Esse
dia que ainda se reserva aos Finados é quase desnecessário em seu
simbolismo, porque os moços não reparam nele, e os maduros e os
velhos têm já formado o seu sentimento da morte e dos mortos. Esta
é uma conquista do tempo, e prescinde de comemorações para se
consolidar. Basta o exercício de viver, para nos desprender
capciosamente da vida, ou, pelo menos, para entrelaçá-la de tal
jeito com a morte, que passamos a sentir essa última como forma
daquela, e forma talvez mais apurada, à maneira de uma gravura que
só se completa depois de provas sucessivas. Falo em gravura, e vejo
à minha frente um desses originais de Goeldi, em que o esplendor
noturno é raiado de vermelho ou verde, numa condensação de treva
tão intensa e compacta que não se sabe como a penetra esse facho de
luz deslumbrante, coexistindo daí por diante numa espécie de
casamento sinistro, à primeira impressão. Não, não é sinistro.
Posso informar pessoalmente que a imbricação da ideia de morte na
ideia de vida não é arrasadora para o homem, senão que constitui
uma das sínteses morais a que o tempo nos conduz, como parte da
experiência individual.
Os
que eram do mesmo sangue, os amigos e companheiros que ainda há
pouco sorriam a nosso lado ou mesmo nos impacientavam lá de vez em
quando (mas era tão bom que nos impacientassem, agora que nem isso
recebemos deles), onde estão, onde estão? Voltamo-nos para fora de
nós e não os recuperamos; mas se nos aprofundarmos um pouco, vamos
encontrá-los fundidos em nosso conhecimento das coisas, incorporados
à nossa maneira de andar, comer e dormir; intatos, mesmo sob a
camada de esquecimento em que outra vez os sepultamos, porque,
contraditoriamente, eles não se deixaram ficar esquecidos, e brincam
de se fazer lembrados nas horas mais imprevistas. Dizia Kierkegaard
que não há ninguém mais astucioso que o defunto. Não dispõe de
nenhuma arma contra nós; entretanto nos força a nos revelarmos a
nós mesmos, pela conduta que temos diante dele. O morto não é um
objeto real, ensina-nos o filósofo: é apenas uma oportunidade de
manifestar o que existe no vivo em contato com ele. É um teste à
nossa espera: um teste de amor. Porque (ainda na lição de
Kierkegaard) pensar nos mortos é o ato de amor mais desinteressado,
mais livre e mais fiel, de todos que possamos conceber. Mais
desinteressado, porque nem mesmo o nutre essa esperança de
recompensa que os pais depositam inconscientemente no amor ao filho
que vai nascer ou já nasceu: não há recompensa nenhuma a esperar
de um morto; mais livre, porque o morto não está aí para nos
obrigar a qualquer gesto ou sentimento, como a criança que chora, ou
o pobre que nos expõe sua pobreza: podemos ignorá-lo à vontade; e
mais fiel, porque mudamos continuamente de gostos e ilusões, mas ele
não muda nunca, e amá-lo sempre com o mesmo amor é uma vitória
sobre a nossa instabilidade sentimental.
Para
os que cultivam uma concepção cristã da vida, o problema das
relações entre vivo e morto se resolve pela esperança de um
diálogo perene e deleitoso, que uns e outros manterão após a
consumação do tempo. Mas talvez essa esperança os leve a esquecer,
no plano terrestre, aqueles cuja presença esperam recuperar, num
plano superior e imutável, e se amar é forma de conhecimento,
esquecer equivale a negar esse conhecimento: assim, graças a uma
confiança descuidada, poderiam vir a deparar com estranhos, onde
esperavam encontrar amizades e amores antigos. Na verdade, é preciso
estar sempre começando a amar, para amar algum dia.
Quanto
aos que não nutrem essa esperança de uma família ideal e futura,
esses, se não esquecem os seus mortos, não é porque algo esperem
deles, mas porque não podem deixar de lembrá-los, porque os mortos
habitam realmente em nós, sem que o saibamos; e começar a sabê-lo
constitui um dos prêmios de envelhecer, que faz da ausência
presença, e desnecessário o Dia de Finados. A morte não é triste,
é serena.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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