quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

O Garoto Maravilha


Sou o melhor. Não existe problema, por mais complexo, que eu não resolva. Posso cobrar, por hora de trabalho, mais do que qualquer outro especialista. Logo que me formei, em menos de um ano fiquei conhecido como o Garoto Maravilha. Ainda hoje, já levemente grisalho, tem gente que me chama de Garoto Maravilha, mas eu não gosto. Uma vez cheguei ao escritório de uma cliente e quando ela me viu, perguntou, visivelmente divertida, “É o senhor, o Garoto Maravilha?”. Era uma mulher linda, não foi fácil, tive que usar todos os meus recursos.
Já teve quem me apelidasse de gênio. Eu podia ser um Einstein, se deixasse de pensar no que penso e tivesse tempo para ficar cocando o saco lucubrando sobre a relatividade das coisas, ou um Newton, se gostasse de meditar deitado debaixo de uma macieira. Mas ainda bem que esse apelido não pegou, ia causar ainda mais inveja aos meus colegas. Entre os renomados especialistas da minha área, mais da metade só conhece o arroz com feijão, o que dá para enganar a maioria dos clientes, palermas que têm dificuldade para programar até mesmo um telefone celular ou um micro-ondas. Sei que estou sendo amargo, mas estou puto comigo mesmo e desabafo para cima dos pobres de espírito, que deviam receber a minha compaixão.
Estou doente, mas antes de falar da minha doença quero dizer que por causa dela deixo de atender muitos clientes que me procuram. É por isso que estou sofrendo, porque tive a revelação de que estava doente quando quis trocar o meu carro velho por um novo e não tinha dinheiro, mas continuei a ser uma pessoa doente, como esses caras que não conseguem deixar de fumar, ou beber. “Se você trabalhasse mais, poderia estar nadando em dinheiro”, disse Cylene, a minha secretária. Mas eu não tenho tempo para trabalhar e isso está me deixando infeliz.
Hoje fui almoçar com o Kurt Lang, dono da Links. Eu detestava até mesmo tomar um cafezinho com um colega de profissão, mas comi a mulher do Kurt e me senti moralmente obrigado a aceitar o convite dele. Ninguém convida você para almoçar sem querer lhe pedir alguma coisa, Kurt queria que eu solucionasse um problema que nem ele nem os bagrinhos do seu escritório conseguiam resolver. Kurt tem um monte de funcionários, dezenas de clientes, acho que a ressonância do seu nome alemão impressiona os trouxas, mas de alemão ele só tem o nome, não sabe escrever sauerkraut, nem come.
Deixei o cara me vampirizar, eu me sentia em débito com ele pelo motivo já exposto. Mas o Kurt merece o que ganha, trabalha como um condenado da manhã à noite, ludibriando os trouxas. E que mal existe em enganar aqueles que querem ser iludidos? Não é isso que fazem os médicos, os advogados, os cozinheiros, as putas, os padres, os eletricistas, os treinadores de cachorro, os macumbeiros, os consultores financeiros, os pintores de parede? E eu podia ficar blablablando essa lista o dia inteiro. Não gosto de enganar os parvos, mas o meu problema é que estou doente. E isso está me deixando infeliz.
Depois do almoço, Kurt me deu uma carona no Mercedes novo dele. Entrei no meu escritório disposto a dizer à minha secretária que ia atender a todos os clientes que telefonassem e que o nosso relacionamento ia mudar.
Foi tudo bem no almoço, querido?”
Não quero mais que me chame assim. De agora em diante quero ter com você uma relação formal.”
Não estou entendendo.”
Acabar com as intimidades.”
O que foi que eu fiz?”
Você não fez nada. Eu estou doente.”
Mas nós sempre usamos camisinha.”
Não é uma doença contagiosa. Ou talvez seja, não sei.”
Já foi a um médico, meu amor?”
Ainda não. Mas eu vou. Não quero que você me chame de meu amor.”
Eu sei que não sou o seu amor, que você tem outras, mas não me incomodo.”
Cylene, sinto muito, mas você não pode mais trabalhar comigo.”
Você vai me mandar embora?”
Estou com o coração doendo, mas tenho que fazer isso.”
Não me manda embora, por favor.”
Vou arranjar um emprego melhor para você.”
Não quero outro emprego, quero trabalhar aqui.”
Sinto muito.”
Você precisa de mim.”
Eu estou doente. Não preciso de ninguém.”
Mas eu preciso de você, não me mande embora.”
Vá para a sua sala, por favor, odeio ver mulher chorando.”
Cylene saiu correndo. “Você vai se arrepender.” Elas sempre dizem isso, ou coisas piores.
Telefonei para o Kurt.
Kurt, você falou no almoço que estava procurando uma secretária. Eu tenho a pessoa perfeita para você. Entende mais do nosso negócio que qualquer dos bagrinhos que você tem aí. É a minha própria secretária.”
A sua secretária? E você quer se ver livre dela por quê?”
Não posso pagar o que ela quer.”
Garoto, você é o maior e está com dificuldades? Está abusando da substância? Foi o que ferrou o Manfredo, ele ficou um caco, totalmente na merda.”
Não é nada disso. Eu estou doente. Não consigo trabalhar.”
O que você tem? Câncer?”
Não é câncer.”
É stress? Eu sei o que é isso.”
É stress dos piores, estou muito mal” confirmei, para o Kurt deixar de fazer perguntas.
Senti que ele ficava feliz por saber que eu estava fodido. O mundo é assim.
Como é, quer contratar a Cylene ou não? Sei de mais gente que se interessaria.”
E quanto ela quer?”
Multipliquei o salário que eu pagava a ela por três.
Cylene vale muito mais”, acrescentei.
