segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 10

De volta à insanidade, de volta ao lugar da devastação.
Na minha quarta vida, Franklin Phearson foi ao hospital para interromper o uso de uma série de medicamentos, não para o meu bem, mas para o dele. Era dele a voz que pairava sobre mim e dizia, enquanto eu estava deitado, imóvel, na cama do hospital:
O que vocês têm dado a este homem? Vocês disseram que ele ficaria lúcido.
Era dele a mão que firmava a maca enquanto me passavam pela porta da frente e me colocavam na ambulância não identificada que me aguardava lá fora.
Eram dele as solas duras nos sapatos de couro que ressoavam nos degraus de mármore do grande hotel, vazio pela baixa temporada, os funcionários mandados para casa, e onde me depositaram numa cama de plumas coberta com uma manta bordô, para sonhar e vomitar até atingir algum tipo de salvação.
Interromper qualquer droga é desagradável; com antipsicóticos, então, é uma bênção, às vezes boa, às vezes ruim. Com certeza eu desejei a morte, e eles me amarraram para evitar um suicídio. Com certeza eu sabia que tudo estava perdido e eu estava nesse meio, eu sabia que estava amaldiçoado e que não havia para onde fugir, e ansiava por perder a cabeça completamente, arrancar os olhos e enlouquecer de vez. E com certeza eu não me lembro, mesmo agora, mesmo com a minha memória, dos piores momentos, mas me lembro deles como se tivessem acontecido com outro homem. E com certeza eu sei que tenho a capacidade de voltar a ser tudo aquilo, de sentir tudo de novo, e sei que, embora a porta esteja trancada agora, existe um poço negro sem fundo nas entranhas da minha alma. Dizem que a mente não consegue se lembrar da dor; mas eu digo que isso pouco importa, pois, mesmo que a sensação física se perca, a lembrança do terror que a acompanha é perfeita. Não quero morrer neste momento, mas as circunstâncias desta escrita vão ditar meu caminho. Eu me lembro de ter querido morrer, e que o sentimento foi real.
Não houve um momento de lucidez, um momento em que acordei da escuridão e me vi curado naquele lugar. Em vez disso, foi um arrastar de pés lento rumo à compreensão, algumas poucas horas de conciliação seguidas de sono, seguidas de um despertar que permanecia desperto por um pouco mais de tempo. Aos poucos fui recuperando a dignidade humana: roupas limpas, minhas mãos enfim livres, as cicatrizes em volta dos meus pulsos e tornozelos limpas de sangue ressecado. Recebi permissão para me alimentar sozinho, primeiro na cama e sob supervisão, depois na janela e sob supervisão, depois no andar inferior e sob supervisão, e por fim no pátio do outro lado de um campo de croqué e de frente para um jardim verde bem-cuidado, onde o supervisor tentava fingir que era apenas um amigo. Recebi permissão para fazer a higiene no banheiro, mas sem objetos pontiagudos no cômodo e com guardas do lado de fora, mas eu não me importava e me sentava debaixo do chuveiro até que a pele parecesse uma uva-passa e o aquecedor no andar de cima começasse a tremer em agonia. Uma barba desgrenhada começara a crescer em meu queixo, e chamaram um barbeiro que estalava a língua, fazia movimentos bruscos, borrifava óleos italianos e disse num tom de voz estridente, usado para falar com crianças,
Seu rosto é sua riqueza! Não gaste tudo de uma vez!
Franklin Phearson estivera discretamente presente durante todo o processo, e por seu ar de indiferença só me restava imaginar que estivesse no comando. Sentou-se a duas mesas de distância enquanto eu comia, estava perto do fim do corredor quando deixei o banheiro e, concluí, era o responsável pelo espelho bidirecional no meu quarto, que permitia uma visão ininterrupta do cômodo e só se revelava quando as câmeras de segurança ajustavam o foco e emitiam um leve zumbido.
Então, durante um café da manhã, ele se sentou comigo, não mais distante, e disse,
Você parece bem melhor.
Bebi o chá com cuidado, do mesmo jeito que bebia tudo o mais que me serviam naquele lugar, dando pequenos goles para ver se detectava toxinas, e respondi:
Estou me sentindo bem melhor. Obrigado.
Talvez você se alegre em saber que o doutor Abel foi demitido.
Ele disse isso de forma tão casual, com o jornal no colo, os olhos percorrendo as pistas das palavras-cruzadas, que eu não entendi exatamente o que ele acabara de contar. Mas ele havia falado, e eu disse outra vez, como o mesmo tom neutro que eu usara quando criança com meu pai,
Obrigado.
Eu bato palmas para as intenções do doutor Abel, mas os métodos dele eram insanos. Gostaria de ver sua esposa?
Contei mentalmente até dez antes de me atrever a responder.
Sim. Muito.
Ela está consternada. Não sabe do seu paradeiro, acha que fugiu. Pode escrever para ela. Para tranquilizá-la.
Seria bom.
Ela vai receber uma compensação financeira. Talvez haja um julgamento para o doutor Abel. Talvez uma petição, quem sabe?
Só quero revê-la.
Em breve. Nosso objetivo é tomar o mínimo do seu tempo.
Quem é você?
Ao ouvir minha pergunta, ele jogou o jornal de lado com um impulso repentino, como se estivesse se contendo ao esperar essa pergunta.
Franklin Phearson, senhor — respondeu, estendendo a mão lisa e rosada. — É uma honra finalmente conhecê-lo, doutor August.
