segunda-feira, 22 de agosto de 2022

– Estás cansado, velho!


[...]
Pensa em coisas mais alegres, velhote – comentou. – Minuto a minuto, estás mais perto de casa. E vais mais leve, com vinte quilos a menos.
Sabia muito bem o que podia acontecer, quando atingisse o interior da corrente. Mas nada havia a fazer.
E há! – exclamou. – Posso atar a faca à ponta de um dos remos.
E assim fez, com a cana do leme debaixo do braço e o pé em cima do extremo da vela.
Agora sou ainda um velho. Mas não estou desarmado.
A brisa refrescara e singravam ligeiros. Contemplava apenas a parte anterior do peixe e alguma esperança lhe voltou.
É tolice não ter esperança, pensou. Além de que suponho que é pecado. Não penses no pecado. Já sem ele há problemas de sobra. E do pecado não tenho entendimento”.
Não tenho dele entendimento, e até me parece que não acredito nele. Talvez fosse pecado matar o peixe. Julgo que terá sido, embora o tenha morto para viver e dar de comer a muita gente. Mas então tudo é pecado. Não penses no pecado. É tarde demais para isso, e há gente paga para pensar nele. Eles que pensem. Tu nasceste para pescador, como os peixes para ser pescados. S. Pedro era pescador, como o pai do grande DiMaggio”.
Gostava, porém, de pensar em todas as coisas em que se implicava e, uma vez que não havia que ler e não tinha rádio, pensava muito, e continuou a pensar no pecado. “Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amava-o quando estava vivo, e amá-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Tu pensas demais, velhote – disse em voz alta.
Mas gozaste com a morte do dentuso, pensou. Vive de peixe como tu. Não é dos que andam aos restos, nem um apetite ambulante como alguns tubarões são. É belo e nobre e não conhece o medo”.
Matei-o em legítima defesa – exclamou. – E matei-o muito bem.
Além de que, pensou, tudo mata, de uma maneira ou de outra. Pescar mata-me, exatamente como me mantém vivo. O rapaz mantém-me vivo. Não devo iludir-me demais”.
Debruçou-se da borda e arrancou um pedaço de carne do peixe, de onde o tubarão o encetara. Mastigou e notou a qualidade e o sabor. Era rija e suculenta como verdadeira carne, mas não era vermelha. Não era fibrosa; na lota valeria um preço dos mais altos. Não havia, porém, maneira de tirar da água o cheiro dela, e o velho sabia que o pior estava para vir.
A brisa era constante. Rondara um pouco para nordeste, o que significava que não cairia. O velho perscrutava em frente, mas não enxergava vela ou o casco ou fumo de qualquer navio. Havia apenas os peixes-voadores que saltavam para cada lado da proa e as massas amarelas do sargaço. Nem um pássaro enxergava.
Velejara duas horas, recostado na popa, manducando às vezes um bocadito do peixe, fazendo por repousar e criar forças, quando viu o primeiro de um par de tubarões.
Ay! – exclamou. Não há tradução para o que é talvez apenas um ruído como o que um homem emitiria, involuntariamente, ao dar com as unhas em qualquer parte.
Galanos. – Vira vir a segunda barbatana atrás da primeira, e identificara ambas como peixes-martelos, por serem castanhas e triangulares as barbatanas, e pelo varrer das caudas. Haviam dado com o cheiro, estavam excitados e, na estupidez da grande fome que tinham, perdiam e achavam o cheiro na excitação em que vinham. Mas aproximavam-se sempre.
O velho prendeu a ponta da vela e segurou a cana do leme.
Pegou depois no remo com a navalha presa à extremidade.
Ergueu-o ao de leve porque as mãos doridas se recusavam. Abriu-as e fechou-as nele, levemente, para as reativar. Apertou-as com firmeza, então, para que aceitassem a dor sem vacilar, e esperou pelos tubarões. Via-lhes as cabeças em forma de pá, achatadas, largas, e as grandes barbatanas peitorais ponteadas de branco. Eram tubarões nojentos, mal cheirosos, que tanto matavam como andavam aos restos e, com fome, até mordiam um remo ou o leme de um barco. Eram estes tubarões quem decepava as pernas e as mãos das tartarugas, quando elas dormiam à superfície, e que, com a fome, atacavam um homem dentro de água, mesmo que o homem não cheirasse a sangue de peixe nem tivesse nele os limos que os peixes trazem.
Ay! Galanos. Ora venham os galanos.
Vieram. Mas não como o “mako” tinha vindo. Um voltou-se e sumiu-se debaixo do esquife, e o velho sentia o esquife tremer com os puxões que ele dava ao peixe. O outro fitou o velho com os seus olhos amarelos e fendidos, e aproximou-se veloz, com o semicírculo das queixadas escancarado, para morder o peixe onde já fora mordido. Claramente se desenhava no alto da cabeça castanha e do dorso, o ponto onde os miolos se ligavam à espinha dorsal, e o velho cravou aí a faca, retirou-a, e tornou a cravá-la no olho amarelo, de gato. O tubarão largou o peixe e deslizou para o fundo, engolindo na morte o que arrancara.
O esquife ainda tremia com a destruição que o outro estava fazendo no peixe, e o velho soltou a vela, para o barco dar uma guinada e descobrir o outro tubarão. Quando o viu, debruçou-se na borda e atacou-o.
Acertou na carne, e o flanco era duro e a faca mal penetrou.
A pancada magoou-lhe não só as mãos como o ombro. Mas o tubarão ascendeu outra vez muito lépido, de cabeça erguida, e o velho acertou-lhe em cheio no centro da cabeça achatada, quando o nariz saiu da água apontado ao peixe. O velho retirou a lâmina e tornou a ferir exatamente no mesmo ponto. O tubarão continuava de queixadas abocanhadas no peixe, e o velho esfaqueou-o no olho esquerdo. O tubarão não abriu a boca.


