Subitamente,
não sabia mais como se ata o nó da gravata. Era como se enfrentasse
uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer
familiaridade. Recomeçou do princípio. Uma vez, outra vez — e
nada. Suspirou com desânimo e olhou atento aquele pedaço de pano
dependurado no seu pescoço. Vagarosamente, tentou dar a primeira
volta — e de novo parou, o gesto sem sequência. Viu-se no espelho,
rugas e suor na testa: a mão esquerda era a direita, a mão direita
era a esquerda.
— Vou
descendo — anunciou a mulher, impaciente.
— Escuta
— disse ele forçando o tom de brincadeira. — Como é que se dá
mesmo nó em gravata?
— Engraçadinho
— e a mulher saiu sem olhá-lo.
Quanto
tempo durou aquela hesitação? Essa coisa familiar, corriqueira,
cotidiana — dar o nó na gravata. Uns poucos segundos, um minuto,
dois minutos ou mais? O tempo da ansiedade, não o do relógio. Não
fazia calor, e nas costas das suas mãos começou a porejar um suor
incômodo. Assim como surgiu, na mesma vertigem, passou: logo suas
mãos inconscientes se organizaram e, independentes, sem comando,
ataram a gravata e o puseram em condições de, irrepreensivelmente
vestido, sair de casa. Ia a um jantar. Estimulado pelo uísque,
desejoso de atrair a atenção dos circunstantes, ocorreu-lhe, no
meio da conversa, contar o pequeno incidente pitoresco: — Agora
mesmo, em casa. Ao me vestir. Esqueci como é que se dá o nó da
gravata.
E
antes que despertasse qualquer curiosidade, uma chave se torceu
dentro dele. O fato insignificante deixou de ser engraçado. Uma
aflição mordeu-o no íntimo. Como uma luz que se apaga. Uma
advertência. Um sinal que anuncia, que espreita e ameaça.
— Essa
é boa — curioso ou simplesmente gentil, um dos ouvintes procurou
estimulá-lo.
Mas
o ter esquecido como se dá o nó da gravata já não era apenas um
incidente pitoresco. Disfarçou o próprio desconforto e, grave,
interditado, sentiu a língua travada, como se esquecer como é que
se ata a gravata fosse logicamente sucedido da incapacidade de
contar.
Apenas
um lapso, que pode acontecer com qualquer um. Tolice sem importância.
E nem se lembrou mais, até que dias depois, achando graça, a mulher
tirou-o da dificuldade: atou por ele a gravata desfeita na sua mão.
Uma terceira vez ocorreu dois dias depois. “Estou ficando gagá”,
pensou, entre divertido e irritado. Retirou-se do espelho e procurou
com calma recuperar a inocência perdida. Pois era como ter perdido a
inocência, de súbito autoconsciente.
Mas
logo esqueceu e saiu para a rua, como todo dia. Pegou o carro e,
autômato, foi até o edifício do escritório. Estava na fila do
elevador, quando deu acordo de si. Era o terceiro da fila. Bem
disposto, recém-banhado, cheirando à nova loção de barba, o
estômago nutrido pelo recente café da manhã, olhava com
magnanimidade o dia que o esperava, o mundo em torno. Pulsava nas
suas veias sãs uma suculenta harmonia. Presente tranquilo, futuro
próspero. Confiava em si, confiava na vida.
Só
o elevador demorava mais do que de costume, pequeno borrão na manhã
alegre e amiga. Não fazia sentido aquela demora que, de repente,
perturbou-o como um cisco no olho. Agarrado à pasta como se temesse
perdê-la, verificou que o elevador continuava parado no sétimo
andar, exatamente o do seu escritório. Queria não pensar em nada,
apenas esperar como todo mundo, mas via com nitidez, como se
estivesse de corpo presente no sétimo andar, um contínuo fardado a
segurar a porta do elevador que se abria e se fechava por meio de uma
célula fotoelétrica. Dois homens tentavam a custo enfiar dentro do
carro uma mesa de escritório. Era a sua mesa, mas muito maior. Seus
papéis pessoais, sua caneta, as gavetas devassadas. Fechou os olhos,
meio tonto, reabriu-os. A fila crescia, ninguém conhecido. Olhou a
nuca do homem à sua frente: toutiço sólido, de cinquentão
próspero. Jurava que agora o elevador vinha descendo. Quis
certificar-se e deu com a luzinha sempre acesa no sétimo andar.
