Sou
o melhor. Não existe problema, por mais complexo, que eu não
resolva. Posso cobrar, por hora de trabalho, mais do que qualquer
outro especialista. Logo que me formei, em menos de um ano fiquei
conhecido como o Garoto Maravilha. Ainda hoje, já levemente
grisalho, tem gente que me chama de Garoto Maravilha, mas eu não
gosto. Uma vez cheguei ao escritório de uma cliente e quando ela me
viu, perguntou, visivelmente divertida, “É o senhor, o Garoto
Maravilha?”. Era uma mulher linda, não foi fácil, tive que usar
todos os meus recursos.
Já
teve quem me apelidasse de gênio. Eu podia ser um Einstein, se
deixasse de pensar no que penso e tivesse tempo para ficar cocando o
saco lucubrando sobre a relatividade das coisas, ou um Newton, se
gostasse de meditar deitado debaixo de uma macieira. Mas ainda bem
que esse apelido não pegou, ia causar ainda mais inveja aos meus
colegas. Entre os renomados especialistas da minha área, mais da
metade só conhece o arroz com feijão, o que dá para enganar a
maioria dos clientes, palermas que têm dificuldade para programar
até mesmo um telefone celular ou um micro-ondas. Sei que estou sendo
amargo, mas estou puto comigo mesmo e desabafo para cima dos pobres
de espírito, que deviam receber a minha compaixão.
Estou
doente, mas antes de falar da minha doença quero dizer que por causa
dela deixo de atender muitos clientes que me procuram. É por isso
que estou sofrendo, porque tive a revelação de que estava doente
quando quis trocar o meu carro velho por um novo e não tinha
dinheiro, mas continuei a ser uma pessoa doente, como esses caras que
não conseguem deixar de fumar, ou beber. “Se você trabalhasse
mais, poderia estar nadando em dinheiro”, disse Cylene, a minha
secretária. Mas eu não tenho tempo para trabalhar e isso está me
deixando infeliz.
Hoje
fui almoçar com o Kurt Lang, dono da Links. Eu detestava até mesmo
tomar um cafezinho com um colega de profissão, mas comi a mulher do
Kurt e me senti moralmente obrigado a aceitar o convite dele. Ninguém
convida você para almoçar sem querer lhe pedir alguma coisa, Kurt
queria que eu solucionasse um problema que nem ele nem os bagrinhos
do seu escritório conseguiam resolver. Kurt tem um monte de
funcionários, dezenas de clientes, acho que a ressonância do seu
nome alemão impressiona os trouxas, mas de alemão ele só tem o
nome, não sabe escrever sauerkraut, nem come.
Deixei
o cara me vampirizar, eu me sentia em débito com ele pelo motivo já
exposto. Mas o Kurt merece o que ganha, trabalha como um condenado da
manhã à noite, ludibriando os trouxas. E que mal existe em enganar
aqueles que querem ser iludidos? Não é isso que fazem os médicos,
os advogados, os cozinheiros, as putas, os padres, os eletricistas,
os treinadores de cachorro, os macumbeiros, os consultores
financeiros, os pintores de parede? E eu podia ficar blablablando
essa lista o dia inteiro. Não gosto de enganar os parvos, mas o meu
problema é que estou doente. E isso está me deixando infeliz.
Depois
do almoço, Kurt me deu uma carona no Mercedes novo dele. Entrei no
meu escritório disposto a dizer à minha secretária que ia atender
a todos os clientes que telefonassem e que o nosso relacionamento ia
mudar.
“Foi
tudo bem no almoço, querido?”
“Não
quero mais que me chame assim. De agora em diante quero ter com você
uma relação formal.”
“Não
estou entendendo.”
“Acabar
com as intimidades.”
“O
que foi que eu fiz?”
“Você
não fez nada. Eu estou doente.”
“Mas
nós sempre usamos camisinha.”
“Não
é uma doença contagiosa. Ou talvez seja, não sei.”
“Já
foi a um médico, meu amor?”
“Ainda
não. Mas eu vou. Não quero que você me chame de meu amor.”
