Para
além das dores, minha adolescência foi marcada por dois eventos que
mudaram definitivamente a minha relação com a minha mãe. O
primeiro foi quando eu tinha catorze anos, meses depois de você
morrer, vó. Os sobrinhos do meu pai, Carlos e Cecília, perderam a
mãe, minha tia Ana, e, como o pai deles havia falecido havia muitos
anos, ficaram órfãos. Eles moravam em Limeira, no interior de São
Paulo, e meu pai decidiu que seria melhor trazê-los para morar com a
gente em Santos. Você imagina: o apartamento de dois quartos que mal
dava para comportar a gente precisou receber mais duas pessoas.
Meus
irmãos e eu aceitamos bem porque fomos criados sabendo o quão
importante é apoiar a família. Pra minha mãe, porém, não foi
fácil, pois enquanto o meu pai bancava o herói para a comunidade,
era ela quem precisava cuidar de todo mundo. Sobrecarregada, ficava
ainda mais mal-humorada quando meu pai passava a imagem do bonzinho
incompreendido e a colocava no lugar da amargurada. Como eu o
idolatrava, era a sua caçulinha, por muitos anos eu achei que ele
era o bom e ela, a má, aquela que batia e brigava (meu pai jamais me
deu uma surra). Ele era uma espécie de refúgio, para quem corríamos
para evitar uns tapas. Mas essa era apenas uma saída temporária:
era só ele sair para trabalhar que minha mãe terminava o que havia
sido impedida de começar.
Meu
pai era o cara legal que levava a gente à praia, para pescar, ao
cinema, ao teatro. O homem inteligente que parecia uma enciclopédia
humana, sabia quem eram as personalidades que deram nome às ruas que
passávamos, entendia de política, filosofia e literatura, era
filiado ao Partido Comunista, aprendeu a jogar xadrez vendo a gente
nas aulas. Era capaz de interromper o samba numa festa para exibir a
medalha que eu havia ganhado no campeonato santista de xadrez ou os
diplomas de melhor aluna confeccionados pela escola. Reunia a gente
em volta dele para ler, contar piadas.
Sabia
o dia em que recebíamos o boletim e dava sermões de horas caso
algum de nós tivesse tirado nota vermelha; deixava de castigo quem
ficasse de recuperação; tomava a tabuada e, caso hesitássemos na
resposta, nos mandava estudar. E enquanto estudávamos na frente
dele, ele ainda nos punia fazendo-nos ouvir os gritos de alegria dos
vizinhos brincando na rua. Mas ele estava nos oferecendo
oportunidades que jamais teve. Fui a única a concluir o curso de
inglês porque nunca repeti. Quem repetia, não recebia uma segunda
chance: “Eu sou estivador, carrego sacas de açúcar nas costas. Se
vocês não valorizam as oportunidades, terão que pagar vocês
mesmos”. E não tinha conversa.
Ele
falava errado “jaguaritica” só pra gente dar risada, e não
importava quantas centenas de vezes ele repetisse, sempre era
engraçado. Quando nos dava dinheiro para ir à bomboniere do seu
Agenor, ele dizia “Vão lá no seu Antenor comprar sorvete e doces”
e a gente chorava de rir. As piadas dele davam mais sabor aos picolés
de chocolate e aos chicletes de tutti frutti que a gente tanto
gostava. Mas sempre reclamava quando voltávamos com os salgadinhos
de “isopor”, como ele chamava.
Mas
não era meu pai quem separava as brigas, quem ia dormir pensando no
que cozinhar para sete pessoas no dia seguinte, quem lavava as roupas
e tinha que esfregá-las à mão quando a máquina de lavar quebrava.
Era minha mãe quem precisava ir às reuniões de escola, quem
cobrava para que fizéssemos as tarefas de casa e quem tinha que
disputar com meia dúzia de adolescentes o único banheiro da casa,
onde costumava fumar vagarosamente seu cigarro numa horinha de
descanso. Era fácil para meu pai posar de bem-resolvido na vida
conjugal. Minha mãe era quem ficava sobrecarregada com os cuidados
conosco — e quando ela gritava com a gente ele a chamava de louca.
Hoje percebo a injustiça e o viés machista dessa divisão de
papéis.
