sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A construção de Kafka

A construção é a penúltima composição de Kafka, escrita em Berlim depois que ele deixou Praga, no final de 1923. Em novembro daquele ano, quando o escritor já estava instalado na Alemanha, houve o putsch da cervejaria de Munique e foi nessa mesma época que ele começou a agonizar, pois a tuberculose pulmonar que tinha desde 1920 ameaçava alcançar a faringe. Além disso a aposentadoria que recebia da companhia de seguros contra acidentes do trabalho na Tchecoslováquia estava sendo reduzida a pó pela hiperinflação alemã e ele mal tinha dinheiro para comprar carvão para o aquecimento num inverno que agravava seu estado de saúde. Nessa circunstância histórica e pessoal sombria — ameaçado por fora pelo nazismo e por dentro pela doença — não é de espantar que tenha composto um dos textos mais pesados da sua obra e que A construção seja considerado o verdadeiro testamento do escritor e de toda uma geração.
É muito difícil resumir A construção porque a novela se organiza em torno de um fio narrativo mínimo e se sustenta num monólogo interior contínuo que só se interrompe depois de quarenta páginas de texto cerrado. O narrador de primeira pessoa é um bicho que vive sob a superfície da terra. O leitor não fica sabendo ao certo qual é a sua forma ou o seu tamanho, mas deduz logo que é um animal ágil e sagaz, extremamente articulado, ao mesmo tempo lúcido e perseguido, que discorre com uma lógica de ferro sobre si mesmo, sobre a sua obra e sobre os perigos que enfrenta sob a terra. A história que ele conta pode ser dividida em duas partes: na primeira ele descreve sua vida depois de instalado na construção — uma vida solitária, marcada por hábitos regulares, como comer, dormir e vigiar —, com flashbacks ocasionais sobre o trabalho de construção em épocas anteriores; na segunda, que se desenrola depois de um breve período fora da construção, dedicado à caça de víveres, o acontecimento central e decisivo é o aparecimento de um ruído debaixo da terra que leva o narrador a tentativas renovadas de busca e interpretação, até que finalmente ele chega à conclusão de que se trata de um adversário volumoso e desconhecido que está se aproximando de sua fortaleza subterrânea e vai invadi-la por dentro da terra para travar com ele uma luta de extermínio.
Olhando A construção de perto, o que o texto tematiza é o vínculo de um ser vivo com a sua casa e o mundo externo e, a partir dele, a relação consigo mesmo e com os outros. Tudo isso se faz no registro único de angústia e trabalho. Um animal fala em linguagem humana sobre suas tentativas de garantir a própria sobrevivência em paz e solidão. Ele passa a vida sob a superfície e sabe pouco sobre a luz do sol. A natureza celebrada pelos poetas é revolvida por ele num pedaço de chão. Para ele a terra não é uma amiga confiável, mas um território minado. Esse narrador-personagem não é alguém que saiba o que acontece ou vai acontecer, mas sim o membro de uma espécie que mergulha no indeterminado e se torna, ele próprio, o centro da impossibilidade de saber.
Para produzir um relato vertiginoso e original, a via escolhida por Kafka, aqui, é a supressão da rica variedade da vida. Um animal de recortes nítidos, a despeito da escassez de traços individuais, vive e observa a própria existência num conjunto labiríntico, ora satisfeito com a “praça do castelo” da construção, ora apavorado com o inimigo virtual que o ameaça por dentro e por fora da sua morada. Para ele não é viável nenhum acordo com o mundo exterior, embora seja dono e único ocupante de inúmeros recintos e corredores cavados no solo. O silêncio sob a terra é enganador, mas o animal se sente de algum modo protegido. No fundo ele é um cidadão que se protege, embora o burgo (esta palavra é textual na novela), o burgo que esse burguês defende, esteja situado no submundo e nele exista pouca semelhança com a vivência idealizada de lar ou pátria. Num texto de 1920 intitulado Er [Ele], Kafka usou a expressão “cidadania do nada”.
Esse animal no entanto parece conciliado e identificado com o seu mundo. Dentro dele a vida não é menos precária ou perigosa do que fora dele. Sendo assim, é previsível que as fronteiras entre o familiar e o estranho, ou entre o lar e o território estrangeiro, sejam suspensas, e que as noções de entrada e saída se tornem permutáveis. Quando o narrador ouve o ruído que anuncia o animal adversário dentro da terra, pensa em fugir pela entrada da construção. Ao mesmo tempo ele se indaga se aquele invasor também não teve o seu território invadido por ele. A ótica tradicional do “dentro” e do “fora” foi cancelada nessa novela de Kafka — autor, aliás, que tem sido descrito como o outsider que ocupa o centro da arte do seu tempo.
As várias formas de indistinção observadas em Kafka assumem às vezes um aperspectivismo que lembra Escher. Na evolução da prosa kafkiana essa nova modalidade de percepção marca a passagem do “cenário familiar” das primeiras obras para o estranhamento profundo das últimas. Os primeiros contos e novelas voltam-se para trás, para o lado perdido; mas em A construção a narrativa está voltada para a frente, para um novo “domicílio”, isto é: para um universo onde a distinção entre casa e esconderijo, lar e armadilha, homo sapiens e animal já não desempenha um papel relevante. Nesse novo continente não vigora a hierarquia dos valores conhecidos nem repertório algum de ideais, pois no seu lugar entrou um esquema de existência que parece moralmente neutralizado.