Outra vez, como se a tudo assistisse, viu o contínuo segurando a
porta do elevador e dois homens de macacão tentando irritadamente
encaixar lá dentro a mesa enorme. Na fila, ninguém dava mostra de
impaciência. A rua ao sol lá fora — gente e carros passando —
movimentava-se como todo dia. Pouco adiante, matinal, recém-florido,
aparecia um trecho do jardim. Mas o elevador continuava parado no
sétimo andar. Retirou o lenço do bolso e, a pasta debaixo do braço,
enxugou a fronte e o pescoço. Vinha-lhe de longe um desconforto a
princípio moral — como se tivesse cometido uma falta grave que ali
mesmo ia ser descoberta. Depois um mal-estar físico, como se tivesse
perdido a carteira, alguma coisa que o diminuísse, uma vez
desaparecida. Olhou o relógio de pulso, procurou conformar-se,
esquecer que esperava. Há quanto tempo esperava o elevador? No
sétimo andar, a mesa, a sua mesa, era grande demais para passar
pelas portas que o contínuo continuava a imobilizar.
Dentro
dele, um desejo minucioso de examinar-se. Como costumava fazer quando
ia viajar. Arrumar a mala sem esquecer nada, um lenço sequer.
Começava pela cabeça: pente, escova, loção. O aparelho de barba.
As gravatas, as camisas, as cuecas. Peça por peça, ia passando tudo
em revista. Mas naquele momento era como se tivesse esquecido
qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos da
fila cada vez mais numerosa. Quando a revisão a que se submetia
chegou aos pés, ocorreu-lhe que tinha se esquecido de calçar as
meias. Tentou sorrir da dúvida disparatada. E queria lembrar-se, ter
certeza das suas meias, do momento em que as calçara. Recompunha
cada detalhe de tudo que tinha feito desde o momento em que acordara.
A barba, o banho de chuveiro, todos os atos, que, automáticos,
inauguravam um novo dia, um homem novo. Usava habitualmente só meias
cinzas, azuis e pretas.
De
que cor eram, naquele momento, as suas meias? Um desejo ardente de
esticar uma perna, depois a outra, arregaçar as calças e olhar,
comprovar. Mas o medo irracional do ridículo, como se toda a fila
acompanhasse a sua preocupação e esperasse apenas um gesto de sua
parte para vaiá-lo. Sorriu sem sorrir, o sangue estremeceu pela
altura do peito até o pescoço. Lá em cima, no sétimo andar,
interminável, continuava a luta para meter a imensa mesa no elevador
— e era como se estivesse presente, a tudo assistia. A obsessão
agarrou-o: de que cor eram as meias, de que cor? As suas meias, as
que usava naquele exato momento. De que cor eram? Procurou se lembrar
das circunstâncias com que em casa se vestiu, sua rotina, uma cadeia
de gestos repetidos inconscientemente. Mas agora precisava
lembrar-se: as meias? Tinha vontade de suspender a calça e olhar,
mas se continha. Nada o denunciava, um cidadão como outro qualquer,
um cavalheiro, impecável, à espera do elevador, que todavia não se
deslocava do sétimo andar — a luzinha continuava acesa. E ninguém,
na fila aumentando, se impacientava. Como se só a ele coubesse
quebrar o silêncio. Todos o observavam. Até que foi invadido pela
certeza cruel de que usava meias vermelhas, um grito de sangue na sua
indumentária azul. A gravata era azul, podia ver. A camisa era
branca. O terno era azul. Mas as meias. As meias berrantemente
vermelhas tornavam os seus pés alheios, episcopais. Estava de pé
sobre pés estranhos, sapatos quem sabe de fivela e meias
cardinalícias. Seriam rubras, eram, podiam ser?
Enxugou
o suor no rosto, agarrou-se aflito à pasta como se, para existir,
para continuar na fila, precisasse dela. A fila silenciosa,
irritantemente tranquila, aguardava um sinal para protestar, começar
o motim. A manhã perfeita, luminosa. Lá fora, os carros e as
pessoas passando. Mas as meias eram inabsorvíveis. Onde é que fora
arranjar aquele par de meias, santo Deus? Ocultas ainda sob as
calças, ameaçavam vir a público, denunciá-lo. Agora tinha
definitivamente certeza: um escândalo, ridículo, um vermelho-vivo
como o sangue fresco de um touro.
