No
meio de muita aflição e tristeza houve um momento, lembras-te? Foi
por acaso, foi de repente, foi roubado, e se alguém tivesse tido a
mais leve suspeita então seria a ignomínia total. Mas houve um
momento; e dentro desse momento houve silêncio e beleza.
Seria
impossível descrever o ambiente, estranho a nós ambos; e não havia
nem cantos de pássaro nem murmúrio de mar. Talvez um ruído de
elevador, uma campainha tocando no interior de outro apartamento, o
fragor de um bonde lá fora, sons de um rádio distante, vagas vozes
— e, me lembro, havia um feixe de luz oblíquo dando no chão e na
parte de baixo de uma porta, recordo vagamente a cor rósea da
parede.
Serão
lembranças verdadeiras? Como voltar àquele apartamento,
reconstituir aquelas duas horas da tarde, lembrar a data, verificar a
posição dos móveis e o ângulo de incidência do sol? Do chão ou
da porta do banheiro — creio que do chão — ele iluminava teus
olhos claros que me fitavam quietos. O edifício, eu sei qual é.
Seria possível procurar aquele vago casal amigo que encontramos na
praia aquele dia e perguntar qual o número do apartamento em que
então moravam?
Conseguiríamos
licença do atual morador ou quem sabe penetraríamos sorrateiramente
no apartamento, e então a mulher daquele vago casal nos diria aqui
era o quarto, aqui o armário, a cama, além ficava o espelho...
Ah,
haveria menos rumor na rua naquele tempo; menos automóveis estariam
passando lá fora; mas certamente nas mesmas duas1 da tarde de
domingo, embora não haja mais bondes, haveria algum rádio ligado
esperando o começo de algum jogo de futebol, e o sol entraria no
mesmo ângulo pela mesma janela. Pesquisaríamos os móveis antigos,
iríamos comprá-los onde estivessem hoje, decerto a antiga dona se
lembra a quem os vendeu e como eram — não creio que ainda sejam
seus. Lembro-me que eram móveis banais; nós os colocaríamos no
mesmo lugar e disposição...
Houve
um momento. Talvez a pintura da parede hoje seja diferente; creio que
era rosa. Tua roupa de banho era preta, tinha alça, lembro as marcas
das alças. Foi subitamente, havia várias pessoas juntas, faltou
água na casa de alguém, telefonou-se para dizer que não esperassem
para o almoço, houve desencontros na praia, apareceu o casal — e
então, por milagre, tudo o que era contra nós, as circunstâncias,
os olhares, os horários, os esquemas da vida civil, as famílias com
seus rádios, suas feijoadas dominicais, os encontros de esquina, as
conveniências e os medos, tudo o que nos separava subitamente
falhou, o casal desculpou-se e partiu, iam almoçar com a mãe dela,
a empregada sumiu, eu tinha saído e por acaso tive de voltar — na
verdade eu não poderia reconstituir os detalhes tediosos e vulgares;
a lembrança que ficou é de um momento em que boiamos no bojo de uma
nuvem, longe da cidade e do mundo, e todos os ruídos se distanciaram
e se apagaram, ainda estavas toda salgada do mar, teus olhos me
miravam quietos, sérios, teus olhos sempre de menina, teus cabelos
molhados, teu grande corpo de um dourado pálido.
Houve
um momento, aquele momento em que a carne se faz alma; e depois,
muito depois, me disseste a mesma coisa que eu sentira, aquele
momento suspenso no ar como uma flor, o estranho silêncio, sim, te
lembras!
E
depois as coisas banais em que a vida nos tornou, os caminhos
complicados que cada um teve de fazer pela vida. Mas o pior não
aconteceu. Nada, ninguém nos destruiu aquele momento, nem voz, nem
porta batendo, nem telefone; o momento foi acaso e loucura, mas
dentro dele houve um instante de serenidade pura e infinita beleza.
Ah,
não me podes responder. Falo sozinho. Estás longe demais; e talvez
tivesse de olhar duas vezes para reconhecer neste homem de cabelos
brancos e de cara marcada pela vida aquele que fui um dia, o que te
fez sofrer, e sofreu; mas quero que saibas que te vejo apenas como
eras naquele momento, teu corpo ainda molhado do mar às duas horas
da tarde; e milhares, milhões de relógios eternamente trabalhando
contra nós nos bolsos, nos pulsos, nas paredes, todos cessaram de se
mover porque naquele momento eras bela e pura como uma deusa e eras
minha eternamente; eternamente. Naquele edifício daquela rua,
naquele apartamento, entre aquelas paredes e aquele feixe de sol,
eternamente. Além das nuvens, além dos mares, eternamente, às duas
horas da tarde de domingo, eternamente.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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