Antes
que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela
própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido
enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado
como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?
Mas
agora que ela estava de novo “bem”, tomariam o ônibus, ela
olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois
jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade.
Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com intimidade e
conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua
mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais.
Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres,
submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo
enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza
natural, e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade —
e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma,
enfim, voltando à insignificância com reconhecimento. Como um gato
que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido,
encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando. As pessoas
felizmente ajudavam a fazê-la sentir que agora estava “bem”. Sem
a fitarem, ajudavam-na ativamente a esquecer, fingindo elas próprias
o esquecimento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de
remédio. Ou tinham esquecido realmente, quem sabe. Há quanto tempo
não via Armando enfim se recostar com abandono, esquecido dela? E
ela mesma?
Interrompendo
a arrumação da penteadeira, Laura olhou-se ao espelho: e ela mesma,
há quanto tempo? Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos
eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os
olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a
seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher. Por acaso
alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo
de seus olhos, alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos
filhos que ela nunca tivera?
Com
seu gosto minucioso pelo método — o mesmo que a fazia quando aluna
copiar com letra perfeita os pontos da aula sem compreendê-los —
com seu gosto pelo método, agora reassumido, planejava arrumar a
casa antes que a empregada saísse de folga para que, uma vez Maria
na rua, ela não precisasse fazer mais nada, senão 1º) calmamente
vestir-se; 2º) esperar Armando já pronta; 3º) o terceiro o que
era? Pois é. Era isso mesmo o que faria. E poria o vestido marrom
com gola de renda creme. Com seu banho tomado. Já no tempo do Sacré
Coeur ela fora arrumada e limpa, com um gosto pela higiene pessoal e
um certo horror à confusão. O que não fizera nunca com que
Carlota, já naquele tempo um pouco original, a admirasse. A reação
das duas sempre fora diferente. Carlota ambiciosa e rindo com força:
ela, Laura, um pouco lenta, e por assim dizer cuidando em se manter
sempre lenta; Carlota não vendo perigo em nada. E ela cuidadosa.
Quando lhe haviam dado para ler a “Imitação de Cristo”, com um
ardor de burra ela lera sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela
sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido — perdido na luz,
mas perigosamente perdido. Cristo era a pior tentação. E Carlota
nem ao menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha
lido. Pois é. Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira.
Mas
quando viu as horas lembrou-se, num sobressalto que a fez levar a mão
ao peito, que se esquecera de tomar o copo de leite.
Encaminhou-se
para a cozinha e, como se tivesse culposamente traído com seu
descuido Armando e os amigos devotados, ainda junto da geladeira
bebeu os primeiros goles com um devagar ansioso, concentrando-se em
cada gole com fé como se estivesse indenizando a todos e se
penitenciando. Se o médico dissera: “Tome leite entre as
refeições, nunca fique com o estômago vazio pois isso dá
ansiedade” — então, mesmo sem ameaça de ansiedade, ela tomava
sem discutir gole por gole, dia após dia, não falhara nunca,
obedecendo de olhos fechados, com um ligeiro ardor para que não
pudesse enxergar em si a menor incredulidade. O embaraçante é que o
médico parecia contradizer-se quando, ao mesmo tempo que recomendava
uma ordem precisa que ela queria seguir com o zelo de uma convertida,
dissera também: “Abandone-se, tente tudo suavemente, não se
esforce por conseguir — esqueça completamente o que aconteceu e
tudo voltará com naturalidade”. E lhe dera uma palmada nas costas,
o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer. Mas na sua humilde
opinião uma ordem parecia anular a outra, como se lhe pedissem para
comer farinha e assobiar ao mesmo tempo. Para fundi-las numa só ela
passara a usar um engenho: aquele copo de leite que terminara por
ganhar um secreto poder, que tinha dentro de cada gole quase o gosto
de uma palavra e renovava a forte palmada nas costas, aquele copo de
leite ela o levava à sala, onde se sentava “com muita
naturalidade”, fingindo falta de interesse, “não se esforçando”
— e assim cumprindo espertamente a segunda ordem. “Não tem
importância que eu engorde”, pensou, o principal nunca fora a
beleza.
