quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Apesar de você | Chico Buarque, 1970


Em 1970, depois de um autoexílio de dois anos na Itália, Chico Buarque de Hollanda (1944) voltou ao Brasil para enfrentar o clima de terror da ditadura e a marcação implacável da Censura, que exigia aprovação das músicas antes que fossem gravadas.
Quando os advogados da gravadora Philips mandaram aquela música para o Departamento de Censura Federal (que, em 1972, seria formalizado como Divisão de Censura de Diversões Públicas, DCDP), então responsável pela triagem, não tinham a menor expectativa de liberação. Afinal, tema e autor batiam de frente com os fundamentos do regime vigente. Mas o censor ou era um idiota ou um patriota, e “Apesar de você” foi liberada sem cortes e gravada imediatamente.
Assim que as rádios começaram a tocar, virou um sucesso instantâneo em todo o Brasil. Ninguém acreditava no que ouvia: um samba extrovertido, alegre e debochado, cantando o que tanta gente queria dizer e ouvir, um recado direto à ditadura, abusado e contundente. Grande samba que lavou a nossa alma.
Em poucos dias o Brasil inteiro estava cantando “Apesar de você” como um hino da resistência, como um desafio e uma esperança, a primeira que experimentávamos desde o AI-5, decretado em dezembro de 1968. Mas a alegria durou pouco: logo os órgãos da repressão perceberam o tamanho da encrenca e tomaram providências. A música foi sumariamente proibida, e os discos, confiscados nas lojas. A fábrica da Philips foi invadida pelo Exército e todos os discos com a canção maldita foram apreendidos e destruídos.
Tarde demais: mais de 100 mil discos já tinham sido vendidos e, mesmo sem tocar no rádio, a música circulava em cópias de cassete, e todo mundo já tinha aprendido e cantava, cada vez mais, com mais força, em qualquer lugar, a qualquer pretexto.
Chico, mais uma vez, foi intimado a dar explicações e, cínica e deslavadamente, disse a seu interrogador que o samba era para uma mulher muito mandona e autoritária. Drible de gênio da resistência democrática, tornou-se uma das canções mais cantadas do Brasil. E custou a Chico a vingança da Censura ultrajada, que ordenou que, a partir daí, toda e qualquer obra dele deveria ser interditada, mesmo que fosse uma cantiga de ninar, levando-o a criar o personagem Julinho da Adelaide para novos dribles na ditadura.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

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