sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Cartas para minha avó

Para além das dores, minha adolescência foi marcada por dois eventos que mudaram definitivamente a minha relação com a minha mãe. O primeiro foi quando eu tinha catorze anos, meses depois de você morrer, vó. Os sobrinhos do meu pai, Carlos e Cecília, perderam a mãe, minha tia Ana, e, como o pai deles havia falecido havia muitos anos, ficaram órfãos. Eles moravam em Limeira, no interior de São Paulo, e meu pai decidiu que seria melhor trazê-los para morar com a gente em Santos. Você imagina: o apartamento de dois quartos que mal dava para comportar a gente precisou receber mais duas pessoas.
Meus irmãos e eu aceitamos bem porque fomos criados sabendo o quão importante é apoiar a família. Pra minha mãe, porém, não foi fácil, pois enquanto o meu pai bancava o herói para a comunidade, era ela quem precisava cuidar de todo mundo. Sobrecarregada, ficava ainda mais mal-humorada quando meu pai passava a imagem do bonzinho incompreendido e a colocava no lugar da amargurada. Como eu o idolatrava, era a sua caçulinha, por muitos anos eu achei que ele era o bom e ela, a má, aquela que batia e brigava (meu pai jamais me deu uma surra). Ele era uma espécie de refúgio, para quem corríamos para evitar uns tapas. Mas essa era apenas uma saída temporária: era só ele sair para trabalhar que minha mãe terminava o que havia sido impedida de começar.
Meu pai era o cara legal que levava a gente à praia, para pescar, ao cinema, ao teatro. O homem inteligente que parecia uma enciclopédia humana, sabia quem eram as personalidades que deram nome às ruas que passávamos, entendia de política, filosofia e literatura, era filiado ao Partido Comunista, aprendeu a jogar xadrez vendo a gente nas aulas. Era capaz de interromper o samba numa festa para exibir a medalha que eu havia ganhado no campeonato santista de xadrez ou os diplomas de melhor aluna confeccionados pela escola. Reunia a gente em volta dele para ler, contar piadas.
Sabia o dia em que recebíamos o boletim e dava sermões de horas caso algum de nós tivesse tirado nota vermelha; deixava de castigo quem ficasse de recuperação; tomava a tabuada e, caso hesitássemos na resposta, nos mandava estudar. E enquanto estudávamos na frente dele, ele ainda nos punia fazendo-nos ouvir os gritos de alegria dos vizinhos brincando na rua. Mas ele estava nos oferecendo oportunidades que jamais teve. Fui a única a concluir o curso de inglês porque nunca repeti. Quem repetia, não recebia uma segunda chance: “Eu sou estivador, carrego sacas de açúcar nas costas. Se vocês não valorizam as oportunidades, terão que pagar vocês mesmos”. E não tinha conversa.
Ele falava errado “jaguaritica” só pra gente dar risada, e não importava quantas centenas de vezes ele repetisse, sempre era engraçado. Quando nos dava dinheiro para ir à bomboniere do seu Agenor, ele dizia “Vão lá no seu Antenor comprar sorvete e doces” e a gente chorava de rir. As piadas dele davam mais sabor aos picolés de chocolate e aos chicletes de tutti frutti que a gente tanto gostava. Mas sempre reclamava quando voltávamos com os salgadinhos de “isopor”, como ele chamava.
Mas não era meu pai quem separava as brigas, quem ia dormir pensando no que cozinhar para sete pessoas no dia seguinte, quem lavava as roupas e tinha que esfregá-las à mão quando a máquina de lavar quebrava. Era minha mãe quem precisava ir às reuniões de escola, quem cobrava para que fizéssemos as tarefas de casa e quem tinha que disputar com meia dúzia de adolescentes o único banheiro da casa, onde costumava fumar vagarosamente seu cigarro numa horinha de descanso. Era fácil para meu pai posar de bem-resolvido na vida conjugal. Minha mãe era quem ficava sobrecarregada com os cuidados conosco — e quando ela gritava com a gente ele a chamava de louca. Hoje percebo a injustiça e o viés machista dessa divisão de papéis.
