Eu
só sentia, mas sentia intensamente uma tristeza: era você não
estar ali; quanto mais eu via e achava lindo mais doía você estar
tão longe de Copacabana naquele momento imortal. Os icebergs
passavam; uns grandes, outros pequenos, um deles imenso, eles
passavam na água azul, brilhando ao sol, ao largo de Copacabana,
vindos do Sul.
Que
festa! O domingo pleno cintilava de cores; todos riam; moças lindas,
seminuas, gritavam de puro prazer saudando os icebergs.
Um
deles então pareceu tomar o rumo da terra; sim, ele vinha vindo,
cada vez maior, belo, brilhante, ele vinha vindo para a praia, e nós
aplaudíamos o seu gesto de cortesia internacional — viva o Brasil!
Veio até bem perto para se deixar ver, movia-se imponente,
lentamente, fez uma curva graciosa, inclinou-se de leve, imenso,
translúcido, como a nos cumprimentar, e foi em demanda dos outros.
Por um instante prendemos a respiração; depois todos gritamos:
viva! viva! — todos, ao longo de toda a praia, vestidos de mil
cores, todos gritamos — viva! E nossa alegria era tanta, e se
juntava tanta alegria com alegria, que nasceu um arco-íris sobre o
mar; foi um delírio! Mas dentro de mim doía agudamente você não
estar, você que merecia tanto ver, merecia tanto!
Então
alguém disse que logicamente os icebergs tinham vindo da região
antártica, esse “logicamente” obscureceu as coisas e nos
deprimiu; ficamos todos contrafeitos, tristes demais para protestar,
e então me veio de subido uma velha obsessão de infância, um
desgosto d'alma, me lembro tanto, eu era quase um menino, alguém me
propôs uma charada novíssima, era assim: “grita pelo fato de ser
possuidor de cerveja, duas e duas”, a solução era “brama por
ter”, Brahma Porter; foi naturalmente a palavra “antártica” a
culpada dessa lembrança antipática; ah, como odiei o homem que me
propôs aquela “charada e ficou todo vaidoso, se achando muito
inteligente pela charada que tinha feito, era seu grande feito na
vida, a todos a vida inteira propôs aquela charada, a sua
obra-prima, o imbecil, hoje morto. Com a minha raiva retrospectiva é
claro que não havia mais nenhum iceberg, o mar estava pálido e
chato, escurecendo, e as pessoas se retiravam, dizendo cada uma —
tenho muito que fazer”.
Era
tão desagradável que achei excelente você não estar, suspirei,
pensando: “ainda bem”. E então você me sorriu, você estava
agora perto de mim, tão linda, a compreender tudo, e me agradecia
tanto bem-querer.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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