Em
1970, depois de um autoexílio de dois anos na Itália, Chico Buarque
de Hollanda (1944) voltou ao Brasil para enfrentar o clima de terror
da ditadura e a marcação implacável da Censura, que exigia
aprovação das músicas antes que fossem gravadas.
Quando
os advogados da gravadora Philips mandaram aquela música para o
Departamento de Censura Federal (que, em 1972, seria formalizado como
Divisão de Censura de Diversões Públicas, DCDP), então
responsável pela triagem, não tinham a menor expectativa de
liberação. Afinal, tema e autor batiam de frente com os fundamentos
do regime vigente. Mas o censor ou era um idiota ou um patriota, e
“Apesar de você” foi liberada sem cortes e gravada
imediatamente.
Assim
que as rádios começaram a tocar, virou um sucesso instantâneo em
todo o Brasil. Ninguém acreditava no que ouvia: um samba
extrovertido, alegre e debochado, cantando o que tanta gente queria
dizer e ouvir, um recado direto à ditadura, abusado e contundente.
Grande samba que lavou a nossa alma.
Em
poucos dias o Brasil inteiro estava cantando “Apesar de você”
como um hino da resistência, como um desafio e uma esperança, a
primeira que experimentávamos desde o AI-5, decretado em dezembro de
1968. Mas a alegria durou pouco: logo os órgãos da repressão
perceberam o tamanho da encrenca e tomaram providências. A música
foi sumariamente proibida, e os discos, confiscados nas lojas. A
fábrica da Philips foi invadida pelo Exército e todos os discos com
a canção maldita foram apreendidos e destruídos.
Tarde
demais: mais de 100 mil discos já tinham sido vendidos e, mesmo sem
tocar no rádio, a música circulava em cópias de cassete, e todo
mundo já tinha aprendido e cantava, cada vez mais, com mais força,
em qualquer lugar, a qualquer pretexto.
Chico,
mais uma vez, foi intimado a dar explicações e, cínica e
deslavadamente, disse a seu interrogador que o samba era para uma
mulher muito mandona e autoritária. Drible de gênio da resistência
democrática, tornou-se uma das canções mais cantadas do Brasil. E
custou a Chico a vingança da Censura ultrajada, que ordenou que, a
partir daí, toda e qualquer obra dele deveria ser interditada, mesmo
que fosse uma cantiga de ninar, levando-o a criar o personagem
Julinho da Adelaide para novos dribles na ditadura.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
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