Mas, quando eu tinha catorze anos, meu pai era a figura que me tirava da rotina, da mesmice, dos berros de “Vai lavar a louça” e das surras de cinto. Ele nos levava para o clube, para a natação, mesmo nos dias de inverno, não se importava com o frio que fazia. Nossas vidas eram cheias de altos e baixos. Ao mesmo tempo em que morávamos em um apartamento pequeno, éramos sócios de um grande clube na cidade; não tínhamos carro, mas eu estudava inglês numa das maiores escolas da cidade. Meu pai queria que a gente tivesse acesso ao que poderia nos cultivar intelectual e socialmente, e não ao que nos faria ser meros consumidores. Quando almoçávamos no clube, após passar o dia na piscina, parávamos o restaurante com a nossa presença de uma família preta. As famílias brancas iam embora de carro e passavam pela gente no ponto de ônibus.
Minha mãe quase não ia ao clube ou à praia com a gente, o que frustrava meu pai. Algumas vezes ele até disse que ela era “sem cultura” por isso. Mas a verdade era que minha mãe queria aproveitar o máximo possível da sua rara solidão, assistir à novela na única televisão da casa sem gritos de filhos e sobrinhos para atrapalhar. Ela devia amar quando meu pai nos acordava às cinco da manhã para pescar na vila em que ele morou no Guarujá antes de eu nascer.
Com o tempo, percebi que meu pai não era a pessoa que sentia falta de quem limpava a casa: ele sentia falta da casa limpa. O “sua mãe é louca” foi me incomodando e parando de fazer sentido. Dona Erani era extremamente rígida comigo e minha irmã porque, como você sabe, parte da família de Piracicaba dizia que, por morarmos numa cidade maior e de praia, Dara e eu seríamos desajustadas — leia-se: “promíscuas”.
Essa fofoca se tornou uma ameaça que pairava sobre a cabeça da minha mãe. Receosa do que poderia acontecer, ela não nos deixava respirar sem que ela soubesse onde estávamos ou sem que meus irmãos estivessem com a gente. Meu pai dizia que ela exagerava e, claro, concordávamos com ele. Até que eu passei a observar melhor as coisas.
Não sei se teve relação com seu falecimento, vó, mas eu soube dessas fofocas de Piracicaba pela minha própria mãe, que, em um raro momento de humanidade, se mostrou frágil e me contou seus temores. Não que os parentes fofoqueiros fossem más pessoas: eles simplesmente não conheciam o que era uma vida fora de certos parâmetros. Todas as gerações anteriores a eles tampouco. E sair daquela cidade de interior para enfrentar a vida em São Paulo soava como afronta. Minha mãe era vista como bem-sucedida por morar em apartamento próprio, por ter um marido trabalhador. Nossa vida era simples mas, para quem olhava a partir de uma perspectiva de escassez, era uma vida boa.
Um tempo depois dessa confissão, os meios-irmãos dos meus primos vieram visitá-los em nossa casa. Meus pais os receberam bem, como faziam com todas as visitas, e lembro que em dado momento minha irmã e eu dissemos que entendíamos minha mãe por ela ser rígida, que era compreensível ela ter medo do julgamento da família, afinal, tinha sido uma das poucas a ter coragem de sair de casa.
Sua filha saiu da sua casa aos dezoito anos por não aguentar tanta repressão, vó. Morou em casa de família em São Paulo até conhecer meu pai e casar com ele em Santos, onde ele vivia. Era ousadia demais para uma mulher do interior nascida em 1950. E como ela não havia se “perdido”, a maldição foi jogada nas filhas. Ela precisava garantir que minha irmã e eu daríamos “certo”, ou seja, não ficaríamos grávidas na adolescência. Nem que para isso ela precisasse ser a mulher mais dura possível, que não permitia nem que as filhas fossem à praia sozinhas.
Quando falamos na frente das visitas que nós a entendíamos, lembro como se fosse hoje da emoção que ela tentou disfarçar. A partir daquele dia, nossa relação foi mudando. Dona Erani foi ficando mais suave, sem perder a brabeza. Era quase intuitivo absolvê-la em vida de tantas violências que ela aguentou calada. Demorei a entender, mas minha mãe foi um espírito livre enjaulado. Até o desejo dela de jogar basquete na adolescência foi proibido, porque os parentes acreditavam que esse era um esporte para lésbicas, e as meninas da família não podiam cometer esse “pecado”. O dia que ela me contou desse sonho não realizado, a tristeza em seus olhos brotou. De alguma forma, ter se mudado para a capital mostrou o quão corajosa ela foi. Ter enfrentado um patrão, ameaçando jogar óleo quente nele para que parasse de assediá-la, é típico da ousadia que herdei dela. Minha mãe teve suas asas cortadas por muitas tesouras, e dizer a ela que a compreendíamos foi como fazer um pedaço se colar.
