quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Os tubarões atacam


Não precisava o velho de bússola para lhe dizer para onde ficava o sudoeste. Apenas precisava de sentir os ventos e o bater da vela. É melhor deitar uma linha com um engodo e ver se arranjo de comer, de que beba o suco. Mas não encontrou nada que pôr na linha e as sardinhas estavam podres. Por isso, com o croque apanhou à passagem um pedaço de sargaço amarelo, e sacudiu-o, fazendo com que os pequenos camarões que nele havia caíssem no fundo do barco. Havia mais de uma dúzia, a saltar como pulgas do mar. O velho atirava-lhes as cabeças fora com um piparote, e comia-os, mastigando cascas e rabos. Eram muito pequenos, mas alimentavam e sabiam bem.
O velho ainda tinha na garrafa umas duas goladas de água, e bebeu meia depois de comidos os camarões. O esquife navegava regularmente, tendo-se em conta a carga, e o velho pilotava-o com a cana do leme debaixo do braço. Tinha o peixe diante dos olhos, e bastava-lhe olhar para as mãos e sentir as costas contra a popa para saber que tudo acontecera de facto e não havia sido um sonho. A certa altura, quando próximo do fim estivera a sentir-se tão mal, pensara que talvez fosse um sonho. Depois, quando vira o peixe saltar da água e ficar suspenso no ar antes de cair, tivera a sensação de que algo havia de muito estranho, e não queria crer. É que então não via bem, e agora via como sempre vira.
Agora, sabia que o peixe existia e que as mãos e as costas não eram sonho. “As mãos curam-se depressa pensou. Deixei-as sangrar e a água salgada as sarará. A água escura da verdadeira corrente do Golfo é a melhor panaceia que há. O que eu preciso é aguentar a cabeça. As mãos cumpriram o seu dever, e navegamos a preceito. Com a boca fechada e a cauda a dar a dar, cá vamos como irmãos”. Começou então a poder arrumar as ideias e pensou: “É ele quem me leva ou sou eu quem o leva a ele? Se eu o levasse a reboque, a questão não se punha. Nem se punha também, se o peixe viesse no barco, perdida a dignidade toda. Mas navegamos juntos, lado a lado”.
E o velho pensou: “Pois que seja ele a levar-me, se isso lhe dá gosto. Eu só pela manha valho mais do que ele, que me não queria mal”.
Navegavam bem, e o velho mergulhou as mãos na água salgada e fez por manter claras as ideias. Havia altos cúmulos e bastantes cirros por cima deles, e o velho sabia que assim a brisa duraria a noite inteira. Fitava constantemente o peixe, para ter a certeza de que era verdade. Não passara uma hora, quando o primeiro tubarão o mordeu.
O tubarão não era acidental. Viera de muito fundo, ao dispersar-se no mar a escura nuvem de sangue. Ascendera tão rapidamente e tão absolutamente sem cautelas, que abriu a superfície das águas azuis e apareceu ao sol. Caiu depois no mar e farejou e começou a nadar na esteira do esquife e do peixe.
Por vezes, perdia o cheiro. Tornava, porém, a dar com ele, ou a sentir apenas um vago rasto, e nadava rapidamente na esteira. Era um enorme “Mako”, feito para nadar tão velozmente como o mais veloz peixe dos mares, e tudo nele era belo exceto as queixadas.
O dorso era azul como o de um espadarte, a barriga prateada, e os flancos macios e belos. Era tal qual um espadarte, com a diferença das medonhas queixadas que levava cerradas ao nadar veloz, logo abaixo da superfície, com a alta barbatana dorsal anavalhando as águas sem vacilar. Dentro dos lábios apertados, as oito ordens de dentes inclinavam-se para o interior da boca. Não eram os vulgares dentes piramidais da maior parte dos tubarões. Eram como os dedos de uma mão humana quando crispada em garra. Eram quase tão compridos como os dedos do velho e afiados como navalhas dos dois lados. Eis um peixe feito para comer todos os peixes do mar, mesmo os velozes e fortes e bem armados, que outro inimigo não têm. Aí vinha ele por ter cheirado melhor, e a barbatana dorsal azul cortava as águas.