Sentou-se
no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que, tão
recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranquilidade de
uma casa alheia. O que era tão satisfatório: ao contrário de
Carlota, que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura
tinha tal prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal; de certo
modo perfeita por ser impessoal.
Oh
como era bom estar de volta, realmente de volta, sorriu ela
satisfeita. Segurando o copo quase vazio, fechou os olhos com um
suspiro de cansaço bom. Passara a ferro as camisas de Armando,
fizera listas metódicas para o dia seguinte, calculara
minuciosamente o que gastara de manhã na feira, não parara na
verdade um instante sequer. Oh como era bom estar de novo cansada.
Se
uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as
pessoas da Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto. Sem
entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se
cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa
nuance de vício e esse refinamento de vida.
E
ela retornara enfim da perfeição do planeta Marte. Ela, que nunca
ambicionara senão ser a mulher de um homem, reencontrava grata sua
parte diariamente falível. De olhos fechados suspirou reconhecida.
Há quanto tempo não se cansava? Mas agora sentia-se todos os dias
quase exausta e passara, por exemplo, as camisas de Armando, sempre
gostara de passar a ferro e, sem modéstia, era uma passadeira de mão
cheia. E depois ficava exausta como uma recompensa. Não mais aquela
falta alerta de fadiga. Não mais aquele ponto vazio e acordado e
horrivelmente maravilhoso dentro de si. Não mais aquela terrível
independência. Não mais a facilidade monstruosa e simples de não
dormir — nem de dia nem de noite — que na sua discrição a
fizera subitamente super-humana em relação a um marido cansado e
perplexo. Ele, com aquele hálito que tinha quando estava mudo de
preocupação, o que dava a ela uma piedade pungente, sim, mesmo
dentro de sua perfeição acordada, a piedade e o amor, ela
super-humana e tranquila no seu isolamento brilhante, e ele, quando
tímido, vinha visitá-la levando maçãs e uvas que a enfermeira com
um levantar de ombros comia, ele fazendo visita de cerimônia como um
namorado, com o hálito infeliz e um sorriso fixo, esforçando-se no
seu heroísmo por compreender, ele que a recebera de um pai e de um
padre, e que não sabia o que fazer com essa moça da Tijuca que
inesperadamente, como um barco tranquilo se empluma nas águas, se
tornara super- humana. Agora, nada mais disso. Nunca mais. Oh, fora
apenas uma fraqueza; o gênio era a pior tentação. Mas depois ela
voltara tão completamente que até já começava de novo a precisar
de tomar cuidado para não amolar os outros com seu velho gosto pelo
detalhe. Ela bem se lembrava das colegas do Sacré Coeur lhe dizendo:
“Você já contou isso mil vezes!”, ela se lembrava com um
sorriso constrangido. Voltara tão completamente: agora todos os dias
ela se cansava, todos os dias seu rosto decaía ao entardecer, e a
noite então tinha a sua antiga finalidade, não era apenas a
perfeita noite estrelada. E tudo se completava harmonioso. E, como
para todo o mundo, cada dia a fatigava; como todo o mundo, humana e
perecível. Não mais aquela perfeição, não mais aquela juventude.
Não mais aquela coisa que um dia se alastrara clara, como um câncer,
a sua alma.