O segundo evento que mudou nossa relação aconteceu quando eu tinha dezesseis anos. Lembro como se fosse hoje: eu, magrinha, de top e bermuda vermelha, emburrada varrendo a casa. Comecei pela sala, passei pelo nosso quarto, o corredor e cheguei até o quarto dos meus pais. Eu me distraía facilmente quando realizava uma tarefa chata. Sentei na cama da minha mãe por um tempo para fazer algo que ela detestava: cumprir minhas tarefas sentada. Fiquei lá, sentada, passando a vassoura no tapete ao lado da cama e pensando “na morte da bezerra”, como ela gostava de dizer. Acabei me distraindo e não percebi quando ela entrou. Levantei rapidamente, no susto, já esperando um puxão de orelha, mas ela me disse pra sentar. Fiquei sem entender, achei que ela estivesse inventando outra modalidade de bronca, mas obedeci, claro. Ela começou a dizer o quanto sempre me amou, me desejou, o quanto eu era o bebê dela, algo que ela dizia por eu ser a mais nova. Segui sem entender, mas estava gostando de ver aquela demonstração espontânea de amor. Num dado momento, sua voz ficou séria e ela disse:
Quando eu engravidei de você, seus irmãos eram todos bebês, sua irmã tinha meses ainda. Eu fiquei desesperada, como ia ser cuidar de quatro filhos numa casa que quando chovia até cobra entrava? Como seria se seu pai não conseguisse o registro de estivador, a tão sonhada carteira preta? Passaríamos necessidade? Eu tive muito medo e resolvi procurar um curandeiro da vila, que oferecia chás abortivos e simpatias pra que a gente interrompesse a gravidez. Ele disse que era pra eu tomar um chá, segurar uma chave e fazer uma reza. Eu fui para casa, fiz o que ele mandou e nada. Fiquei preocupada e voltei lá. Ele me disse que eu não deveria ter segurado a chave com força ou que não tinha rezado com fé. Voltei para casa, fiz novamente o que ele mandou e nada. Você estava lá dentro dizendo: ‘Não saio, não saio, não saio’.”
Ela então deu um sorrisinho sem graça para quebrar a tensão. Eu segui em silêncio e ela prosseguiu.
Filha, passei sua gravidez toda com medo, não ia me perdoar se você nascesse com algum problema que eu poderia ter causado. E eu não pude dividir isso com ninguém, porque sabia que as pessoas me condenariam. Quando você nasceu, havia uma lua cheia linda em São Paulo. Eu havia ido à capital para visitar sua tia e você antecipou sua chegada. Nasceu em São Paulo, às 18 h de uma sexta-feira. Assim que te peguei no colo, comecei a apalpar seu corpo pra ver se tinha alguma coisa errada, contei os dedinhos das mãos e dos pés e fiquei tão aliviada em ver que você era saudável. E agora está aí, essa moça desse tamanho! Entendo se você ficar com raiva. Eu te peço perdão, filha.”
Eu lembro de ter escutado tudo muito atentamente, e confesso que foi uma alegria ver a minha mãe sendo a Erani. Ela nunca havia falado comigo daquela maneira, mas, talvez lembrando daquela conversa que tivemos anos antes, ela se sentiu segura para me contar algo que a assombrava havia dezesseis anos. Ela tinha pressa.
Não senti raiva, mágoa, nada. Os segundos que antecederam a quebra do meu silêncio devem ter sido assustadores. Com calma, respondi que o importante era que ela me amava, que eu entendia, que devia ter sido difícil engravidar de mais uma criança quando meu pai passava a maior parte do tempo trabalhando. Que estava absolutamente tudo bem.
Vó, confesso que na hora passou pela minha cabeça fingir tristeza, para ser colocada num lugar de “coitada da mãe”, mas a ideia não foi forte o suficiente para superar o amor que eu sentia por ela. Foi uma das conversas mais importantes da minha vida. Após esse episódio, nossa relação se transformou.