Súbito,
como se tivesse estado distraído, ou dormindo, o elevador escancarou
a porta no andar térreo. Sentiu-se paralisado, preso ao chão,
incapaz de locomover-se como as pessoas à sua frente, como os que se
postavam às suas costas. Procurava, pasmo, os dois homens de
macacão, o contínuo uniformizado — e a mesa, a sua mesa. Mas só
via o elevador, como sempre, como todos os dias. Foi preciso quase
que o empurrassem, as grotescas meias vermelhas, para que ele, morto
de vergonha, sem poder olhar os próprios pés, se animasse a entrar
no elevador.
Saltou
no sétimo andar e, por um triz, ia deixando cair a pasta. Trancou-se
na sua sala. A mesa, devolvida às dimensões normais, continuava lá,
imóvel. Finalmente tomou coragem para verificar. Suspendeu as
calças, fixou com espanto as próprias pernas: agora de novo as suas
meias eram azuis. E os sapatos voltavam a ser os seus sapatos.
Movia-se outra vez com os próprios pés. O telefone o chamava. Foi
falar ao telefone. o dia prosseguiu, na sua confortável rotina. Nem
de longe podia pensar em contar para alguém. Não havia o que
contar.
O
tempo passou. Nada fora do comum aconteceu nas semanas seguintes. A
não ser um pequeno desmaio da memória: esquecera o nome de um amigo
de infância. Teimoso, ideia fixa, passou horas tentando lembrar. Não
podia dormir sem que lhe viesse o nome que escapava. Uma falha na
cadeia lógica e vulgar das lembranças que cercavam aquele antigo
colega de ginásio. Puxando pela memória, reavivou pormenores há
muito sepultados pelo tempo. Mas o nome. O nome não lhe ocorria. Sob
a língua. Ou na ponta da língua, mas inarticulado, desfeito. Como a
gravata, trapo inútil incapaz de organizar-se no nó. Tinha de
esquecer que esquecera, para então recuperar, espontâneo, o que com
esforço não conseguia arrancar de dentro de si mesmo. Tudo
perfeito, alerta, mas um pequeno colapso insistente, inexplicável.
Via a cara do companheiro, ouvia-lhe a voz, podia descrevê-lo traço
por traço. Mas o nome. O nome por atar. Dormiu frustrado, mais
aborrecido do que seria natural diante de lapso tão inexpressivo. —
Gumercindo — no meio da noite acordou assustado e tinha na boca, de
graça, atado, o nome que em vão perseguira antes de dormir.
Amnésias assim, sabia, acontecem a todo mundo. Não chegam a ser
tema de conversa. Deu de ombros, não comentou nem com a mulher. Dois
ou três dias depois, porém. Numa noite em que se recolheu mais
cedo, morto de sono. Fisicamente exausto, atirou-se pesadamente à
cama e não conseguia deitar-se a cômodo, como toda noite.
— Como
é mesmo que eu durmo? — queria saber qual a posição que
habitualmente tomava para dormir. A postura que usava no sono,
insabida. Probleminha idiota, mas que o desorganizava mentalmente e
súbito o lançava numa aflita perplexidade física. Deste lado: não
era. Virou-se do outro lado: também não era. Estendeu-se de costas:
as mãos sobravam, os braços não se incorporavam à rotina. Como
distribuir o corpo na cama? Cruzou os braços no peito e sentiu-se
estranho, ridículo. Cruzou as mãos e pareceu sinistro, fúnebre.
Era como se antecipasse o defunto que não queria ser. Angustiante
ideia da morte.
Até
que associou o mal-estar com a primeira vez que não soubera dar o nó
na gravata. Alguma coisa de comum, um escondido traço unia um
episódio ao outro. Nada de particularmente alarmante, só uma ponta
de grotesco. Vexame. Ajeitou o travesseiro, a cabeça alta demais.
Afastou o travesseiro e enfiou a cara no colchão como se procurasse
com alívio uma forma de sufocação. Insustentável, esticou as
pernas e dividiu-se em dois. Recolheu as pernas, dobrou os joelhos,
mas ainda assim não conseguiu retomar a naturalidade. Buscava um
ponto de equilíbrio e não o achava. Seu corpo exigia um prumo
inencontrável. De barriga para baixo, a cabeça sobrava, pesava,
descomprometida. Não era assim. Nunca foi assim. E o tempo passava,
o sono não vinha. Sentado na cama, passou a mão pelos cabelos ralos
e procurou controlar-se. Que é que estava acontecendo? Ansiedade sem
sentido, tolice. Decidiu recomeçar do princípio e ainda sorriu do
próprio embaraço. Tinha a sua graça. Um cidadão morto de sono
esquecer como é que costuma dormir. Virou a cabeça para a esquerda.
