F
De
novo o ar livre da manhã — só que desta vez não é o sol, é a
chuva, com trovões e relâmpagos para completar. (Não deveriam
nunca soltar os presos em dias de tempestade, é uma maldade gratuita
que não se justifica, como de resto não se justifica nada neste
mundo bárbaro.)
O
delegado condoeu-se da minha sorte justamente quando eu menos
esperava que se condoesse, e aqui estou de novo às voltas com o meu
destino, sem cama e sem comida grátis para ajudar, nesta fase de
recuperação moral de que tanto estou necessitado. Prenderam-me
apenas por 52 horas, pelo meu relógio suíço, e se eu não quisesse
descansar certamente me teriam prendido por 52 dias ou por 52 anos,
como sei de um velho que até hoje está esquecido numa masmorra da
Tunísia por haver roubado um pedaço de pão sem manteiga. Enfim…
Consta
que amanhã é o Ano-Bom e que por isso nos soltaram, a mim e a uns
dez outros sujeitos menos ferozes, em honra do dia da Fraternidade
Universal, que é uma coisa que eu não sabia ainda existir a esta
altura dos acontecimentos. Foi o velho Astolfo, que também saiu
comigo, quem me pôs a par da novidade, mas pode ser que se trate
apenas de um boato e que voltemos a ser presos ainda hoje, para
regozijo das beatas e dos pederastas de todo o mundo. Esse velho
Astolfo, aliás, não me pareceu muito certo da cabeça, e a primeira
coisa que me propôs, ao nos vermos na rua, foi que assaltássemos o
cofre da igreja matriz da cidade, que segundo ele está a ponto de
arrebentar, com pôde verificar no instante mesmo em que foi preso.
Mas eu de igreja quero distância, mesmo que seja apenas para roubar,
e preferirei assaltar a própria central de polícia a ter que
enfrentar de novo o farisaísmo das falsas devotas e a santa
indignação dos ministros de Deus, implacáveis em seus domínios.
Não
que eu não precise de dinheiro, evidentemente; preciso e muito. Na
delegacia roubaram-me os últimos tostões, não sei a pretexto de
que imposto, e só me deixaram mesmo o meu relógio porque me pus a
gritar como um desesperado, ameaçando até levar o caso ao
conhecimento do presidente da República, se necessário. O delegado
ainda quis insinuar que o relógio fora roubado, por lhe parecer
esdrúxulo que um sujeito tão pobre como eu pudesse ter um relógio
de tão boa qualidade; mas gritei mais forte do que nunca, ameacei
céus e terra com o meu potentíssimo timbre de voz, e deixaram-me
sair com o meu precioso talismã, não sem alguns conselhos paternais
que tratei logo de mandar às favas. Na rua, porém, sob a chuva
implacável, de nada me adiantou saber as horas quase que de minuto a
minuto, sob os olhares cobiçosos de Astolfo e de outro prisioneiro
político cujo nome ignoro e que nos acompanhou pela rua fria e
deserta — e eu teria preferido que, em vez de um relógio, o
enforcado me houvesse deixado em herança uma bússola, em que eu
pudesse descobrir qual o melhor rumo a tomar, neste mundo tão cheio
de descaminhos.
Falando
quase todas as línguas vivas, e algumas já mortas ou moribundas,
sinto-me em verdade incapaz de procurar um trabalho que atenda às
minhas necessidades mais imediatas — comer e dormir — sobretudo
numa cidade que me é inteiramente desconhecida e onde o cheiro de
pólvora ainda paira no ar, em consequência da última intentona
pseudobolchevista. Já exerci quase todos os misteres deste mundo,
desde o de deputado até o de cáften profissional, mas ainda me
falta encontrar aquele que assente como uma luva ao meu temperamento
profundamente humano e que talvez ainda esteja por inventar: algo
assim como o de um descobridor de terras e de mares que não fosse
obrigado a sair da cama, já que o ócio me parece ser a primeira das
virtudes teologais.
Meu
pai, que era um homem esperto, queria que eu fosse general ou papa,
mas fugi de casa muito cedo e aprendi a ser apenas eu mesmo, sem
nenhum título permanente — o que, de resto, não considero nenhuma
virtude de minha parte, mas simples obrigação. No dia em que não
puder ser eu mesmo eu me matarei de vergonha; aliás, nem será
preciso que me mate: morrerei simplesmente. Já tentei o suicídio
três vezes por esse motivo — mas, no instante mesmo em que me
suicidava, compreendia que afinal voltara a ser eu mesmo, e desistia
do intento. (Conheci também um sujeito que um dia chegou em casa,
olhou a mulher, os filhos, a sogra, os retratos pregados na parede e
uma Última ceia pendurada em cima do piano, e de repente compreendeu
que nada daquilo lhe pertencia nem poderia pertencer-lhe nunca — e
de vergonha se fechou no quarto e se cortou os pulsos com uma gilete
usada, sem soltar um gemido sequer e como se cumprisse apenas uma
obrigação muito importante. Quando o chamaram para o jantar ele não
pôde atender, pois já era um cadáver muito digno e de fisionomia
muito serena, não obstante todo o escândalo que essa atitude sua
provocou entre os seus, entre os vizinhos e em todo o quarteirão em
que morava, e que até hoje comentam o fato como sendo uma coisa
inexplicável, só concebível num acesso de loucura ou em face de
algum segredo de amor que o morto teria levado para o túmulo.)
Mas
a chuva está insidiosa, como dizia um meu tio, e, já que não tenho
o que fazer, e o melhor nesses casos é exatamente não fazer nada,
ponho-me de cócoras junto a um cinema que está exibindo um filme de
Charlie Chaplin e cujo porteiro (de libré) me olha com um ar
assustado e desconfiado, como se nunca antes houvesse visto um
vagabundo maltrapilho e faminto, com a barba de uma semana na face
esquálida e sem esperança.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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