Meses depois, ela descobriu um tumor no rim, do tamanho de uma laranja. A equipe médica a desacreditou e foi um momento de muita apreensão. Desafiando todas as probabilidades, ela sobreviveu à grave cirurgia, fez quimio e radioterapia, passou um período difícil sendo cuidada por nós em casa, mas milagrosamente se recuperou. Precisou ser internada algumas vezes por conta da diabetes — era teimosa, nada a impedia de comer os quindins de que tanto gostava —, mas fico feliz em dizer que ela teve alguns anos de alegria.
Minha mãe passou a ser minha amiga também. Começamos a sair juntas. Apresentei a ela os prazeres da culinária japonesa, passei a convidá-la a ir comigo ver uma amiga cantora se apresentar em shoppings ou eventos na praia. Quando algum garoto bonito passava, ela perguntava: “Não viu o garoto bonito te olhando, não?”. Era engraçado ver minha mãe me enxergando como uma adolescente.
Nossos últimos anos foram incríveis, apesar da doença dela. Viajou com amigas, foi a festas comigo. Ficávamos em casa juntas, conversando, nos conhecendo como Erani e Djamila. Era como se minha mãe tivesse entendido que eu tinha maturidade para tomar decisões, que ela não precisava mais se preocupar comigo a ponto de me proibir de sair. Talvez a minha compreensão a tenha feito entender que sua missão comigo estava cumprida, que teria valido a pena todos os anos de rigidez, que ela poderia morrer em paz, então seria importante desfrutarmos da companhia uma da outra como amigas, por prazer e não por obrigação.
Aos dezenove anos, me apaixonei perdidamente por um rapaz que conheci no trabalho, vó, e ela foi uma das primeiras pessoas a saber. No dia que ele foi me buscar em casa para irmos ao cinema, ela o recebeu com alegria. Ficou, aliás, mais apaixonada por ele do que eu, sobretudo quando soube que ele era messiânico e havia se oferecido para ministrar nela o johrei, um tipo de passe daquela religião. Ela não se opôs quando eu, por influência dele, passei a frequentar a igreja messiânica, e me perguntava sempre quando o veria de novo — coisa que eu quase não respondia, porque não queria dizer que a família dele, descendente de japoneses, se opunha ao nosso relacionamento.
Mas eu realmente me apaixonei por esse rapaz, pois foi o primeiro a me tratar com respeito e delicadeza. Ele era espiritualizado e havia me ensinado muitas coisas, gostava de apreciar a natureza, era profundo e inteligente. Ele sempre me levava em casa depois de um passeio, trocávamos cartas e conversávamos por horas no telefone (mas claro, vó, havia dias em que a conversa era chata, ninguém é adorável o tempo todo). Foi muito marcante para aquele momento da minha vida. Para além da oposição dos pais dele, o fim se deu por certa arrogância: um dia, revelou que havia aparecido na minha vida para me libertar. Ele acreditava que era espiritualmente superior, falava em coisas de vidas passadas, que poderia ser a ponte para minha iluminação. Estava sempre querendo me dizer o que fazer, me moldando pra ser algo.
Por mais que o considerasse muito, me senti incomodada. Não foi uma separação súbita, mas com o tempo fomos nos distanciando. Percebi que ele ficava sem graça com quase tudo, até para se divertir. Numa balada, tinha vergonha de dançar e os outros rirem. Em um show, aplaudia comedidamente por vergonha de se expor e não gritava para não ser repreendido. Em um evento público, não gostava de falar e nem de fazer perguntas. Ele sentia muita vergonha de si mesmo. Por mais que eu achasse bobo da parte dele, poderia aceitar, ele era assim. O problema foi ele sentir vergonha de mim quando eu fazia alguma dessas coisas.
Ele era aquele tipo que dizia “não tenho dificuldade” em vez de dizer “tenho facilidade”. E isso muda tudo. Ele não entendia que existiam outras concepções de felicidade. Na verdade, ele não sabia que felicidade é algo que se concebe. Ele provavelmente não subiu no pé de manga no quintal da casa da avó, não alimentou beija-flores. Devia achar manga verde ruim ou imprópria para o consumo, quando manga verde com sal, saboreada em frente à casa da avó, foi uma das coisas mais gostosas da minha infância. Hoje vejo que ele foi apenas um episódio pontual em minha vida. O desejo da liberdade era meu, sempre foi meu. Minha liberdade não era contingente.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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