Quando é que ela pode começar? Preciso imediatamente. A gente só vê a importância de uma boa secretária quando ela nos deixa. A desgraçada casou e o marido é um daqueles trogloditas que não querem que a mulher trabalhe fora.”
Segunda-feira a Cylene se apresenta a você. Estou lhe fazendo um favor. Vai ficar me devendo.”
Já anotei, Garoto.”
Lembrei que tinha deixado um furo. “Kurt, na carteira profissional dela está um salário menor. Eu pago a diferença por fora.”
Aqui nós não fazemos esse tipo de coisa, é lesivo à previdência social e, além de ilegal, desculpe dizer, fere a boa ética”, disse Kurt, satisfeito por poder me dar essa porrada. Será que ele sabia que eu andei comendo a mulher dele?
Foi duro convencer Cylene. A infeliz gostava de mim, as mulheres são seres estranhos, adoram patifes que sejam bondosos e engraçados, uma coisa que eu era, além de muito doente. O que a convenceu foi eu dizer que deixando de ser minha secretária o problema desapareceria e a gente ia poder continuar se vendo, o que eu não pretendia fazer mais. Também influiu o alto salário que ela ia ganhar com o Kurt, mais a indenização que lhe paguei. Dinheiro é dinheiro, só quem não gosta de dinheiro sou eu. Faz parte da doença.
Olha, você deve chamar o cara de doutor Kurt, ouviu? Ele gosta de ser chamado de doutor. É um bestalhão, mas é um bom sujeito, é só caprichar na mímica, doutor Kurt pra cá, doutor Kurt pra lá, e fazer o seu trabalho como você sabe fazer. Não se esqueça do que eu falei a você sobre a carteira profissional, o pagamento por fora.”
Entreguei a Cylene uma carta de recomendação, onde só faltava dizer que ela era uma segunda Madame Curie. Cylene ia dar certo no novo emprego, ela era mesmo do primeiro time.
No dia seguinte fui ao médico, um psiquiatra amigo meu. Ele ouviu a minha história.
Essa doença está acabando comigo, está me arruinando”, eu disse.
Não conheço remédio para isso” ele disse. “Aliás, nenhum laboratório está interessado em fazer um remédio desses. Não ia vender.”
Já tomei tudo que é tranquilizante. Aqueles que alertam na bula que um dos efeitos colaterais é diminuir a libido.”
Isso é coisa do departamento jurídico dos laboratórios. É para o caso de algum espertinho impotente, instruído por um advogado safado, acionar o laboratório. O advogado do laboratório, causídico do mesmo naipe, alega no tribunal que a bula alertava para esse possível efeito, ou seja, o pilantra tomou o remédio sabendo disso. A gente tem que ter advogados para se defender dos advogados. Agora a coisa é assim. Você conhece aquela piada do advogado que foi para o céu?”
Quer dizer que a minha doença não tem lenitivo?”
Pelo que eu me lembro, você já era assim no ginásio. E você está se arruinando por quê? Você disse que não dá dinheiro para as mulheres, que elas não custam nada.”
Eu não posso chegar para uma mulher e dizer, sem mais nem menos, vamos para a cama. Elas vão sempre, mas é preciso usar táticas, estratégias, uma mão de obra danada. Fico sem tempo para fazer o meu trabalho. E se não trabalho, não ganho dinheiro.”
Não dá para conciliar? Equilibrar as coisas?”
Como? Eu quero foder todas as mulheres que encontro.”
Todas?”
As bonitas. Mas só existe mulher bonita.”
O mundo está cheio de mulheres feias.”
Mas eu não as vejo, elas não aparecem para mim, as feias.”
E você acredita que é politicamente incorreto querer comer todas as mulheres?”
Eu li que isso é uma doença. Não existe uma doença chamada satiríase?”
Toda excitação sexual tem alguma coisa de mórbido. No mundo de hoje os homens estão cada vez com menos tesão, têm que tomar pílulas para isso, e os que sentem tesão são considerados doentes. Essa é mais uma invenção das feministas americanas. Certamente você andou lendo bobagens num desses livros produzidos na terra do Tio Sam. Viva a sua vida, mas não se esqueça de que a hipocrisia e o sofisma são padrões socioculturais aceitos nos dias de hoje.”
Devo então fingir que sou o que não sou?”
Eu não disse isso.”
O que foi que você disse?”
Por enquanto, nada. Foi uma frase de efeito.”
Puta merda, eu vim ao psiquiatra errado. Ou o problema é sermos velhos amigos?”
Talvez. Mas o seu caso é complicado. Não devia ser, e não é, mas você mesmo o complicou.”
Então não há nada a fazer? Só me resta ouvir um tango argentino, como o sujeito do pneumotórax do Manuel Bandeira?”
Bons tempos aqueles, do colégio. Éramos inocentes, líamos os poetas. Engraçado, você desencavar esse troço.”
Quer dizer que estou ferrado?”
Procura um psicanalista. Às vezes funciona.”
Não vou procurar porra de psicanalista nenhum.”
Ou então o DASA — Dependentes de Amor e Sexo Anônimos. Uma espécie de AA para sátiros e ninfos. Realizam reuniões diariamente, em vários locais da cidade. Às vezes...”
Cortei a frase dele no meio.
Comigo não funciona. Detesto confissões privadas e mais ainda as públicas.”
Na saída dei o meu cartão para a recepcionista, uma mulher linda.
Liga para mim, tenho a mais fascinante coleção de asas de borboleta do mundo.”
Ela sorriu e botou o cartão no bolso do uniforme branco que vestia.
Estou puto comigo mesmo. Não sei o que fazer. Vou morrer doente, dirigindo um carro velho?

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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