“Eu
sei que não sou o seu amor, que você tem outras, mas não me
incomodo.”
“Cylene,
sinto muito, mas você não pode mais trabalhar comigo.”
“Você
vai me mandar embora?”
“Estou
com o coração doendo, mas tenho que fazer isso.”
“Não
me manda embora, por favor.”
“Vou
arranjar um emprego melhor para você.”
“Não
quero outro emprego, quero trabalhar aqui.”
“Sinto
muito.”
“Você
precisa de mim.”
“Eu
estou doente. Não preciso de ninguém.”
“Mas
eu preciso de você, não me mande embora.”
“Vá
para a sua sala, por favor, odeio ver mulher chorando.”
Cylene
saiu correndo. “Você vai se arrepender.” Elas sempre dizem isso,
ou coisas piores.
Telefonei
para o Kurt.
“Kurt,
você falou no almoço que estava procurando uma secretária. Eu
tenho a pessoa perfeita para você. Entende mais do nosso negócio
que qualquer dos bagrinhos que você tem aí. É a minha própria
secretária.”
“A
sua secretária? E você quer se ver livre dela por quê?”
“Não
posso pagar o que ela quer.”
“Garoto,
você é o maior e está com dificuldades? Está abusando da
substância? Foi o que ferrou o Manfredo, ele ficou um caco,
totalmente na merda.”
“Não
é nada disso. Eu estou doente. Não consigo trabalhar.”
“O
que você tem? Câncer?”
“Não
é câncer.”
“É
stress? Eu sei o que é isso.”
“É
stress dos piores, estou muito mal” confirmei, para o Kurt deixar
de fazer perguntas.
Senti
que ele ficava feliz por saber que eu estava fodido. O mundo é
assim.
“Como
é, quer contratar a Cylene ou não? Sei de mais gente que se
interessaria.”
“E
quanto ela quer?”
Multipliquei
o salário que eu pagava a ela por três.
“Cylene
vale muito mais”, acrescentei.
“Quando
é que ela pode começar? Preciso imediatamente. A gente só vê a
importância de uma boa secretária quando ela nos deixa. A
desgraçada casou e o marido é um daqueles trogloditas que não
querem que a mulher trabalhe fora.”
“Segunda-feira
a Cylene se apresenta a você. Estou lhe fazendo um favor. Vai ficar
me devendo.”
“Já
anotei, Garoto.”
Lembrei
que tinha deixado um furo. “Kurt, na carteira profissional dela
está um salário menor. Eu pago a diferença por fora.”
“Aqui
nós não fazemos esse tipo de coisa, é lesivo à previdência
social e, além de ilegal, desculpe dizer, fere a boa ética”,
disse Kurt, satisfeito por poder me dar essa porrada. Será que ele
sabia que eu andei comendo a mulher dele?
Foi
duro convencer Cylene. A infeliz gostava de mim, as mulheres são
seres estranhos, adoram patifes que sejam bondosos e engraçados, uma
coisa que eu era, além de muito doente. O que a convenceu foi eu
dizer que deixando de ser minha secretária o problema desapareceria
e a gente ia poder continuar se vendo, o que eu não pretendia fazer
mais. Também influiu o alto salário que ela ia ganhar com o Kurt,
mais a indenização que lhe paguei. Dinheiro é dinheiro, só quem
não gosta de dinheiro sou eu. Faz parte da doença.
“Olha,
você deve chamar o cara de doutor Kurt, ouviu? Ele gosta de ser
chamado de doutor. É um bestalhão, mas é um bom sujeito, é só
caprichar na mímica, doutor Kurt pra cá, doutor Kurt pra lá, e
fazer o seu trabalho como você sabe fazer. Não se esqueça do que
eu falei a você sobre a carteira profissional, o pagamento por
fora.”
Entreguei
a Cylene uma carta de recomendação, onde só faltava dizer que ela
era uma segunda Madame Curie. Cylene ia dar certo no novo emprego,
ela era mesmo do primeiro time.
