terça-feira, 16 de agosto de 2022

A história pronta

É preciso ter Uma história pronta, ensina o Matinhos. O mundo se divide entre os rápidos e os lentos, e o que os distingue é a sua reação ao serem flagrados. Os rápidos inventam uma explicação na hora. Os lentos, que são maioria, precisam ter uma história pronta. Muitas vezes sua integridade física, se não sua sobrevivência, depende de ter uma história pronta. Não precisa ser convincente, segundo o Matinhos. Basta que esteja pronta. O Matinhos sabe da importância da história pronta por experiência própria. Um dia estava na cama com a vizinha quando sua mulher chegou em casa do salão mais cedo do que o esperado. A mulher é dona de um salão de beleza, o Matinhos vive, como ele mesmo diz, em disponibilidade. Não é um vagabundo, é um disponível. Faz parte da grande reserva de mão-de-obra ociosa da nação, esperando para ser convocada. Só não vai atrás do emprego, que já é pedir demais. A nação que venha buscá-lo. Enquanto a nação não vinha, o Matinhos enchia parte das suas horas vagas, que eram todas, namorando a dona Zeneida que também não tinha muito o que fazer depois de alimentar seu marido, o Valdemar, um inativo, que dormia sestas longas e profundas e só acordava para ir jogar dominó no bar. E um dia a mulher do Matinhos chegou em casa mais cedo e por pouco não encontrou a dona Zeneida na cama com o Matinhos. Dona Zeneida conseguiu sair pela janela, sair pelo portão e entrar na sua casa só de calcinha, agarrando o resto das suas roupas na frente do corpo, sem ser vista e quando a mulher do Matinhos entrou no quarto, encontrou o marido arquejante na cama, a cabeça atirada para trás, braços e pernas abertos, o pijama desfeito.
O que é isso, Matinhos?
O Matinhos mal conseguia falar.
Não sei... Acho que...
O que, homem de Deus?!
Princípio de enfarte.
E o Matinhos não estava fingindo. O susto quase o matara. Fizeram exames, tudo bem, a mulher pediu para o Matinhos nunca mais assustá-la daquela maneira, e o Matinhos começou a pensar na importância do pensamento contingencial. Sua mulher o teria flagrado não só com a vizinha na cama mas sem uma história pronta. O que ele teria dito, se fosse pego? “Não é o que você está pensando”? Ridículo. Claro que era o que ela estava pensando. Ele precisava ter uma história pronta. Uma história rica em detalhes, criativa, tão elaborada que desencorajasse qualquer tentativa de investigá-la e tão incomum que levasse à conclusão de que ninguém a inventaria. Tão improvável que só poderia ser verdade.
E o Matinhos pôs-se a construir, meticulosamente, a explicação que daria no caso de ser flagrado com a dona Zeneida na cama. Algo sobre o marido de dona Zeneida, o Valdemar, e o seu envolvimento com uma rede de traficantes de droga. Bolivianos, era isso. Bandidos bolivianos. A Polícia Federal estava usando a casa do Matinhos para controlar o movimento na casa do Valdemar. Matinhos não tinha contado nada à mulher para não assustá-la. Sim, estava colaborando com a polícia. Tinham bolado um plano para tirar a dona Zeneida de dentro da casa para poder revistá-la, aproveitando-se do fato de o Valdemar normalmente cair num sono profundo depois de tomar a heroína do meio-dia. Matinhos concordara em seduzir a dona Zeneida em nome da lei, para ajudar a livrar o país do flagelo das drogas, ainda mais trazida por bolivianos. Se a mulher do Matinhos fizesse um escândalo, atrapalharia a diligência da polícia que naquele momento estava revistando a casa do Valdemar e...
É uma história longa que o Matinhos decorou e tem até ensaiado na frente do espelho, para o caso de ser pego com a dona Zeneida na cama. Uma possibilidade que ficou remota, porque depois do quase flagrante, a dona Zeneida, que teve uma crise de nervos, se recusa a sequer olhar para o Matinhos, quanto mais a responder seus “pssts” por cima da cerca. E o Matinhos está assim, com uma história pronta que só serve para o caso de flagrante com a dona Zeneida, já que na casa do outro lado só mora um general reformado viúvo e com três cachorros, mas sem a dona Zeneida. O Matinhos está começando a pensar numa história pronta que sirva em qualquer contingência.

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

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