Assim o eu que se manifesta em A construção não se sente, como os heróis da grande literatura do passado, como um coroamento da criação, mas apenas como criatura que não demonstra o menor orgulho por qualidades especificamente humanas. Por isso mesmo esse narrador é um bicho. Do ponto de vista da composição é melhor para Kafka objetivar a condição desumanizada do mundo por intermédio de um animal, já que o seu comportamento obsessivo é aceito pelo leitor como algo natural. Se se tratasse de um personagem homem ele seria imediatamente entendido como portador de uma neurose compulsiva ou coisa do gênero, o que enfraqueceria o extraordinário poder de estranhamento do texto.
Na verdade Kafka só usa categorias antropocêntricas para iluminar a novela por contraste. Assim é que esse bicho-narrador possui mãos, procura o silêncio e a paz, memoriza as observações que faz, ocupa-se de questões técnicas, reflete sobre sua autoconfiança, sonha com a construção perfeita e algumas vezes fala da sua casa e de uma porta. Tem orgulho da praça do castelo que ergueu no centro da construção, sofre com o cansaço e no entanto continua a cavar. Tudo o que é relatado acontece depois da sua mocidade e muitas vezes o leitor tem a impressão de estar ouvindo as confissões de um homem maduro que agora se retira para sua fortaleza. Mas por outro lado ele também se alimenta de insetos e camundongos da floresta, come ratos, tem coxas, dentes, uma barba e uma testa muito forte. Perguntar de que espécie é esse animal é tão impertinente quanto perguntar se Josef K. em O processo ou K. em O castelo são de origem eslava ou germânica. O importante é que os acontecimentos evoluem numa área específica, espacialmente estruturada, mas cujos habitantes não conseguem definir, sejam eles a figura central ou os seus inimigos.
Uma conclusão possível a partir de todos esses dados é que a novela de Kafka nivela tudo por baixo — categorias de tempo e espaço, categorias zoológicas, morais e históricas. É evidente que isso remete a um momento de tamanha crise que os próprios valores ficaram empastados, na medida em que um não se distingue mais do outro — e sem essa distinção nenhum deles pode se afirmar, seja na direção que for.
Quanto ao leitor da história, ele não é propriamente entretido por ela. Falta ao texto a tensão causada por expectativa e desfecho, espanto e sobriedade, perplexidade e conhecimento. Na narrativa tradicional o leitor sempre está ouvindo a batida de um relógio. Em A construção não existem as linhas de força de um agora e de um depois; não há uma sucessão temporal muito marcada, nenhuma dependência natural de passado, presente e futuro. Os verbos mais frequentes são os que exprimem uma ação que se repete, como saltar, saltitar ou correr, para dar apenas alguns exemplos. Nesse sentido os acontecimentos também parecem não se distinguir qualitativamente uns dos outros: é sempre de novo que o animal busca o seu alimento, é sempre de novo que se ouvem os ruídos ameaçadores do inimigo. A mesmidade adorniana (das Immergleiche) encontra no aspecto monocórdio dessa novela uma espécie de exemplificação narrativa a priori.
Mas essa monotonia se torna artisticamente inteligível quando se compreende o caráter não dialógico da novela. Desvios, retardamentos, digressões, tramas secundárias — tudo isso fica de fora em A construção. A arte monológica de Kafka assume aqui uma função de conhecimento, porque ela é a formalização estética do isolamento, da solidão, do mundo esquecido. Ou seja: quanto mais o homem conseguiu se apropriar da literatura para se exprimir em primeira pessoa, tanto mais numerosos foram os recursos de que passou a dispor — poemas, diários, cartas, memórias etc. São esses os pequenos grandes documentos da maneira de sentir e pensar dentro do universo literário. A construção não é nem um artifício puro e simples, nem um jorro do coração. O animal da novela não vive no reino arejado das conversas, ele age como uma criatura à parte, distanciado de toda atividade social ou literária. O que ele formula, formula para si mesmo e no máximo apreende ruídos estranhos e zumbidos ameaçadores como resposta. É um ser dotado da mais alta capacidade de expressão, mas tem como parceiros (no caso invisíveis) tão somente animais providos dos meios de expressão e comunicação mais primitivos.
Não é possível exprimir melhor, utilizando imagens, a desumanização e o caráter solitário do indivíduo contemporâneo.

P. S. Dois comentários de Walter Benjamin e dois de Theodor Adorno sobre Franz Kafka:

O mundo de Kafka se caracteriza pela mais precisa das deformações. W. B.

Com muita frequência Kafka coloca animais no centro das suas narrativas. É possível então acompanhar esses animais por um bom tempo sem absolutamente perceber que não se trata aqui de modo algum de seres humanos. Quando pela primeira vez se bate no nome do animal, desperta-se com um choque e observa-se de uma só vez que o continente dos homens já está muito distante. W. B.

Os protocolos herméticos de Kafka revelam a gênese social da esquizofrenia. T. A.

Em Kafka a História vira inferno porque o momento da salvação foi perdido. T. A.

Este texto foi apresentado numa das mesas-redondas realizadas no Centro Universitário Maria Antonia sobre o marxismo ocidental, em maio de 1995. Posteriormente, foi publicado pela revista Praga, nº 1, set.-dez. 1996. O caráter informal da fala foi mantido.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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