No
dia seguinte fui ao médico, um psiquiatra amigo meu. Ele ouviu a
minha história.
“Essa
doença está acabando comigo, está me arruinando”, eu disse.
“Não
conheço remédio para isso” ele disse. “Aliás, nenhum
laboratório está interessado em fazer um remédio desses. Não ia
vender.”
“Já
tomei tudo que é tranquilizante. Aqueles que alertam na bula que um
dos efeitos colaterais é diminuir a libido.”
“Isso
é coisa do departamento jurídico dos laboratórios. É para o caso
de algum espertinho impotente, instruído por um advogado safado,
acionar o laboratório. O advogado do laboratório, causídico do
mesmo naipe, alega no tribunal que a bula alertava para esse possível
efeito, ou seja, o pilantra tomou o remédio sabendo disso. A gente
tem que ter advogados para se defender dos advogados. Agora a coisa é
assim. Você conhece aquela piada do advogado que foi para o céu?”
“Quer
dizer que a minha doença não tem lenitivo?”
“Pelo
que eu me lembro, você já era assim no ginásio. E você está se
arruinando por quê? Você disse que não dá dinheiro para as
mulheres, que elas não custam nada.”
“Eu
não posso chegar para uma mulher e dizer, sem mais nem menos, vamos
para a cama. Elas vão sempre, mas é preciso usar táticas,
estratégias, uma mão de obra danada. Fico sem tempo para fazer o
meu trabalho. E se não trabalho, não ganho dinheiro.”
“Não
dá para conciliar? Equilibrar as coisas?”
“Como?
Eu quero foder todas as mulheres que encontro.”
“Todas?”
“As
bonitas. Mas só existe mulher bonita.”
“O
mundo está cheio de mulheres feias.”
“Mas
eu não as vejo, elas não aparecem para mim, as feias.”
“E
você acredita que é politicamente incorreto querer comer todas as
mulheres?”
“Eu
li que isso é uma doença. Não existe uma doença chamada
satiríase?”
“Toda
excitação sexual tem alguma coisa de mórbido. No mundo de hoje os
homens estão cada vez com menos tesão, têm que tomar pílulas para
isso, e os que sentem tesão são considerados doentes. Essa é mais
uma invenção das feministas americanas. Certamente você andou
lendo bobagens num desses livros produzidos na terra do Tio Sam. Viva
a sua vida, mas não se esqueça de que a hipocrisia e o sofisma são
padrões socioculturais aceitos nos dias de hoje.”
“Devo
então fingir que sou o que não sou?”
“Eu
não disse isso.”
“O
que foi que você disse?”
“Por
enquanto, nada. Foi uma frase de efeito.”
“Puta
merda, eu vim ao psiquiatra errado. Ou o problema é sermos velhos
amigos?”
“Talvez.
Mas o seu caso é complicado. Não devia ser, e não é, mas você
mesmo o complicou.”
“Então
não há nada a fazer? Só me resta ouvir um tango argentino, como o
sujeito do pneumotórax do Manuel Bandeira?”
“Bons
tempos aqueles, do colégio. Éramos inocentes, líamos os poetas.
Engraçado, você desencavar esse troço.”
“Quer
dizer que estou ferrado?”
“Procura
um psicanalista. Às vezes funciona.”
“Não
vou procurar porra de psicanalista nenhum.”
“Ou
então o DASA — Dependentes de Amor e Sexo Anônimos. Uma espécie
de AA para sátiros e ninfos. Realizam reuniões diariamente, em
vários locais da cidade. Às vezes...”
Cortei
a frase dele no meio.
“Comigo
não funciona. Detesto confissões privadas e mais ainda as
públicas.”
Na
saída dei o meu cartão para a recepcionista, uma mulher linda.
“Liga
para mim, tenho a mais fascinante coleção de asas de borboleta do
mundo.”
Ela
sorriu e botou o cartão no bolso do uniforme branco que vestia.
Estou
puto comigo mesmo. Não sei o que fazer. Vou morrer doente, dirigindo
um carro velho?
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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