Olhei para a mão, mas não a apertei. Phearson a recuou com um leve abano, como se sua intenção nunca tivesse sido estendê-la, e, sim, fazer um exercício de relaxamento muscular. Ele pegou o jornal e o abriu nas notícias da região, que prometiam greve. Deslizei a colher na superfície do cereal e observei o leite se agitar no fundo.
Então, você sabe o futuro — continuou ele por fim.
Com cuidado, pousei a colher no lado da tigela, limpei os lábios, cruzei as mãos e me recostei na cadeira.
Ele olhava fixo para o jornal, e não para mim.
Não. Foi um surto psicótico.
Que surto.
Eu estava doente. Preciso de ajuda.
É — entoou, folheando as páginas do jornal com força, mexendo o pulso de repente. — Isso é bo-ba-gem.
Ele gostou tanto de dizer a palavra que esboçou uma tentativa de sorriso nos cantos da boca, e pareceu pensar em repeti-la só para saborear a experiência.
Quem é você?
Franklin Pearson, senhor. Já disse.
E está aqui em nome de quem?
Não posso estar aqui em meu próprio nome?
Mas não está.
Estou aqui em nome de algumas agências, organizações, nações, partidos... como preferir chamar. Os mocinhos, basicamente. E você quer ajudar os mocinhos, não quer?
E como ajudaria, se pudesse?
Como eu disse, doutor August, o senhor sabe o futuro.
Um silêncio passou roçando entre nós como uma teia de aranha numa casa sombria. Ele parou de fingir que estava lendo o jornal, e eu passei a estudar seu rosto descaradamente.
Há algumas questões óbvias que eu preciso perguntar — comentei, por fim. — Suspeito que já sei as respostas, mas, já que estamos sendo tão francos um com o outro...
É claro. Nosso relacionamento deve se basear na honestidade.
Se eu tentasse ir embora, teria permissão?
Phearson sorriu.
Bem, é uma pergunta interessante. Permita que eu responda com outra pergunta: se você quisesse ir embora, para onde acha que poderia ir?
Passei a língua no interior da boca e senti cicatrizes que estavam fechando e cortes recém-abertos na parte interna da bochecha e nos lábios. Então:
Se eu tivesse esse conhecimento, e eu não tenho, que uso você faria dele?
Isso depende do que seja. Se você me disser que o Ocidente vai sair vitorioso deste conflito, que o bem vence e o mal tomba sob a espada do justo, então, porra, vou ser o primeiro a lhe pagar uma garrafa de champanhe e um banquete na brasserie que preferir. Mas se você souber as datas de massacres, de guerras e batalhas, de assassinatos e crimes, bem, senhor, não vou mentir, talvez a gente precise conversar um pouco mais.
Você parece muito disposto a acreditar que eu sei alguma coisa do futuro, embora todos, incluindo a minha esposa, acreditem que tudo não passa de um delírio.
Ele suspirou, dobrou o jornal e o pôs de lado, como se tivesse desistido de fingir.
Doutor August, deixe-me perguntar uma coisa, já que estamos nesse espírito de uma conversa livre e franca — retrucou ele, inclinando-se na mesa, com as mãos cruzadas sob o queixo. — Em alguma das suas viagens, das suas muitas, muitas viagens, você já ouviu falar em Clube Cronus?
Não — respondi sinceramente. — Nunca ouvi. O que é?
Um mito. Uma dessas bizarras notas de rodapé acadêmicas que vão ao fim de um texto para animar uma passagem especialmente chata, um conto de fadas do tipo “por acaso, alguns dizem isso, mas não é esquisito?”, enfiado em letras minúsculas no fim de um tomo nunca lido.
E o que dizem essas letras minúsculas?
Dizem... — respondeu ele, bufando com a resignação típica de quem está cansado de contar histórias. — Dizem que há certas pessoas vivendo entre nós que não morrem. Dizem que elas nascem, vivem, morrem e voltam a viver a mesma vida, mil vezes. E, sendo infinitamente velhas e sábias, elas se reúnem às vezes, ninguém sabe onde, e fazem... Bem, o que eles fazem varia de acordo com o texto. Alguns dizem que eles se vestem com túnicas brancas e se encontram para reuniões conspiratórias, outros dizem que fazem orgias para criar a geração seguinte de pessoas desse tipo. Não acredito nessas hipóteses, porque o Klu Klux Klan prejudicou a moda da túnica branca no Sul, e porque todo mundo aposta nas orgias.
E isso é o Clube Cronus?
Sim, senhor — respondeu Phearson, radiante. — Como os Illuminati sem o glamour, ou os maçons sem as abotoaduras, uma sociedade que se autoperpetua através do tempo para o infinito e o atemporal. Precisei investigar isso porque alguém disse que os russos faziam parte, e pelo que descobri é uma fantasia criada por alguém bem entediado, mas então... então aparece alguém como você, doutor August, e joga todo o meu trabalho no lixo.
E você acha que pode ser verdade só porque os meus delírios são iguais à história que uma velha contou?
Meu Deus, não! De jeito nenhum! Acho que é verdade porque os seus delírios correspondem à realidade. Então — disse ele, insinuando um leve sorriso ao se acomodar na cadeira —, cá estamos.
Tempo não é sabedoria; sabedoria não é inteligência. Ainda sou capaz de me sentir oprimido; Phearson me oprimia.
Posso ter um tempo para pensar a respeito? — perguntei.
Claro. Pense nisso com a cabeça no travesseiro, doutor August. Responda amanhã de manhã. Você joga croqué?
Não.
Lá fora tem um campo lindo, se quiser aprender.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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