terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A Lua Vem da Ásia | Cosmogonia

F

De novo o ar livre da manhã — só que desta vez não é o sol, é a chuva, com trovões e relâmpagos para completar. (Não deveriam nunca soltar os presos em dias de tempestade, é uma maldade gratuita que não se justifica, como de resto não se justifica nada neste mundo bárbaro.)
O delegado condoeu-se da minha sorte justamente quando eu menos esperava que se condoesse, e aqui estou de novo às voltas com o meu destino, sem cama e sem comida grátis para ajudar, nesta fase de recuperação moral de que tanto estou necessitado. Prenderam-me apenas por 52 horas, pelo meu relógio suíço, e se eu não quisesse descansar certamente me teriam prendido por 52 dias ou por 52 anos, como sei de um velho que até hoje está esquecido numa masmorra da Tunísia por haver roubado um pedaço de pão sem manteiga. Enfim…
Consta que amanhã é o Ano-Bom e que por isso nos soltaram, a mim e a uns dez outros sujeitos menos ferozes, em honra do dia da Fraternidade Universal, que é uma coisa que eu não sabia ainda existir a esta altura dos acontecimentos. Foi o velho Astolfo, que também saiu comigo, quem me pôs a par da novidade, mas pode ser que se trate apenas de um boato e que voltemos a ser presos ainda hoje, para regozijo das beatas e dos pederastas de todo o mundo. Esse velho Astolfo, aliás, não me pareceu muito certo da cabeça, e a primeira coisa que me propôs, ao nos vermos na rua, foi que assaltássemos o cofre da igreja matriz da cidade, que segundo ele está a ponto de arrebentar, com pôde verificar no instante mesmo em que foi preso. Mas eu de igreja quero distância, mesmo que seja apenas para roubar, e preferirei assaltar a própria central de polícia a ter que enfrentar de novo o farisaísmo das falsas devotas e a santa indignação dos ministros de Deus, implacáveis em seus domínios.
Não que eu não precise de dinheiro, evidentemente; preciso e muito. Na delegacia roubaram-me os últimos tostões, não sei a pretexto de que imposto, e só me deixaram mesmo o meu relógio porque me pus a gritar como um desesperado, ameaçando até levar o caso ao conhecimento do presidente da República, se necessário. O delegado ainda quis insinuar que o relógio fora roubado, por lhe parecer esdrúxulo que um sujeito tão pobre como eu pudesse ter um relógio de tão boa qualidade; mas gritei mais forte do que nunca, ameacei céus e terra com o meu potentíssimo timbre de voz, e deixaram-me sair com o meu precioso talismã, não sem alguns conselhos paternais que tratei logo de mandar às favas. Na rua, porém, sob a chuva implacável, de nada me adiantou saber as horas quase que de minuto a minuto, sob os olhares cobiçosos de Astolfo e de outro prisioneiro político cujo nome ignoro e que nos acompanhou pela rua fria e deserta — e eu teria preferido que, em vez de um relógio, o enforcado me houvesse deixado em herança uma bússola, em que eu pudesse descobrir qual o melhor rumo a tomar, neste mundo tão cheio de descaminhos.
Falando quase todas as línguas vivas, e algumas já mortas ou moribundas, sinto-me em verdade incapaz de procurar um trabalho que atenda às minhas necessidades mais imediatas — comer e dormir — sobretudo numa cidade que me é inteiramente desconhecida e onde o cheiro de pólvora ainda paira no ar, em consequência da última intentona pseudobolchevista. Já exerci quase todos os misteres deste mundo, desde o de deputado até o de cáften profissional, mas ainda me falta encontrar aquele que assente como uma luva ao meu temperamento profundamente humano e que talvez ainda esteja por inventar: algo assim como o de um descobridor de terras e de mares que não fosse obrigado a sair da cama, já que o ócio me parece ser a primeira das virtudes teologais.
Meu pai, que era um homem esperto, queria que eu fosse general ou papa, mas fugi de casa muito cedo e aprendi a ser apenas eu mesmo, sem nenhum título permanente — o que, de resto, não considero nenhuma virtude de minha parte, mas simples obrigação. No dia em que não puder ser eu mesmo eu me matarei de vergonha; aliás, nem será preciso que me mate: morrerei simplesmente. Já tentei o suicídio três vezes por esse motivo — mas, no instante mesmo em que me suicidava, compreendia que afinal voltara a ser eu mesmo, e desistia do intento. (Conheci também um sujeito que um dia chegou em casa, olhou a mulher, os filhos, a sogra, os retratos pregados na parede e uma Última ceia pendurada em cima do piano, e de repente compreendeu que nada daquilo lhe pertencia nem poderia pertencer-lhe nunca — e de vergonha se fechou no quarto e se cortou os pulsos com uma gilete usada, sem soltar um gemido sequer e como se cumprisse apenas uma obrigação muito importante. Quando o chamaram para o jantar ele não pôde atender, pois já era um cadáver muito digno e de fisionomia muito serena, não obstante todo o escândalo que essa atitude sua provocou entre os seus, entre os vizinhos e em todo o quarteirão em que morava, e que até hoje comentam o fato como sendo uma coisa inexplicável, só concebível num acesso de loucura ou em face de algum segredo de amor que o morto teria levado para o túmulo.)
Mas a chuva está insidiosa, como dizia um meu tio, e, já que não tenho o que fazer, e o melhor nesses casos é exatamente não fazer nada, ponho-me de cócoras junto a um cinema que está exibindo um filme de Charlie Chaplin e cujo porteiro (de libré) me olha com um ar assustado e desconfiado, como se nunca antes houvesse visto um vagabundo maltrapilho e faminto, com a barba de uma semana na face esquálida e sem esperança.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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