Abriu
os olhos pesados de sono, sentindo o bom copo sólido nas mãos, mas
fechou-os de novo com um sorriso confortável de cansaço,
banhando-se como um novo-rico em todas as suas partículas, nessa
água familiar e ligeiramente enjoativa. Sim, ligeiramente enjoativa;
que importância tinha, pois se também ela era um pouco enjoativa,
bem sabia. Mas o marido não achava, e então que importância tinha,
pois se graças a Deus ela não vivia num ambiente que exigisse que
ela fosse mais arguta e interessante, e até do ginásio, que tão
embaraçosamente exigira que ela fosse alerta, ela se livrara. Que
importância tinha. No cansaço — passara as camisas de Armando,
sem contar que fora de manhã à feira e demorara tanto lá, com
aquele gosto que tinha em fazer as coisas renderem — no cansaço
havia um lugar bom para ela, o lugar discreto e apagado de onde, com
tanto constrangimento para si e para os outros, saíra uma vez. Mas
como ia dizendo, graças a Deus, voltara.
E
se procurasse com mais crença e amor, encontraria dentro do cansaço
aquele lugar ainda melhor que seria o sono. Suspirou com prazer, por
um momento de travessura maliciosa tentada a ir de encontro ao hálito
morno que era sua respiração já sonolenta, por um instante tentada
a cochilar. “Um instante só, só um instantezinho!”, pediu-se
lisonjeada por ter tanto sono, pedia cheia de manha, como se pedisse
a um homem, o que sempre agradara muito Armando.
Mas
não tinha verdadeiramente tempo de dormir agora, nem sequer de tirar
um cochilo — pensou vaidosa e com falsa modéstia, ela era uma
pessoa tão ocupada! sempre invejara as pessoas que diziam “não
tive tempo” e agora ela era de novo uma pessoa tão ocupada: iam
jantar com Carlota e tudo tinha que estar ordeiramente pronto, era o
primeiro jantar fora desde que voltara e ela não queria chegar
atrasada, tinha que estar pronta quando… bem, eu já disse isso mil
vezes, pensou encabulada. Bastaria dizer uma só vez: “não queria
chegar atrasada” — pois isso era motivo suficiente: se nunca
suportara sem enorme vexame ser um transtorno para alguém, agora
então, mais que nunca, não deveria… Não, não havia a menor
dúvida: não tinha tempo de dormir. O que devia fazer, mexendo-se
com familiaridade naquela íntima riqueza da rotina — e magoava-a
que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina — o que devia fazer
era 1º) esperar que a empregada estivesse pronta; 2º) dar-lhe o
dinheiro para ela já trazer a carne de manhã, chã-de-dentro; como
explicar que a dificuldade de achar carne boa era até um assunto
bom, mas se Carlota soubesse a desprezaria; 3º) começar
minuciosamente a se lavar e a se vestir, entregando-se sem reserva ao
prazer de fazer o tempo render. O vestido marrom combinava com seus
olhos e a golinha de renda creme dava-lhe alguma coisa de infantil,
como um menino antigo. E, de volta à paz noturna da Tijuca — não
mais aquela luz cega das enfermeiras penteadas e alegres saindo para
as folgas depois de tê-la lançado como a uma galinha indefesa no
abismo da insulina —, de volta à paz noturna da Tijuca, de volta à
sua verdadeira vida: ela iria de braço dado com Armando, andando
devagar para o ponto do ônibus, com aquelas coxas baixas e grossas
que a cinta empacotava numa só fazendo dela uma “senhora
distinta”; mas quando, sem jeito, ela dizia a Armando que isso
vinha de insuficiência ovariana, ele, que se sentia lisonjeado com
as coxas de sua mulher, respondia com muita audácia: “De que me
adiantava casar com uma bailarina?”, era isso o que ele respondia.
Ninguém diria, mas Armando podia ser às vezes muito malicioso,
ninguém diria. De vez em quando eles diziam a mesma coisa. Ela
explicava que era por causa de insuficiência ovariana. Então ele
falava assim: “De que é que me adiantava ser casado com uma
bailarina?” Às vezes ele era muito sem-vergonha, ninguém diria.