Para a direita. Para a esquerda. Para a direita. A cabeça sobejava
mesmo. Num princípio de tonteira, a cabeça cresceu de volume e
desprendeu-se do corpo, que agora lhe parecia estranho, como se não
fosse dele. Outra vez esticado, recolheu as pernas, dobrou os joelhos
na altura da barriga. Enfiou as mãos entre os joelhos, enroscado em
si mesmo, fetal. Suportou aquela disciplina por alguns minutos,
resistindo ao desejo de se levantar, fugir da cama, do sono, de si
mesmo. Vontade de esquecer-se, abandonar o próprio corpo, com que já
não se sentia solidário.
— Como
é mesmo que eu durmo? Como é raios que eu sempre dormi em toda a
minha vida? — e não se sentia anatomicamente confortável, como se
tivesse perdido uma chave sem qualquer importância — até
perdê-la. Como todas as noites, serena, abandonada, sem arquitetura,
a mulher dormia ao seu lado. Impensável acordá-la para perguntar
como é que ele dormia. Ficaria uma fera com a brincadeira sem graça.
Ou ia pensar que estava louco. Pé ante pé, levantou-se no escuro e
foi até a copa. Tudo rigorosamente normal. De pé, seu corpo era do
tamanho de sempre, articulado. Abriu a geladeira — a luz da
geladeira rasgou um cone de claridade na copa — e bebeu sem sede um
copo d’água. Só percebeu que estava descalço quando pisou nos
ladrilhos do banheiro social. Sem acender a luz, o medo de não se
ver no espelho. O medo de não se reconhecer arrepiou-o. Outra cara,
infamiliar, ou quem sabe sem cara. Acendeu a luz: afinal era ele
mesmo, banalmente. Com alívio, reapertou a calça frouxa do pijama.
Saiu do toalete sem apagar a luz e, outra vez na copa, tomou um
comprimido para dormir e, com a mão trêmula, levou um copo d’água
para o quarto. A mulher dormia tranquila. Todo mundo dormia.
Devagarinho, sem alterar a respiração, meteu-se debaixo dos
lençóis, de costas, os olhos fechados.
E
começou a flutuar no espaço. Abria os olhos, continuava a boiar,
mais baixo, mais baixo, até chegar ao nível da cama. Fechava os
olhos e o jogo recomeçava. Ora só o corpo, girando circularmente,
subindo, descendo. Ora o corpo e com o corpo a cama, rodando
depressa, mais depressa. Abria os olhos, parava. Mudou de posição:
de bruços, como no seu tempo de criança. A mãe lhe trazia o xarope
no meio da noite e lhe recomendava que se deitasse de bruços, para
vencer o acesso de tosse. Antigamente. Mas agora o sono não vinha. A
ponta do sono, inagarrável. O sono desfeito como um novelo
amontoado, sem começo nem fim. Sem nó.
Pacientemente,
deitou-se do lado direito. Depois do lado esquerdo. Não insistiu na
postura: encolheu as pernas, esticou os braços. Um braço recolhido
e o outro estendido ao longo do corpo. Não reencontrava a perdida
intimidade consigo mesmo. Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou
quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia
recusava-se a apagar dentro dele a sua luz amarela. Desejo de
absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro.
Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir. Recostado contra o
travesseiro, meio sentado, a noite tinha ancorado para sempre num
porto de fadiga e torpor. Noite longa, lenta, oleosa, de silêncio e
vácuo.
Um
chinelo pendendo do pé. Cochilou na cadeira de balanço, como um
agonizante, afinal entregue, que sem convicção espera o amanhecer.
Despertou com o corpo dolorido, os pés inchados — na árvore da
rua a algazarra dos pardais despertos. O dia clareando, libertou-se
da insônia e se meteu na cama até a hora do costume.
Dia
estafante, devolvido à rotina como se nada demais tivesse
acontecido. Só à noite contou o caso, a insônia, para a mulher,
que ouviu calada, irrelevante. Mas não contou o que agora lhe
parecia absurdo: esquecer-se, como quem perde uma chave, de como
deitar-se para dormir. Era um segredo e uma ameaça. E à distância
de algumas horas, remoto como uma experiência alheia.