Quando o velho o viu vir, reconheceu que era um tubarão que nada temia e havia de fazer exatamente o que lhe apetecia.
Preparou o arpão e amarrou a corda, enquanto observava a chegada do tubarão. A corda era curta, por lhe faltar o que ele cortara para prender o peixe.
O velho sentia-se bem da cabeça e resoluto, mas alimentava pouca esperança. “Não há tão grande bem que sempre dure – pensou. E lançou um olhar ao grande peixe, ao ver o tubarão aproximar-se. – Podia bem ter sido um sonho. Não posso impedi-lo de me atingir, mas talvez consiga apanhá-lo. Dentuso, pensou. O diabo leve a tua mãe”.
O tubarão veio pela popa e, quando chegou ao peixe, o velho viu-lhe a boca abrir-se e os olhos estranhos e o estalo – chope! – dos dentes a fecharem-se na carne, logo acima da cauda. A cabeça do tubarão estava fora de água e o dorso vinha saindo, e o velho ouvia a pele e a carne a rasgarem-se no grande peixe, quando cravou o arpão na cabeça do tubarão, no ponto de intersecção da linha dos olhos com a linha do nariz. Tais linhas não existiam. Existiam apenas a possante cabeça de um azul ferrete e os grandes olhos e as queixadas investindo estralejantes e de engolir tudo. Mas era aquela a localização do cérebro, e o velho feriu. Feriu-o com as suas mãos ensanguentadas, que manejavam vigorosamente um bom arpão. Feriu sem esperança, mas com decisão e total malignidade.
O tubarão rebolou e o velho viu-lhe o olhar morto, e tornou a rebolar envolvendo-se em duas voltas de corda. O velho sabia-o morto, mas o tubarão é que não aceitava tal. Depois, de costas, com a cauda a bater e as queixadas a estralejar, o tubarão rasgou as águas como um barco de corrida. Onde a cauda batia, a água espumejava, e três quartos do corpo iam de fora, quando a corda se retesou, vibrou e rebentou. O tubarão ficou por momentos quieto à superfície, o velho a observá-lo. E, depois, afundou-se muito devagar.
Levou-me uns vinte quilos – disse alto o velho. “E também o meu arpão e a corda toda, pensou, e o meu peixe está outra vez a sangrar e outros virão”.
Não lhe agradava olhar já para o peixe, mutilado como ficara. O peixe ser atingido fora como se ele próprio o tivesse sido.
Mas matei o tubarão que tocou no meu peixe. E era o maior dentuso que jamais vi. E sabe Deus que tenho visto dos grandes”.
Não há bem que sempre dure. Quem me dera que tivesse sido um sonho, que eu não tivesse pescado o peixe e estivesse sozinho na cama, em cima dos jornais”.
Mas o homem não foi feito para a derrota – disse. – Um homem pode ser destruído, mas não derrotado. Tenho pena de ter morto o peixe. Agora vem o pior, e nem sequer me resta o arpão. O dentuso é feroz e hábil e forte e inteligente. Mas eu fui mais inteligente do que ele. Talvez não. Talvez só estivesse mais bem armado.
Não penses, velho – disse alto. – Segue o teu rumo, e aceita o que vier.
Preciso de pensar. Porque nada mais me resta. Isso e o baseball. Gostava de saber se o grande DiMaggio gostaria da maneira como lhe acertei nos miolos. Não foi grande coisa.
Qualquer o faria. Mas não achas que o estado das minhas mãos equivale às “espuelas”? Não posso saber. Nunca sofri do calcanhar, a não ser daquela vez em que a nadar pus o pé na jamanta e ela me deu um choque que me paralisou a perna e provocou uma dor intolerável”.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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