Mas,
quando eu tinha catorze anos, meu pai era a figura que me tirava da
rotina, da mesmice, dos berros de “Vai lavar a louça” e das
surras de cinto. Ele nos levava para o clube, para a natação, mesmo
nos dias de inverno, não se importava com o frio que fazia. Nossas
vidas eram cheias de altos e baixos. Ao mesmo tempo em que morávamos
em um apartamento pequeno, éramos sócios de um grande clube na
cidade; não tínhamos carro, mas eu estudava inglês numa das
maiores escolas da cidade. Meu pai queria que a gente tivesse acesso
ao que poderia nos cultivar intelectual e socialmente, e não ao que
nos faria ser meros consumidores. Quando almoçávamos no clube, após
passar o dia na piscina, parávamos o restaurante com a nossa
presença de uma família preta. As famílias brancas iam embora de
carro e passavam pela gente no ponto de ônibus.
Minha
mãe quase não ia ao clube ou à praia com a gente, o que frustrava
meu pai. Algumas vezes ele até disse que ela era “sem cultura”
por isso. Mas a verdade era que minha mãe queria aproveitar o máximo
possível da sua rara solidão, assistir à novela na única
televisão da casa sem gritos de filhos e sobrinhos para atrapalhar.
Ela devia amar quando meu pai nos acordava às cinco da manhã para
pescar na vila em que ele morou no Guarujá antes de eu nascer.
Com
o tempo, percebi que meu pai não era a pessoa que sentia falta de
quem limpava a casa: ele sentia falta da casa limpa. O “sua mãe é
louca” foi me incomodando e parando de fazer sentido. Dona Erani
era extremamente rígida comigo e minha irmã porque, como você
sabe, parte da família de Piracicaba dizia que, por morarmos numa
cidade maior e de praia, Dara e eu seríamos desajustadas —
leia-se: “promíscuas”.
Essa
fofoca se tornou uma ameaça que pairava sobre a cabeça da minha
mãe. Receosa do que poderia acontecer, ela não nos deixava respirar
sem que ela soubesse onde estávamos ou sem que meus irmãos
estivessem com a gente. Meu pai dizia que ela exagerava e, claro,
concordávamos com ele. Até que eu passei a observar melhor as
coisas.
Não
sei se teve relação com seu falecimento, vó, mas eu soube dessas
fofocas de Piracicaba pela minha própria mãe, que, em um raro
momento de humanidade, se mostrou frágil e me contou seus temores.
Não que os parentes fofoqueiros fossem más pessoas: eles
simplesmente não conheciam o que era uma vida fora de certos
parâmetros. Todas as gerações anteriores a eles tampouco. E sair
daquela cidade de interior para enfrentar a vida em São Paulo soava
como afronta. Minha mãe era vista como bem-sucedida por morar em
apartamento próprio, por ter um marido trabalhador. Nossa vida era
simples mas, para quem olhava a partir de uma perspectiva de
escassez, era uma vida boa.
Um
tempo depois dessa confissão, os meios-irmãos dos meus primos
vieram visitá-los em nossa casa. Meus pais os receberam bem, como
faziam com todas as visitas, e lembro que em dado momento minha irmã
e eu dissemos que entendíamos minha mãe por ela ser rígida, que
era compreensível ela ter medo do julgamento da família, afinal,
tinha sido uma das poucas a ter coragem de sair de casa.
Sua
filha saiu da sua casa aos dezoito anos por não aguentar tanta
repressão, vó. Morou em casa de família em São Paulo até
conhecer meu pai e casar com ele em Santos, onde ele vivia. Era
ousadia demais para uma mulher do interior nascida em 1950. E como
ela não havia se “perdido”, a maldição foi jogada nas filhas.
Ela precisava garantir que minha irmã e eu daríamos “certo”, ou
seja, não ficaríamos grávidas na adolescência. Nem que para isso
ela precisasse ser a mulher mais dura possível, que não permitia
nem que as filhas fossem à praia sozinhas.
Quando
falamos na frente das visitas que nós a entendíamos, lembro como se
fosse hoje da emoção que ela tentou disfarçar. A partir daquele
dia, nossa relação foi mudando. Dona Erani foi ficando mais suave,
sem perder a brabeza. Era quase intuitivo absolvê-la em vida de
tantas violências que ela aguentou calada. Demorei a entender, mas
minha mãe foi um espírito livre enjaulado. Até o desejo dela de
jogar basquete na adolescência foi proibido, porque os parentes
acreditavam que esse era um esporte para lésbicas, e as meninas da
família não podiam cometer esse “pecado”. O dia que ela me
contou desse sonho não realizado, a tristeza em seus olhos brotou.