Naquela
mesma noite levou para o quarto e para a cama o temor de que tudo ia
se repetir. Pegou um livro, mas não conseguia prestar atenção à
leitura. Ligou o rádio. Demorou-se no banheiro. Entrou e saiu do
quarto, cortou aplicadamente as unhas dos pés. Ao espelho, observou
as rugas nos cantos dos olhos, o cabelo ralo. Com uma pinça, tirou
uns fios mais espessos das sobrancelhas. Espremeu os cravos do nariz
e arrancou dois ou três cabelos encravados da barba. Queria afastar
a lembrança da véspera. Distrair-se. E dormiu naturalmente, como
todo dia. O cotidiano refeito, as noites tranquilas, repousantes. Até
que uma semana depois:
— Esqueci
como é que eu durmo — disse ansioso à mulher.
— Bobagem
— ela resmungou, morta de sono.
— Minha
posição na cama.
— Deita
e dorme — disse a mulher imperativa, sem olhá-lo.
Foi
a primeira insônia completa de sua vida. Noite branca, hora a hora,
minuto após minuto, segundo por segundo. Virava e revirava-se na
cama, esbarrava no mesmo desconforto. A vida deixava de fluir. Uma
parada, um branco, uma ausência. A falta de uma ponte. Um elo
perdido. Levantava-se, procurava esquecer, desligar-se daquele
segredo comprometedor. Ligar as duas pontas do que sempre fora ao que
devia continuar sendo, sem interrupção. Fumou cigarro atrás de
cigarro. Porque não queria fumar fumava mais. Andava pela casa.
Olhava pela janela a rua — a calçada vazia, a árvore, as lâmpadas
acesas. Pensou, lembrou, repensou, relembrou. Cruel, a noite
vagarosa, a interminável noite ancorada. E a sua pequena
desprotegida solidão, palpável, aborrecido plantão para nada.
Estar só e acordado o fazia mais só, mais acordado. Velava a si
mesmo. Tentou dormir no sofá da sala, mas nem o sofá nem a cama
acolhiam naturalmente o seu corpo, o seu sono. Dormir era perder a
própria companhia.
O
dia claro, alto sol, a casa restituída à sua visão familiar, a
cozinha e a copa recendendo ao café fresco, fez a barba, tomou banho
e saiu. Foi trabalhar — a incomunicável insônia, de que à luz do
sol se envergonhava. Era inverossímil. E era preciso guardar o
segredo. Como se escondesse um malfeito infantil, sua culpa.
— Que
é que há com você? — a mulher deu enfim sinal de perceber.
— Nada.
— Então
dorme.
O
horror de ir para a cama. E a impossibilidade de contar, partilhar
sua vergonha. Ficou mais sozinho. Já não era igual a todo mundo.
Tinha medo e orgulho — um homem diferente. Sua singularidade
ameaçava, mas consolava também. Sentia-se mais próximo de si
mesmo.
— Por
que você não consulta um médico? — a mulher desconfiava.
Pequenos derrames imperceptíveis — leu numa revista vagas
informações sobre problemas que os neurologistas estudam. Falhas de
memória, hiatos convulsivos. Pensou em consultar mesmo um clínico:
medir a pressão, o sangue. Mas não gostava de médico e confiava na
saúde de ferro. Deixou de preocupar-se com o nó da gravata.
Esqueceu a insônia. Ridículo contar a sério que, na hora de
dormir, já não sabia como se deitar. Não tinha importância.
Uma
tarde, ao falar pelo telefone. Era com o sócio, com quem se dava
bem, prosperavam. A princípio apenas um mal-estar indefinido. Depois
não conseguia se lembrar da cara do sócio. A voz conhecida, a
conversa nítida, o riso de sempre, os mesmos cacoetes — mas como
era mesmo a sua fisionomia? Desligou o telefone e teve a impressão
de que estava pálido. Apertou a cabeça entre as mãos. Fechou e
abriu os olhos, pontinhos volantes. Como é a cara dele? Transpirava
como se estivesse numa sauna. E aquele vazio: a cara, como era a
cara? A cara sonegada, escamoteada como num passe de mágica. Tudo o
mais era como de costume, mas a penetrante sensação de aviso o
ameaçava. Ansioso sinal, plano inclinado.
Trancou-se
no banheiro e lavou várias vezes o rosto. Precisava refrescar-se,
afogueado. Um frio fogo o queimava. No entanto, refletida no espelho,
sua cara normal, até favorecida. Menos rugas, as entradas da testa
menos cavadas. Seu definido perfil: era ele mesmo, sem qualquer
alteração. Como todo mundo, tinha uma fisionomia pessoal e
intransferível. Mas o sócio como era o sócio? Estúpido vazio.
