se de leve, imenso, translúcido, como a nos cumprimentar, e foi em demanda dos outros. Por um instante prendemos a respiração; depois todos gritamos: viva! viva! — todos, ao longo de toda a praia, vestidos de mil cores, todos gritamos — viva! E nossa alegria era tanta, e se juntava tanta alegria com alegria, que nasceu um arco-íris sobre o mar; foi um delírio! Mas dentro de mim doía agudamente você não estar, você que merecia tanto ver, merecia tanto!
Então alguém disse que logicamente os icebergs tinham vindo da região antártica, esse “logicamente” obscureceu as coisas e nos deprimiu; ficamos todos contrafeitos, tristes demais para protestar, e então me veio de subido uma velha obsessão de infância, um desgosto d'alma, me lembro tanto, eu era quase um menino, alguém me propôs uma charada novíssima, era assim: “grita pelo fato de ser possuidor de cerveja, duas e duas”, a solução era “brama por ter”, Brahma Porter; foi naturalmente a palavra “antártica” a culpada dessa lembrança antipática; ah, como odiei o homem que me propôs aquela “charada e ficou todo vaidoso, se achando muito inteligente pela charada que tinha feito, era seu grande feito na vida, a todos a vida inteira propôs aquela charada, a sua obra-prima, o imbecil, hoje morto. Com a minha raiva retrospectiva é claro que não havia mais nenhum iceberg, o mar estava pálido e chato, escurecendo, e as pessoas se retiravam, dizendo cada uma — tenho muito que fazer”.
Era tão desagradável que achei excelente você não estar, suspirei, pensando: “ainda bem”. E então você me sorriu, você estava agora perto de mim, tão linda, a compreender tudo, e me agradecia tanto bem-querer.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

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