Não! – exclamou o velho, e meteu-lhe a faca entre as vértebras e os miolos. Era um golpe fácil de dar, e sentiu a cartilagem rasgar-se. O velho virou o remo e meteu a lâmina nas queixadas do tubarão, para lhas abrir. Torceu-a e, quando o tubarão se afundou, disse: – Vai, galano! Vai para as profundas visitar o teu amigo, ou talvez ele seja a tua mãe.
O velho limpou a lâmina da faca e pousou o remo. Pegou então na ponta da vela, que se encheu, e repôs o esquife no rumo certo.
Devem ter-lhe levado um quarto, e da melhor carne. Quem me dera que tivesse sido um sonho, que eu nunca o tivesse pescado. Lamento muito, peixe. Assim, nada está bem. – Calou-se, e nem queria olhar para o peixe. Este, exangue e lavado pelas águas, estava da cor do estanho dos espelhos, mas as listras ainda se viam.
Não devia ter saído tão para o largo, peixe. Nem por ti, nem por mim. Desculpa, peixe.
E agora, disse de si para si, vê se a atadura da faca está em condições. E trata da tua mão, porque ainda está mais por vir”.
Quem me dera uma pedra para a faca, continuou, depois de ter verificado a amarração ao remo. Eu devia ter trazido uma pedra. Devias ter trazido muitas coisas. Mas não as trouxeste, meu velho. E agora já não é ocasião de pensar no que não tens. Pensa no que podes fazer com o que há”.
Dás-me muito bons conselhos! – exclamou. Estou farto de te ouvir.
Segurou a cana debaixo do braço, e meteu ambas as mãos na água, enquanto o esquife singrava.
Sabe Deus quanto levou este último. Mas vai agora muito mais ligeiro. Nem queria pensar na barriga mutilada do peixe. Bem sabia que cada um dos sacões do tubarão significara carne arrancada e que o peixe agora deixava um rasto aos tubarões, mais largo que uma estrada pelo mar fora.
Era um peixe para manter um homem durante o Inverno todo, pensou. Não penses nisso. Repousa e trata de pôr as mãos em estado de defender o que resta dele. O cheiro do sangue das minhas mãos nada é com todo o que vai pela água. Além de que não sangram muito. Nenhum dos golpes vale alguma coisa. E o sangrar pode evitar as cãibras da mão esquerda”.
Em que posso eu pensar agora? Em nada. Pois não pensarei em nada, e esperarei os que hão-de vir. Quem me dera que tivesse sido um sonho. Quem sabe? Podia ter acabado bem”.
O tubarão seguinte era um peixe-martelo. Veio como um porco à pia, se um porco tivesse uma bocarra tamanha que nos coubesse lá a cabeça. O velho deixou-o morder, e depois enfiou-lhe a faca nos miolos. Mas o tubarão pulou para trás ao rebolar, e a lâmina quebrou-se.
O velho instalou-se a governar o barco. Nem sequer se pôs a ver o grande tubarão a afundar-se lentamente nas águas, primeiro em tamanho natural, depois pequeno, a seguir, insignificante. O que sempre fascinara o velho. Mas nem sequer se pôs a ver.
Tenho o croque. Mas não serve. Tenho os dois remos, e a cana do leme, e o cacete.
Agora, já me venceram, pensou. Estou velho para matar tubarões à pancada. Mas hei-de lutar, enquanto tiver remos e o cacete e a cana”.
Meteu as mãos na água, para as amaciar. A tarde ia no fim, e só via mar e céu. Havia, porém, no céu mais vento do que antes, e esperava não tardar a enxergar terra.
Estás cansado, velho – disse. – Estás cansado de todo.
Os tubarões não voltaram a atacar antes do pôr do sol.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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