De alguma forma, ter se mudado para a capital mostrou o quão
corajosa ela foi. Ter enfrentado um patrão, ameaçando jogar óleo
quente nele para que parasse de assediá-la, é típico da ousadia
que herdei dela. Minha mãe teve suas asas cortadas por muitas
tesouras, e dizer a ela que a compreendíamos foi como fazer um
pedaço se colar.
O
segundo evento que mudou nossa relação aconteceu quando eu tinha
dezesseis anos. Lembro como se fosse hoje: eu, magrinha, de top e
bermuda vermelha, emburrada varrendo a casa. Comecei pela sala,
passei pelo nosso quarto, o corredor e cheguei até o quarto dos meus
pais. Eu me distraía facilmente quando realizava uma tarefa chata.
Sentei na cama da minha mãe por um tempo para fazer algo que ela
detestava: cumprir minhas tarefas sentada. Fiquei lá, sentada,
passando a vassoura no tapete ao lado da cama e pensando “na morte
da bezerra”, como ela gostava de dizer. Acabei me distraindo e não
percebi quando ela entrou. Levantei rapidamente, no susto, já
esperando um puxão de orelha, mas ela me disse pra sentar. Fiquei
sem entender, achei que ela estivesse inventando outra modalidade de
bronca, mas obedeci, claro. Ela começou a dizer o quanto sempre me
amou, me desejou, o quanto eu era o bebê dela, algo que ela dizia
por eu ser a mais nova. Segui sem entender, mas estava gostando de
ver aquela demonstração espontânea de amor. Num dado momento, sua
voz ficou séria e ela disse:
“Quando
eu engravidei de você, seus irmãos eram todos bebês, sua irmã
tinha meses ainda. Eu fiquei desesperada, como ia ser cuidar de
quatro filhos numa casa que quando chovia até cobra entrava? Como
seria se seu pai não conseguisse o registro de estivador, a tão
sonhada carteira preta? Passaríamos necessidade? Eu tive muito
medo e resolvi procurar um curandeiro da vila, que oferecia chás
abortivos e simpatias pra que a gente interrompesse a gravidez. Ele
disse que era pra eu tomar um chá, segurar uma chave e fazer uma
reza. Eu fui para casa, fiz o que ele mandou e nada. Fiquei
preocupada e voltei lá. Ele me disse que eu não deveria ter
segurado a chave com força ou que não tinha rezado com fé. Voltei
para casa, fiz novamente o que ele mandou e nada. Você estava lá
dentro dizendo: ‘Não saio, não saio, não saio’.”
Ela
então deu um sorrisinho sem graça para quebrar a tensão. Eu segui
em silêncio e ela prosseguiu.
“Filha,
passei sua gravidez toda com medo, não ia me perdoar se você
nascesse com algum problema que eu poderia ter causado. E eu não
pude dividir isso com ninguém, porque sabia que as pessoas me
condenariam. Quando você nasceu, havia uma lua cheia linda em São
Paulo. Eu havia ido à capital para visitar sua tia e você
antecipou sua chegada. Nasceu em São Paulo, às 18 h de uma
sexta-feira. Assim que te peguei no colo, comecei a apalpar seu corpo
pra ver se tinha alguma coisa errada, contei os dedinhos das mãos e
dos pés e fiquei tão aliviada em ver que você era saudável. E
agora está aí, essa moça desse tamanho! Entendo se você ficar com
raiva. Eu te peço perdão, filha.”
Eu
lembro de ter escutado tudo muito atentamente, e confesso que foi uma
alegria ver a minha mãe sendo a Erani. Ela nunca havia falado comigo
daquela maneira, mas, talvez lembrando daquela conversa que tivemos
anos antes, ela se sentiu segura para me contar algo que a assombrava
havia dezesseis anos. Ela tinha pressa.
Não
senti raiva, mágoa, nada. Os segundos que antecederam a quebra do
meu silêncio devem ter sido assustadores. Com calma, respondi que o
importante era que ela me amava, que eu entendia, que devia ter sido
difícil engravidar de mais uma criança quando meu pai passava a
maior parte do tempo trabalhando. Que estava absolutamente tudo bem.
Vó,
confesso que na hora passou pela minha cabeça fingir tristeza, para
ser colocada num lugar de “coitada da mãe”, mas a ideia não foi
forte o suficiente para superar o amor que eu sentia por ela. Foi uma
das conversas mais importantes da minha vida. Após esse episódio,
nossa relação se transformou.
Meses
depois, ela descobriu um tumor no rim, do tamanho de uma laranja. A
equipe médica a desacreditou e foi um momento de muita apreensão.