Carlota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida
íntima e coisas a não contar, mas ela não contaria, era uma pena
não poder contar, Carlota na certa pensava que ela era apenas
ordeira e comum e um pouco chata, e se ela era obrigada a tomar
cuidado para não importunar os outros com detalhes, com Armando ela
às vezes relaxava e era chatinha, o que não tinha importância
porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe
contava, o que não a magoava, ela compreendia perfeitamente bem que
suas conversas cansavam um pouquinho uma pessoa, mas era bom poder
lhe contar que não encontrara carne mesmo que Armando balançasse a
cabeça e não ouvisse, a empregada e ela conversavam muito, na
verdade mais ela mesma que a empregada, e ela também tomava cuidado
para não cacetear a empregada que às vezes continha a impaciência
e ficava um pouco malcriada, a culpa era mesmo sua porque nem sempre
ela se fazia respeitar.
Mas,
como ela ia dizendo, de braço dado, baixinha e ele alto e magro, mas
ele tinha saúde graças a Deus, e ela castanha. Ela castanha como
obscuramente achava que uma esposa devia ser. Ter cabelos pretos ou
louros eram um excesso que, na sua vontade de acertar, ela nunca
ambicionara. Então, em matéria de olhos verdes, parecia-lhe que se
tivesse olhos verdes seria como se não dissesse tudo a seu marido.
Não é que Carlota desse propriamente o que falar, mas ela, Laura —
que se tivesse oportunidade a defenderia ardentemente, mas nunca
tivera a oportunidade — ela, Laura, era obrigada a contragosto a
concordar que a amiga tinha um modo esquisito e engraçado de tratar
o marido, oh não por ser “de igual para igual”, pois isso agora
se usava, mas você sabe o que quero dizer. E Carlota era até um
pouco original, isso até ela já comentara uma vez com Armando e
Armando concordara mas não dera muita importância. Mas, como ela ia
dizendo, de marrom com a golinha… — o devaneio enchia-a com o
mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas, chegava a desarrumá-las
para poder arrumá-las de novo.
Abriu
os olhos, e como se fosse a sala que tivesse tirado um cochilo e não
ela, a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas
e as cortinas que haviam encolhido na última lavagem, com calças
curtas demais e a pessoa olhando cômica para as próprias pernas. Oh
como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas
próprias mãos destras, e tão silencioso, e com um jarro de flores,
como uma sala de espera. Sempre achara lindo uma sala de espera, tão
respeitoso, tão impessoal. Como era rica a vida comum, ela que enfim
voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou-o.
– Ah
como são lindas, exclamou seu coração de repente um pouco
infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na
feira, em parte porque o homem insistira tanto, em parte por ousadia.
Arrumara-as no jarro de manhã mesmo, enquanto tomava o sagrado copo
de leite das dez horas.
Mas
à luz desta sala as rosas estavam em toda a sua completa e tranquila
beleza. Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como
se não tivesse acabado de pensar exatamente isso, vagamente
consciente de que acabara de pensar exatamente isso e passando rápida
por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete, pensou numa
etapa mais nova de surpresa: “sinceramente, nunca vi rosas tão
bonitas”. Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se
manter muito tempo como simples atenção, transformava-se logo em
suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era
obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade
submissa: como são lindas.
Eram
algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo. Em algum momento
tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois, o
jogo feito, haviam se imobilizado tranquilas. Eram algumas rosas
perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era
quase branco. Parecem até artificiais! disse em surpresa. Poderiam
dar a impressão de brancas se estivessem totalmente abertas mas, com
as pétalas centrais enrodilhadas em botão, a cor se concentrava e,
como num lóbulo de orelha, sentia-se o rubor circular dentro delas.
Como são lindas, pensou Laura surpreendida.
Mas,
sem saber por quê, estava um pouco constrangida, um pouco
perturbada. Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema
incomodava.
Ouviu
os passos da empregada no ladrilho da cozinha e pelo som oco
reconheceu que ela estava de salto alto; devia pois estar pronta para
sair. Então Laura teve uma ideia de certo modo muito original: por
que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixar-lhe as rosas
de presente?