Sabia-se despojado de qualquer coisa essencial e, pela primeira vez,
frágil, desprotegido contra o que podia acontecer, teve medo, tremeu
de medo. Era um compromisso que não queria aceitar, mas de que não
conseguia desvencilhar-se. Precisava apelar para alguém, pedir
socorro. Recuar do abismo, mudar de rumo, rejeitar o que podia vir, o
que sobrevinha, iminente, incontornável — e não tinha nome, nem
configuração.
Desligado
de tudo, sem interesse pelo trabalho, foi para casa mais cedo. A casa
podia protegê-lo. Leu sem pressa o jornal e ligou a televisão. Era
um homem normal, um homem como qualquer outro, mas, por trás dos
seus gestos, de sua normalidade, um vazio o convocava. Telefonou para
a casa do sócio, não o encontrou. Desejo de sair para a rua, ver
gente, cada qual com seu perfil. Ver o sócio, recuperá-lo — o que
só foi possível no dia seguinte, quando se avistaram no escritório.
— Nunca
me viu? — por um momento o sócio pareceu estranhar a maneira como
ele o fixava.
Queria
e já não podia contar. E não poder contar o isolava
definitivamente, como se, a partir dali, tivesse mudado de lado,
passado para a outra margem. Dava adeus ao que vinha sendo, a tudo
que era — ao dia-a-dia, aos negócios, ao confortável cotidiano.
Mas lutava. Para qualquer nova emergência, não seria apanhado
desprevenido. Obsessivamente, arquivava, armazenava traço por traço
do sócio, seu rosto de sempre, inesquecível, doravante
inescamoteável.
Uma
tarde muito quente, no escritório, o ar-condicionado ronronando,
vinha da rua exaltado, feliz com o resultado de um negócio que há
semanas se arrastava, quando precisou telefonar para a mulher. Ao
discar — lembrava-se do número, claro — deu por falta de alguma
coisa. Um pássaro que de repente levanta voo, uma paisagem que se
oculta por trás de um obstáculo, um perfume que se esvai. Algo que
se interrompe, curto-circuito na corrente elétrica. Uma ficha que
desaparece. Ao alcance da mão, habitual, mecânico, um objeto que se
subtrai — uma caneta, um par de óculos, uma anotação. Do outro
lado da linha, na sua casa, o telefone chamava. — Alô — disse
ela.
Uma
leve tonteira, como se levitasse, arrebatou-o. Perplexo, não
aceitava o próprio silêncio e, para libertar-se, desligou. Sua
mulher, não se lembrava da própria mulher. Seu nome, seu rosto —
tudo permanecia a uma distância inatingível. Lá longe existia, não
mais ao seu alcance. Entre ele e o que naturalmente sabia, seu
patrimônio, um elo partiu-se, treva opaca, ausência. Mecanicamente,
tirou a gravata e de pé, como num teste decisivo, refez o laço.
Perfeito. Mas sua mulher. Às pressas, sem despedir-se, saiu
imediatamente para casa.
— Chegou
cedo — disse ela. — Alguma coisa?
— Dor
de cabeça — ele disfarçou e, ao olhá-la, se convenceu do absurdo
que era ter esquecido. Sua mulher. Ali estava inteira, com seu rosto,
seu nome.
Trancou-se
no quarto, espichou-se de costas na cama e leu de cabo a rabo o
jornal da tarde. Uma incômoda sonolência fechou-lhe os olhos. A
noite caiu sem que percebesse. Acendeu a luz da cabeceira e retomou o
jornal como se o lesse pela primeira vez. Voltou à primeira página.
Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era
como se não tivesse lido. Lia sem ler, desligado. Queria estranhar,
alarmar-se, mas era como se tivesse sido sempre assim. E a certeza de
que assim seria sempre, sem volta possível. Deixou cair o jornal no
chão e, esticado na cama, sem qualquer protesto, acompanhava com os
olhos uma pequena bruxa a cabecear tonta contra o teto.
— Que
é que você tem? — até que enfim a mulher veio chamá-lo. —
Nada — respondeu, e estava perfeitamente em paz, resignado. Brancas
paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo.
A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar
nenhum. Uma mulher acabou de entrar.
— Quem
sou eu? — ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil,
conquistado, nem ao menos quis saber seu nome.
Otto Lara Resende, in O elo partido e outras histórias
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