“Foi
tudo uma coincidência.”
“Coincidências
não existem.”
“Não
existem?”
“Vá
lá, existem. Mas não resultam em nada.”
“Um
amigo meu estava andando numa rua da cidade e um infeliz resolveu se
matar, pulou da janela de um prédio e caiu em cima do meu amigo que
passava. Os dois morreram. Não foi uma coincidência? Com resultado,
trágico, aliás.”
“E
você se chamar Francisco Nunes Correia é a importante coincidência
que levou você a querer escrever esse livro?”
“É.”
“O
nome do sujeito é Francisco Nunes Oria. Não é Nunes Correia. E ele
nasceu em mil quinhentos e tantos, na Espanha.”
“As
coincidências podem ser plenas ou parciais. Eu também sou médico,
como ele era. O tratado que ele escreveu é de 1572, o final do
número do meu telefone.”
“Que
coisa mais boba.”
“Coincidências
parciais são muitas vezes mais importantes do que as plenas. E não
se esqueça de que o tratado dele, como o que eu pretendo escrever, é
um guia prático e higiênico sobre o coito. E isso hoje em dia é
mais necessário do que em 1572.”
“E
você tem que usar o mesmo título: Tratado sobre o uso das
mulheres? Uso? Uso das mulheres?”
“Não
sejamos hipócritas. O que os homens fazem com as mulheres na cama
senão usá-las?”
“Então
você me usa?”
“Digamos
que eu me sirva de você, como se fosse uma iguaria. Ao praticar com
você a introductio penis intra vas, eu te como, como dizemos
muito apropriadamente em nossa bela língua.”
“Eu
também te como. Você devia chamar o seu livro de Tratado do uso
das mulheres e dos homens.
“Vocês
mulheres dizerem que nos comem é um emprego novo desse vocábulo.
Que digam. Mas a metáfora não é perfeita.”
“Quais
são os temas que você pretende abordar?”
“Assim
como o meu quase xará, farei inicialmente um levantamento dos
estudos realizados no período compreendido entre o começo do século
V e meados do século XV e de antes mesmo, pois os medievos se
basearam muito em Galeno. Mas você quer saber quais são os tópicos.
São variados. Por exemplo: de que maneira o uso das mulheres pode
ser danoso ou proveitoso; como resistir às tentações da carne; os
riscos higiênicos, os riscos dos excessos; o coito como uma
atividade imprescindível para assegurar a saúde do corpo e da mente
humanos. Tenho aqui cópias desses velhos tratados sobre o assunto.
Por incrível que pareça ainda existem nos dias de hoje, não tão
repressivos quanto na Idade Média, preconceitos puritanos que
condenam o prazer sexual.”
“Você
vai perder muito tempo para fazer isso.”
“Já
perdi tempo e dinheiro. Acha que foi fácil conseguir esse material?
Olha aqui, em cima da mesa do escritório, o Liber minor de coitu,
do século XV, escrito em latim. O El speculum al foderi,
século XV, escrito em catalão. Este outro é a obra básica, de
Constantino, o Africano, De coitu, do século XI, referência
de todos os tratados de medicina da Idade Média, que desenvolveram
as teses de Galeno sobre a necessidade higiênica de expulsar com
regularidade o sêmen do corpo humano...”
“Velharias.”
“Tenho
coisas novas. Este estudo de Joan de Cadden, Meanings of sex
difference in the Middle Ages, de mil novecentos e noventa e
três. As teses medievais sobre a natureza patológica, fisiológica
e terapêutica do coito...”
“Um
livro novo sobre velharias ultrapassadas...”
“A
igreja, no século XXI, ainda se prende, de certa maneira, aos
ditames bíblicos sobre a necessidade de reproduzir, como está no
Gênesis, 1,28. Para esses fanáticos indiferentes ao fato de
vivermos num mundo em que existe gente em excesso, o objetivo do
coito seria a geração de novos seres. Mas a finalidade do coito
deve ser o prazer. Não vou, portanto, ao contrário do meu
antecessor, ensinar também a usar as mulheres para fazer filhos.
Exatamente o oposto.”
“Porém,
um dos tópicos mencionados por você é como resistir à tentação
da carne. Não é um apelo à castidade?”
