terça-feira, 9 de agosto de 2022

Uma forma de falar e de morrer

Ele tinha um modo de falar a palavra inabalável.
O ‘l’ final concluído à moda dos holandeses
que pregaram pra nós, catecismo, missões, missas dominicais.
Inabalável certeza’, ‘ inabalável fé’, ‘poder inabalábel’.
Quando usava esta forte palavra, não a dizia
com a boca de quem come as perecíveis matérias,
ou nomeia o que julga indigno do seu falar melhor,
por serem as comuns coisas:
malho, bigorna, ferro, o encarregado, o chefe.
Inabalável’,
a língua demorando na base superior dos dentes,
a doutrina exigente necessitando de um mais puro som,
conforme o que exprimia, coisas de Deus,
eternas coisas aterradoras de tão impossível mácula.
Quando a vida abalável enrijeceu seu queixo,
a língua paralisada conformou-se roxa,
a ponta voltada para a raiz dos dentes,
inabalável.

Adélia Prado, in Bagagem

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