A
Rua
da Liberdade. Este, pelo menos, o nome que estava na placa da
esquina, em letras bem visíveis, para quem quisesse ler.
Pode
parecer estranha coincidência, mas foi a essa rua que vim ter em
plena madrugada, depois que me separei de Hernández e do Dr.
Keither, para que a polícia internacional não viesse a desconfiar
de nós três juntos. E foi nessa rua, sob a tempestade implacável,
que dei com o corpo do enforcado na árvore — um homem cheio de
barbas e usando um pince-nez arcaico, e que a princípio julguei ser
um Judas em sábado de aleluia, cônscio do seu importante papel.
Eu
me abrigara sob a árvore para fugir da chuva, e aquele corpo
oscilante a dois palmos do meu nariz acabou por despertar-me a
curiosidade, como penso que despertaria até ao mais cego dos cegos,
se é que cegos andam à solta pelas ruas em noite de tempestade.
Quando ele passou a oscilar um pouco menos, aproximei-me
decididamente e arranquei o bilhete que ele trazia suspenso do
pescoço e que dizia: “Ao Sr. delegado de polícia”. Do bilhete,
que não dizia nada de interessante, passei aos bolsos do paletó e
das calças, de onde arrecadei uma polpuda carteira com algumas notas
de mil francos e um relógio de ouro em perfeito estado de
funcionamento, que me pôs a par das horas dentro da madrugada fria e
deserta.
Sem
ao menos despedir-me do meu benfeitor, afastei-me às pressas para um
quarteirão vizinho, onde sob a luz de um lampião, certifiquei-me de
que não andara sonhando e pude contar calmamente o dinheiro que os
céus me haviam mandado justamente no momento em que eu mais
precisava dele. Ao todo 6.250 francos, se não contei mal, e que me
permitiram procurar logo o primeiro hotel barato que me aparecesse
pela frente, e de onde justamente estou escrevendo este capítulo
antes que o dia amanheça.
O
quarto — para dois: eu e meu irmão gêmeo — não é grande
coisa, mas também para um foragido de um campo de concentração não
se poderia desejar coisa melhor, sobretudo levando-se em conta que o
temporal lá fora é cada vez mais forte e que eu estou ensopado como
um frango ao molho pardo. Uma cadeira, duas camas, um cabide, um
urinol de alumínio, e um largo espelho na parede onde meu irmão
aparece sempre que dele me aproximo para pentear-me ou corrigir o
laço impecável da minha gravata. Há também, ia esquecendo-me, uma
lâmpada acesa suspensa do teto, mas penso que isso não deva ser
incluído propriamente no mobiliário, como não o deve ser o trinco
da porta, fechado a sete chaves.
Não
pude trazer comigo, como desejava, o voluptuoso príncipe Danilo,
cujas curvas já começavam a interessar-me vivamente, e isso não só
porque o terrível mister Boss não me permitiu qualquer confidência
nesse sentido, como ainda porque a fuga se deu antes do tempo
previsto e meio atabalhoadamente, quando o campo se achava cheio de
visitantes e a porta se encontrava desmesuradamente aberta. Eu,
Hernández e o Dr. Keither simplesmente nos dirigimos à portaria,
imobilizamos o guarda que fazia às vezes de porteiro (com dois
possantes jabs de direita) e saímos acendendo nossos cigarros com o
ar mais tranquilo deste mundo. Não houve derramamento de sangue,
como fora previsto, nem sequer fomos incomodados ao longo da rua
arborizada e cheia de sol que encontramos pela frente e que só então
ficamos sabendo chamar-se avenida dos Inconfidentes, como de fato o
era.
Chegados
à esquina, trocamos algumas palavras amáveis e tratamos de
safar-nos cada um para um lado diferente, a fim de evitar possíveis
suspeitas — sendo que Hernández se pôs logo em desabalada
carreira por uma rua estreita e sem nome, que sem dúvida o deve ter
levado até a China. Eu ainda tive tempo de beijar o Dr. Keither na
face por duas vezes, antes de tomar um ônibus que passava em marcha
moderada e que me levou em menos de meia hora ao centro comercial da
cidade, que ainda não sei dizer bem qual seja.
Com
os bolsos vazios e gemendo de fome, perambulei de um lado para outro
sob a chuva que começava a cair, em meio a criaturas estranhas que
nem sequer se dignavam de encarar-me de frente — até que, noite
alta, fui dar com o corpo do meu benfeitor suspenso da árvore e com
a metade da língua de fora, o que me permitiu esta situação de
relativa abastança em que ora me encontro.
Esquecia-me
de dizer que foi o dono do hotel — um senhor muito amável e com
cara de cadáver — quem me deu o papel e o lápis necessários para
que eu pudesse continuar escrevendo esta espécie de Diário dentro
da Noite, e que um dia, se Deus quiser, levarei em mãos ao editor
Gallimard, em Paris, para que dele possa fazer o best-seller que se
dúvida ele é e merece ser.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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