E
também porque aquela beleza extrema incomodava. Incomodava? Era um
risco. Oh, não, por que risco? apenas incomodava, eram uma
advertência, oh não, por que advertência? Maria daria as rosas a
Carlota.
– D.
Laura mandou, diria Maria.
Sorriu
pensativa: Carlota estranharia que Laura, podendo trazer pessoalmente
as rosas, já que desejava presenteá-las, mandasse-as antes do
jantar pela empregada. Sem falar que acharia engraçado receber as
rosas, acharia “refinado”…
– Essas
coisas não são necessárias entre nós, Laura! diria a outra com
aquela franqueza um pouco bruta, e Laura diria num abafado grito de
arrebatamento:
– Oh
não! não! não é por causa do convite para jantar! é que as rosas
eram tão lindas que tive o impulso de dar a você!
Sim,
se na hora desse jeito e ela tivesse coragem, era assim mesmo que
diria. Como é mesmo que diria? precisava não esquecer: diria — Oh
não! etc. E Carlota se surpreenderia com a delicadeza de sentimentos
de Laura, ninguém imaginaria que Laura tivesse também suas
ideiazinhas. Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir
beata, ela chamava a si mesma de “Laura”, como a uma terceira
pessoa. Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e
grata e tranquila, Laura, a da golinha de renda verdadeira, vestida
com discrição, esposa de Armando, enfim um Armando que não
precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas
conversas sobre empregada e carne, que não precisava mais pensar na
sua mulher, como um homem que é feliz, como um homem que não é
casado com uma bailarina.
– Não
pude deixar de lhe mandar as rosas, diria Laura, essa terceira pessoa
tão, mas tão… E dar as rosas era quase tão bonito como as
próprias rosas.
E
mesmo ela ficaria livre delas. E o que é mesmo que aconteceria
então? Ah, sim: como ia dizendo, Carlota surpreendida com aquela
Laura que não era inteligente nem boa mas que tinha também seus
sentimentos secretos. E Armando? Armando a olharia com um pouco de
bom espanto – pois é essencial não esquecer que de forma alguma
ele está sabendo que a empregada levou de tarde as rosas! —
Armando encararia com benevolência os impulsos de sua pequena
mulher, e de noite eles dormiriam juntos.
E
ela teria esquecido as rosas e a sua beleza.
Não,
pensou de súbito vagamente avisada. Era preciso tomar cuidado com o
olhar de espanto dos outros. Era preciso nunca mais dar motivo para
espanto, ainda mais com tudo ainda tão recente. E sobretudo poupar a
todos o mínimo sofrimento da dúvida. E que não houvesse nunca mais
necessidade da atenção dos outros — nunca mais essa coisa
horrível de todos olharem-na mudos, e ela em frente a todos. Nada de
impulsos.
Mas
ao mesmo tempo viu o copo vazio na mão e pensou também: “ele”
disse que eu não me esforce por conseguir, que não pense em tomar
atitudes apenas para provar que já estou…
– Maria,
disse então ao ouvir de novo os passos da empregada. E quando esta
se aproximou, disse-lhe temerária e desafiadora: você poderia
passar pela casa de d. Carlota e deixar estas rosas para ela? Você
diz assim: “D. Carlota, d. Laura mandou”. Você diz assim: “D.
Carlota…”
– Sei,
sei, disse a empregada paciente.
Laura
foi buscar uma velha folha de papel de seda. Depois tirou com cuidado
as rosas do jarro, tão lindas e tranquilas, com os delicados e
mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo
tempo se livraria delas. E poderia se vestir e continuar seu dia.
Quando reuniu as rosinhas úmidas em buquê, afastou a mão que as
segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando
os olhos para um julgamento imparcial e severo.
E
quando olhou-as, viu as rosas.
E
então, incoercível, suave, ela insinuou em si mesma: não dê as
rosas, elas são lindas.
Um
segundo depois, muito suave ainda, o pensamento ficou levemente mais
intenso, quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se
um pouco: porque as coisas nunca eram dela.
