sábado, 17 de dezembro de 2022

A Lua Vem da Ásia | Segunda Parte — Cosmogonia

A

Rua da Liberdade. Este, pelo menos, o nome que estava na placa da esquina, em letras bem visíveis, para quem quisesse ler.
Pode parecer estranha coincidência, mas foi a essa rua que vim ter em plena madrugada, depois que me separei de Hernández e do Dr. Keither, para que a polícia internacional não viesse a desconfiar de nós três juntos. E foi nessa rua, sob a tempestade implacável, que dei com o corpo do enforcado na árvore — um homem cheio de barbas e usando um pince-nez arcaico, e que a princípio julguei ser um Judas em sábado de aleluia, cônscio do seu importante papel.
Eu me abrigara sob a árvore para fugir da chuva, e aquele corpo oscilante a dois palmos do meu nariz acabou por despertar-me a curiosidade, como penso que despertaria até ao mais cego dos cegos, se é que cegos andam à solta pelas ruas em noite de tempestade. Quando ele passou a oscilar um pouco menos, aproximei-me decididamente e arranquei o bilhete que ele trazia suspenso do pescoço e que dizia: “Ao Sr. delegado de polícia”. Do bilhete, que não dizia nada de interessante, passei aos bolsos do paletó e das calças, de onde arrecadei uma polpuda carteira com algumas notas de mil francos e um relógio de ouro em perfeito estado de funcionamento, que me pôs a par das horas dentro da madrugada fria e deserta.
Sem ao menos despedir-me do meu benfeitor, afastei-me às pressas para um quarteirão vizinho, onde sob a luz de um lampião, certifiquei-me de que não andara sonhando e pude contar calmamente o dinheiro que os céus me haviam mandado justamente no momento em que eu mais precisava dele. Ao todo 6.250 francos, se não contei mal, e que me permitiram procurar logo o primeiro hotel barato que me aparecesse pela frente, e de onde justamente estou escrevendo este capítulo antes que o dia amanheça.
O quarto — para dois: eu e meu irmão gêmeo — não é grande coisa, mas também para um foragido de um campo de concentração não se poderia desejar coisa melhor, sobretudo levando-se em conta que o temporal lá fora é cada vez mais forte e que eu estou ensopado como um frango ao molho pardo. Uma cadeira, duas camas, um cabide, um urinol de alumínio, e um largo espelho na parede onde meu irmão aparece sempre que dele me aproximo para pentear-me ou corrigir o laço impecável da minha gravata. Há também, ia esquecendo-me, uma lâmpada acesa suspensa do teto, mas penso que isso não deva ser incluído propriamente no mobiliário, como não o deve ser o trinco da porta, fechado a sete chaves.
Não pude trazer comigo, como desejava, o voluptuoso príncipe Danilo, cujas curvas já começavam a interessar-me vivamente, e isso não só porque o terrível mister Boss não me permitiu qualquer confidência nesse sentido, como ainda porque a fuga se deu antes do tempo previsto e meio atabalhoadamente, quando o campo se achava cheio de visitantes e a porta se encontrava desmesuradamente aberta. Eu, Hernández e o Dr. Keither simplesmente nos dirigimos à portaria, imobilizamos o guarda que fazia às vezes de porteiro (com dois possantes jabs de direita) e saímos acendendo nossos cigarros com o ar mais tranquilo deste mundo. Não houve derramamento de sangue, como fora previsto, nem sequer fomos incomodados ao longo da rua arborizada e cheia de sol que encontramos pela frente e que só então ficamos sabendo chamar-se avenida dos Inconfidentes, como de fato o era.
Chegados à esquina, trocamos algumas palavras amáveis e tratamos de safar-nos cada um para um lado diferente, a fim de evitar possíveis suspeitas — sendo que Hernández se pôs logo em desabalada carreira por uma rua estreita e sem nome, que sem dúvida o deve ter levado até a China. Eu ainda tive tempo de beijar o Dr. Keither na face por duas vezes, antes de tomar um ônibus que passava em marcha moderada e que me levou em menos de meia hora ao centro comercial da cidade, que ainda não sei dizer bem qual seja.
Com os bolsos vazios e gemendo de fome, perambulei de um lado para outro sob a chuva que começava a cair, em meio a criaturas estranhas que nem sequer se dignavam de encarar-me de frente — até que, noite alta, fui dar com o corpo do meu benfeitor suspenso da árvore e com a metade da língua de fora, o que me permitiu esta situação de relativa abastança em que ora me encontro.
Esquecia-me de dizer que foi o dono do hotel — um senhor muito amável e com cara de cadáver — quem me deu o papel e o lápis necessários para que eu pudesse continuar escrevendo esta espécie de Diário dentro da Noite, e que um dia, se Deus quiser, levarei em mãos ao editor Gallimard, em Paris, para que dele possa fazer o best-seller que se dúvida ele é e merece ser.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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