Desafiando todas as probabilidades, ela sobreviveu à grave cirurgia,
fez quimio e radioterapia, passou um período difícil sendo cuidada
por nós em casa, mas milagrosamente se recuperou. Precisou ser
internada algumas vezes por conta da diabetes — era teimosa, nada a
impedia de comer os quindins de que tanto gostava —, mas fico feliz
em dizer que ela teve alguns anos de alegria.
Minha
mãe passou a ser minha amiga também. Começamos a sair juntas.
Apresentei a ela os prazeres da culinária japonesa, passei a
convidá-la a ir comigo ver uma amiga cantora se apresentar em
shoppings ou eventos na praia. Quando algum garoto bonito passava,
ela perguntava: “Não viu o garoto bonito te olhando, não?”. Era
engraçado ver minha mãe me enxergando como uma adolescente.
Nossos
últimos anos foram incríveis, apesar da doença dela. Viajou com
amigas, foi a festas comigo. Ficávamos em casa juntas, conversando,
nos conhecendo como Erani e Djamila. Era como se minha mãe tivesse
entendido que eu tinha maturidade para tomar decisões, que ela não
precisava mais se preocupar comigo a ponto de me proibir de sair.
Talvez a minha compreensão a tenha feito entender que sua missão
comigo estava cumprida, que teria valido a pena todos os anos de
rigidez, que ela poderia morrer em paz, então seria importante
desfrutarmos da companhia uma da outra como amigas, por prazer e não
por obrigação.
Aos
dezenove anos, me apaixonei perdidamente por um rapaz que conheci no
trabalho, vó, e ela foi uma das primeiras pessoas a saber. No dia
que ele foi me buscar em casa para irmos ao cinema, ela o recebeu com
alegria. Ficou, aliás, mais apaixonada por ele do que eu, sobretudo
quando soube que ele era messiânico e havia se oferecido para
ministrar nela o johrei, um tipo de passe daquela religião.
Ela não se opôs quando eu, por influência dele, passei a
frequentar a igreja messiânica, e me perguntava sempre quando o
veria de novo — coisa que eu quase não respondia, porque não
queria dizer que a família dele, descendente de japoneses, se opunha
ao nosso relacionamento.
Mas
eu realmente me apaixonei por esse rapaz, pois foi o primeiro a me
tratar com respeito e delicadeza. Ele era espiritualizado e havia me
ensinado muitas coisas, gostava de apreciar a natureza, era profundo
e inteligente. Ele sempre me levava em casa depois de um passeio,
trocávamos cartas e conversávamos por horas no telefone (mas claro,
vó, havia dias em que a conversa era chata, ninguém é adorável o
tempo todo). Foi muito marcante para aquele momento da minha vida.
Para além da oposição dos pais dele, o fim se deu por certa
arrogância: um dia, revelou que havia aparecido na minha vida para
me libertar. Ele acreditava que era espiritualmente superior, falava
em coisas de vidas passadas, que poderia ser a ponte para minha
iluminação. Estava sempre querendo me dizer o que fazer, me
moldando pra ser algo.
Por
mais que o considerasse muito, me senti incomodada. Não foi uma
separação súbita, mas com o tempo fomos nos distanciando. Percebi
que ele ficava sem graça com quase tudo, até para se divertir. Numa
balada, tinha vergonha de dançar e os outros rirem. Em um show,
aplaudia comedidamente por vergonha de se expor e não gritava para
não ser repreendido. Em um evento público, não gostava de falar e
nem de fazer perguntas. Ele sentia muita vergonha de si mesmo. Por
mais que eu achasse bobo da parte dele, poderia aceitar, ele era
assim. O problema foi ele sentir vergonha de mim quando eu fazia
alguma dessas coisas.
Ele
era aquele tipo que dizia “não tenho dificuldade” em vez de
dizer “tenho facilidade”. E isso muda tudo. Ele não entendia que
existiam outras concepções de felicidade. Na verdade, ele não
sabia que felicidade é algo que se concebe. Ele provavelmente não
subiu no pé de manga no quintal da casa da avó, não alimentou
beija-flores. Devia achar manga verde ruim ou imprópria para o
consumo, quando manga verde com sal, saboreada em frente à casa da
avó, foi uma das coisas mais gostosas da minha infância. Hoje vejo
que ele foi apenas um episódio pontual em minha vida. O desejo da
liberdade era meu, sempre foi meu. Minha liberdade não era
contingente.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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