Mas
estas rosas eram. Rosadas, pequenas, perfeitas: eram. Olhou-as com
incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais
adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido.
E
mesmo podia ficar com elas pois já passara aquele primeiro
desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar
demais as rosas.
Por
que dá-las, então? lindas e dá-las? Pois quando você descobre uma
coisa boa, então você vai e dá? Pois se eram suas, insinuava-se
ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que,
repetido, lhe parecia cada vez mais convincente e simples. Não iam
durar muito — por que então dá-las enquanto estavam vivas? O
prazer de tê-las não significava grande risco — enganou-se ela —
pois, quisesse ou não quisesse, em breve seria forçada a se privar
delas, e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido —
elas não iam durar muito, por que então dá-las? O fato de não
durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa
obscura lógica de mulher que peca. Pois via-se que iam durar pouco
(ia ser rápido, sem perigo). E mesmo — argumentou numa última e
vitoriosa rejeição de culpa — não fora de modo algum ela quem
quisera comprar, o vendedor insistira muito e ela se tornava sempre
tão tímida quando a constrangiam, não fora ela quem quisera
comprar, ela não tinha culpa nenhuma. Olhou-as com enlevo,
pensativa, profunda.
E,
sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita.
Bem,
mas agora ela já falara com Maria e não teria jeito de voltar
atrás. Seria então tarde demais? assustou-se vendo as rosinhas que
aguardavam impassíveis na sua própria mão. Se quisesse, não seria
tarde demais… Poderia dizer a Maria: “ô Maria, resolvi que eu
mesma levo as rosas quando for jantar!” E, é claro, não as
levaria… E Maria nunca precisaria saber. E, antes de mudar de
roupa, ela se sentaria no sofá por um instante, só por um instante,
para olhá-las. E olhar aquela tranquila isenção das rosas. Sim,
porque, já tendo feito a coisa, mas valia aproveitar, não seria
boba de ficar com a fama sem o proveito. Era isso mesmo o que faria.
Mas
com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no
jarro, não chamava Maria. Ela sabia por quê. Porque devia dá-las.
Oh ela sabia por quê.
E
também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber,
não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se “ser”.
Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita
faltava o gesto de dar. Nunca se devia ficar com uma coisa bonita,
assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração.
(Embora, se ela não desse as rosas, nunca ninguém no mundo ia saber
que ela pretendera dá-las, quem iria jamais descobrir? era
horrivelmente fácil e ao alcance da mão ficar com elas, pois quem
iria descobrir? e elas seriam suas, e as coisas ficariam por isso
mesmo e não se fala mais nisso…) Então? e então? indagou-se
vagamente inquieta.
Então,
não. O que devia fazer era embrulhá-las e mandá-las, sem nenhum
prazer agora; embrulhá-las e, decepcionada, mandá-las; e espantada
ficar livre delas. Também porque uma pessoa tinha que ter coerência,
seus pensamentos deviam ter congruência: se espontaneamente
resolvera cedê-las a Carlota, deveria manter a resolução e dá-las.
Pois ninguém mudava de ideia de um momento para outro.
Mas
qualquer pessoa pode se arrepender! revoltou-se de súbito. Pois se
só no momento de pegar as rosas é que notei quanto as achava
lindas, pela primeira vez na verdade, ao pegá-las, notara que eram
lindas. Ou um pouco antes? (E mesmo elas eram suas). E mesmo o
próprio médico lhe dera a palmada nas costas e dissera: “não se
esforce por fingir que a senhora está bem, porque a senhora está
bem”, e depois a palmada forte nas costas. Assim, pois, ela não
era obrigada a ter coerência, não tinha que provar nada a ninguém
e ficaria com as rosas. (E mesmo — e mesmo elas eram suas).
– Estão
prontas? perguntou Maria.
– Estão,
disse Laura surpreendida.