“Não,
claro que não. Eu estou numa festa e uma mulher extremamente
atraente me leva para o banheiro para que eu a coma. Estou morrendo
de tesão por ela, mas não tenho uma camisinha comigo. Então tenho
que resistir à tentação da carne.”
“Que
festas são essas que você frequenta?”
“É
uma situação hipotética.”
“Fala
a verdade. Já aconteceu isso com você? Confessa, diga: aconteceu
antes de eu conhecer você.”
“Aconteceu
antes de eu conhecer você.”
“E
você resistiu?”
“Não.
É por isso que eu sei que a carne é fraca.”
“A
mulher confiou em você. Mas você me disse que a regra de ouro nas
relações sexuais é: não coma quem confia em você.”
“Mas
as tentações da carne são veementes. Por isso o meu tratado vai
ensinar a como resistir a elas.”
“Você
vai ensinar uma coisa que não sabe fazer.”
“Não
sabia.”
“Esse
episódio do banheiro foi há muito tempo?”
“Há
quanto tempo nos conhecemos?”
“Um
ano, dois meses e vinte e dois dias.”
“Esse
detalhe me deixa emocionado. Vinte e dois dias?”
“E
seis, não, sete horas.”
“Eu
devia casar com você.”
“Que
merda, anda, fala logo, há quanto tempo você comeu no banheiro essa
vadia sem preconceitos puritanos?”
“Uns
dois, três anos.”
“AIDS
fica incubada muito tempo, sabia?”
“Depois
daquele comportamento imprudente fiquei muito preocupado e fiz um
monte de exames.”
“Quero
ver a data e o resultado do último.”
“Está
aqui em casa, em algum lugar. Você já viu, nós trocamos exames de
sangue, eu e você, já se esqueceu? Odiamos camisinha.”
“Vamos
fazer outros amanhã. Amanhã, viu? E você só me come sem camisinha
depois de eu ver o resultado.”
“Heloísa,
confia em mim.”
“Então
você vai para a cama com uma mulher que confia em você?”
“Nós
dois não estamos incluídos nessa precaução.”
“Esse
tratado vai ser um monte de idiotices cavilosas. Eu não perderia
tempo com ele. Escreve as coisas que você está habituado a
escrever. Num banheiro, Puta que pariu.”
“Meu
bem...”
“Não
posso imaginar você fazendo uma coisa dessas...”
“Nós,
os homens, somos diferentes das mulheres... Reconheço, como os
velhos tratadistas, que as mulheres também têm apetites sexuais,
mas não tão insaciáveis quanto os masculinos. Na verdade vocês
não têm essa impulsão essencial de disseminar o sêmen,
historicamente vital para a sobrevivência da espécie. Agora não
mais difundimos o sêmen apenas por determinismo genético, mas por
prazer, e a impulsão aumentou. Que diabo, nem sêmen vocês mulheres
têm para plantar... É por isso, querida, que o título da minha
obra tem que ser Tratado do uso das mulheres, quando muito podia
trocar mulheres por fêmeas. Que é isso? Você está rasgando o
compêndio do Johannes de Ketham, você está louca, pára, pelo amor
de Deus...”
“Você
não acredita em Deus, seu filho da puta...”
“Esse
é o Bernardo de Gordonio, uma obra rara, não faça isso, meu
amor...”
“Você
também não acredita no amor, cachorro... Rasgo, não tente me
impedir.”
“Não,
não, por favor...”
“Pronto,
destruí esse lixo todo.”
“Você
aniquilou a minha vida, essas tiras de papel...”
“Você
está chorando, querido?”
“De
raiva. Quero matar você, mas não consigo...”
“Talvez
a gente possa colar tudo... Me desculpe, deu uma coisa em mim... Por
que você não consegue me matar?”
“Não
sei.”
“Eu
mereço, depois do que fiz. Quer que eu apanhe uma faca na cozinha?
Aquela que uso para limpar a gordura do contrafilé?”
“Esquece.”
“Quer
que eu vá embora?”
“Não.”
“Você
me ama, Fernando.”
“Não
adianta ficar me abraçando, Heloísa.”
“Anda,
Fernando, me dá um beijo. Outro. Ah!... Já estou sentindo em você
a tal impulsão vital. Eu vou usar isso, vamos para o quarto.”
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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