Olhou-as,
tão mudas na sua mão. Impessoais na sua extrema beleza. Na sua
extrema tranquilidade perfeita de rosas. Aquela última instância: a
flor. Aquele último aperfeiçoamento: a luminosa tranquilidade.
Como
uma viciada, ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora
das rosas, com a boca um pouco seca olhava-as.
Até
que, devagar, austera, enrolou os talos e espinhos no papel de seda.
Tão absorta estivera que só ao estender o ramo pronto notou que
Maria não estava mais na sala — e ficou sozinha com seu heroico
sacrifício. Vagamente dolorosa, olhou-as, assim distantes como
estavam na ponta do braço estendido — e a boca ficou ainda mais
enxuta, aquela inveja, aquele desejo. Mas elas são minhas, disse com
enorme timidez.
Quando
Maria voltou e pegou o ramo, por um mínimo instante de avareza Laura
encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo – elas são
lindas e são minhas, é a primeira coisa linda e minha! e foi o
homem que insistiu, não fui eu que procurei! foi o destino quem
quis! oh só dessa vez! só essa vez e juro que nunca mais! (Ela
poderia pelo menos tirar para si uma rosa, nada mais que isso: uma
rosa para si. E só ela saberia, e depois nunca mais oh, ela se
prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição, nunca
mais!) E no segundo seguinte, sem nenhuma transição, sem nenhum
obstáculo — as rosas estavam na mão da empregada, não eram mais
suas, como uma carta que já se pôs no correio! não se pode mais
recuperar nem riscar os dizeres! não adianta gritar: não foi isso o
que quis dizer! Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado
e rancoroso ainda dizia: “você pode pegar Maria nas escadas, você
bem sabe que pode, e tirar as rosas de sua mão e roubá-las”. Por
que tirá-las agora seria roubar. Roubar o que era seu? Pois era
assim que uma pessoa que não tivesse nenhuma pena dos outros faria:
roubaria o que era seu por direito! Oh, tem piedade, meu Deus. Você
pode recuperar tudo, insistia com cólera. E então a porta da rua
bateu.
Então
a porta da rua bateu.
Então
devagar ela se sentou calma no sofá. Sem apoiar as costas. Só para
descansar. Não, não estava zangada, oh nem um pouco. Mas o ponto
ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo. Olhou o jarro.
“Cadê minhas rosas”, disse então muito sossegada.
E
as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela.
Tira-se de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou
então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um
lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela
rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém
no mundo, faltava. Como uma falta maior.
Na
verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma
claridade. E também ao redor da marca das rosas a poeira ia
desaparecendo. O centro da fadiga se abria em círculo que se
alargava. Como se ela não tivesse passado nenhuma camisa de Armando.
E na clareira as rosas faziam falta. “Cadê minhas rosas”,
queixou-se sem dor alisando as preguinhas da saia.
Como
se pinga limão no chá escuro e o chá escuro vai se clareando todo.
Seu cansaço ia gradativamente se clareando. Sem cansaço nenhum,
aliás. Assim como o vaga-lume acende. Já que não estava mais
cansada, ia então se levantar e se vestir. Estava na hora de
começar.
Mas,
com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro de si as
rosas. Não era sequer difícil.
Até
bom que não estava cansada. Assim iria até mais fresca para o
jantar. Por que não pôr na golinha de renda verdadeira o camafeu?
que o major trouxera da guerra na Itália. Arremataria bem o decote.
Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na
porta. Precisava se vestir. Mas ainda era cedo. Com a dificuldade de
condução ele demorava. Ainda era de tarde. Uma tarde muito bonita.
Aliás já não era mais de tarde.
Era
de noite. Da rua subiam os primeiros ruídos da escuridão e as
primeiras luzes.
Aliás
a chave penetrou com familiaridade no buraco da fechadura.
Armando
abriria a porta. Apertaria o botão de luz. E de súbito no
enquadramento da porta se desnudaria aquele rosto expectante que ele
procurava disfarçar mas não podia conter. Depois sua respiração
suspensa se transformaria enfim num sorriso de grande desopressão.
Aquele sorriso embaraçado de alívio que ele nunca suspeitara que
ela percebia. Aquele alívio que provavelmente, com uma palmada nas
costas, tinham aconselhado seu pobre marido a ocultar. Mas que, para
o coração tão cheio de culpa da mulher, tinha sido cada dia a
recompensa por ter enfim dado de novo àquele homem a alegria
possível e a paz, sagradas pela mão de um padre austero que
permitia aos seres apenas a alegria humilde e não a imitação de
Cristo.
A
chave virou na fechadura, o vulto escuro e precipitado entrou, a luz
inundou violenta a sala.
E
na porta mesmo ele estacou com aquele ar ofegante e de súbito
paralisado como se tivesse corrido léguas para não chegar tarde
demais. Ela ia sorrir. Para que ele enfim desmanchasse a ansiosa
expectativa do rosto, que sempre vinha misturada com a infantil
vitória de ter chegado a tempo de encontrá-la chatinha, boa e
diligente, e mulher sua. Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse
que nunca mais haveria o perigo dele chegar tarde demais. Ia sorrir
para ensinar-lhe docemente a confiar nela. Fora inútil
recomendarem-lhes que nunca falassem no assunto: eles não falavam
mas tinham arranjado uma linguagem de rosto onde medo e confiança se
comunicavam, e pergunta e respostas e telegrafavam mudas. Ela ia
sorrir. Estava demorando um pouco porém, ia sorrir.
Calma
e suave, ela disse:
– Voltou,
Armando. Voltou.
Como
se nunca fosse entender, ele enviesou um rosto sorridente,
desconfiado. Seu principal trabalho no momento era procurar reter o
fôlego ofegante da corrida pelas escadas, já que triunfantemente
não chegara atrasado, já que ela estava ali a sorrir-lhe. Como se
nunca fosse entender.
– Voltou
o quê, perguntou afinal num tom inexpressivo.
Mas,
enquanto procurava não entender jamais, o rosto cada vez mais
suspenso do homem já entendera, sem que um traço se tivesse
alterado. Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em
reter a respiração. O que de repente já não era mais difícil.
Pois inesperadamente ele percebia com horror que a sala e a mulher
estavam calmas e sem pressa. Mais desconfiado ainda, como quem fosse
terminar enfim por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo, ele no
entanto teimava em manter o rosto enviesado, de onde a olhava em
guarda, quase seu inimigo. E de onde começava a não poder se
impedir de vê-la sentada com mãos cruzadas no colo, com a
serenidade do vaga-lume que tem luz.
No
olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido
resistir.
– Voltou
o quê, disse ele de repente com dureza.
– Não
pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na
sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à
altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir,
repetiu entregando-lhe com alívio a piedade que ela com esforço
conseguira guardar até que ele chegasse. Foi por causa das rosas,
disse com modéstia.
Como
se fosse para tirar o retrato daquele instante, ele manteve ainda o
mesmo rosto isento, como se o fotógrafo lhe pedisse apenas um rosto
e não a alma. Abriu a boca e involuntariamente a cara tomou por um
instante a expressão de desprendimento cômico que ele usara para
esconder o vexame quando pedira aumento ao chefe. No instante
seguinte, desviou os olhos com vergonha pelo despudor de sua mulher
que, desabrochada e serena, ali estava.
Mas
de súbito a tensão caiu. Seus ombros se abaixaram, os traços do
rosto cederam e uma grande pesadez relaxou-o. Ele a olhou
envelhecido, curioso.
Ela
estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera
o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com
timidez e respeito, ele a olhava. Envelhecido, cansado, curioso. Mas
não tinha uma palavra sequer a dizer. Da porta aberta via sua mulher
que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e
tranquila como num trem. Que já partira.
Clarice Lispector, in Laços de Família
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