sábado, 9 de julho de 2022

Forrest Gump | 4


Bem, aí teve uma coisa secreta que o técnico Bryant e eles planejaram e que era pra ninguém comentar, nem com a gente mesmo. Iam me ensinar a agarrar um lançamento. Todo dia depois do treino eu trabalhava com os dois gorilas e um zagueiro, correndo e agarrando lançamentos até ficar exausto e com a língua pra fora, pendurada até o umbigo. Mas consegui aprender, e o técnico Bryant disse que essa seria nossa “arma secreta” — como uma “Bomba Atônita” ou coisa parecida —, porque depois de algum tempo de jogo, o outro time ia acabar achando que a bola nunca seria lançada pra mim e não ficaria atento.
Assim”, o técnico Bryant disse, “você fica solto e livre — dois metros e cento e vinte quilos — pra correr as cem jardas em nove segundos e meio. Vai ser incrível!”
Bubba e eu éramos realmente muito amigos, e ele me ajudou a aprender a tocar algumas músicas novas com a gaita. Às vezes, ele descia pro porão e a gente tocava junto, mas Bubba dizia que eu era muito melhor que ele. Vou contar uma coisa, se não fosse a gaita eu já teria feito as malas e ido pra casa, mas isso me fazia tão feliz que nem sei como explicar. Era como se meu corpo todo fosse a gaita e a música me dava arrepios. De modo geral, o truque tá na língua, lábios, dedos e em como se mexe o pescoço. Acho que ficar correndo atrás daqueles lançamentos todos fez com que minha língua encompridasse, o que dá uma nota e tanto, por assim dizer.
Na sexta-feira seguinte, me arrumei todo. Bubba me emprestou um tônico pro cabelo e uma loção pra barba e fui pro prédio do Grêmio Estudantil. Tinha muita gente lá e, claro, Jenny Curran e três ou quatro outras pessoas no palco. Jenny usava um vestido comprido e tocava violão, outra pessoa, um banjo, e tinha um cara com um violino gigantesco que ficava puxando as cordas com os dedos.
O som era muito bom mesmo e Jenny me viu lá atrás daquela gente toda, sorriu e fez sinal com os olhos pra que eu fosse pra frente. Foi muito bom ficar sentado ali no chão, ouvindo e vendo Jenny Curran. Pensei em mais tarde comprar brigadeiro e ver se ela também queria um pouco.
Eles tocaram por mais ou menos uma hora, e todo mundo parecia feliz e se sentindo bem. Tocaram Joan Baez, Bob Dylan e Peter, Paul e Mary. Fiquei ali deitado com os olhos fechados, escutando e, de repente, não sei bem como aconteceu, mas peguei minha gaita e comecei a tocar com eles.
Foi a coisa mais estranha. Jenny cantava Blowing in the wind e quando eu comecei a tocar, ela parou por um segundo, e o tocador de banjo também, e ficaram com a cara de surpresos e, então, Jenny abriu um largo sorriso e continuou a cantar e o tocador de banjo parou e deixou eu tocar a gaita por um certo tempo. Quando terminei, todo mundo bateu palmas e gritou bravo.
Depois disso, Jenny desceu do palco, a banda fez uma pausa e ela disse:
Forrest, como pode ser? Onde aprendeu a tocar gaita?
Só sei que a partir daí Jenny me levou pra tocar com a banda. Eu tocava toda sexta-feira, quando não tinha jogo fora da cidade, e ganhava vinte e cinco paus por noite. Era como um paraíso até que vi o tocador de banjo fodendo Jenny Curran.
Infelizmente, eu não ia tão bem nas aulas de inglês. O senhor Boone me chamou mais ou menos uma semana depois de ler minha autobiografia pra turma e disse:
Senhor Gump, acho que já é hora do senhor parar de fazer graça e começar a ser mais sério.
Me entregou uma redação que eu tinha feito sobre o poeta Wordsworth.
O período romântico — ele disse —, não vem depois de um bando de “besteira clássica”. Nem os poetas Pope e Dryden eram duas “bostas”.
Mandou eu fazer tudo de novo, e aí percebi que o senhor Boone ainda não tinha entendido que eu era um idiota. Mas tava prestes a entender.
Enquanto isso, alguém deve ter dito alguma coisa, porque, um dia, meu orientador do departamento de atletismo me chamou e disse que eu tava dispensado das outras aulas e pra eu me apresentar na manhã seguinte ao doutor Mills, no Centro Médico da Universidade. Logo cedinho fui pra lá e o doutor Mills, que tinha um monte de papéis na frente e olhava pra eles, disse pra eu sentar, e começou a fazer perguntas. Quando terminou, disse pra eu tirar a roupa — toda, menos a cueca, e respirei aliviado por causa do que tinha acontecido com os médicos do Exército — e começou a me examinar, com muita atenção mesmo, olhando dentro dos meus olhos e tudo, e fazendo barulho nas minhas rótulas com um pequeno martelo de borracha.
Depois, o doutor Mills perguntou se eu podia voltar à tarde e trazer a gaita — porque ele tinha ouvido falar sobre isso — e se eu me incomodava de tocar uma música para uma de suas turmas de medicina. Eu disse que ia, se bem que aquilo parecesse esquisito, até mesmo prum pateta como eu.
Tinha mais ou menos umas cem pessoas na turma de medicina, todas de avental verde e tomando notas. O doutor Mills me pôs numa cadeira, no tablado, com um jarro e um copo d’água na frente.
Ele dizia um monte de bobagens que eu não entendia, mas, depois de algum tempo, tive a impressão que ele falava de mim.
Idiot savant — disse em voz alta, e todos olharam na minha direção.
Uma pessoa que não consegue dar um nó na gravata, que mal consegue amarrar os sapatos, que tem a capacidade mental de talvez seis a dez anos de idade e — neste caso — o corpo de... bem... um Adônis. — O doutor Mills sorriu pra mim de uma maneira que não gosto, mas fiquei impassível, acho.
Porém a mente — ele disse —, a mente do idiot savant tem raros momentos de inteligência, de modo que Forrest, que aqui está, é capaz de resolver equações matemáticas complexas, que deixariam todos vocês confusos, e de captar temas musicais complexos com a facilidade de um Liszt ou de um Beethoven. Idiota savant — disse de novo, estendendo a mão na minha direção.”
Eu não sabia bem o que devia fazer, mas ele disse pra eu tocar alguma coisa, por isso peguei a gaita e comecei a tocar Puff, the magic dragon. Todos ficaram ali me olhando como se eu fosse um inseto ou algo assim, e quando a música terminou eles continuaram ali, olhando pra mim — não aplaudiram nem nada. Achei que não tinham gostado, e aí me levantei e disse — Obrigado — e fui embora. Que essa gente se dane.
Tem só mais duas coisas de certa importância no resto desse semestre na escola. A primeira foi quando vencemos o Campeonato Nacional de Futebol Universitário e fomos pro Orange Bowl, e a segunda foi quando achei o tocador de banjo fodendo Jenny Curran.
Foi na noite que eu ia tocar na festa de uma fraternidade, na Universidade. O treino daquela tarde tinha sido muito duro e eu tava com tanta sede que era capaz de beber toda a água de uma privada, como um cachorro. Mas tinha um pequeno armazém a uns cinco ou seis quarteirões do Dormitório, e aí, depois do treino, fui até lá comprar umas limas e açúcar, pra preparar um refresco como minha mãe fazia. Tinha uma mulher vesga atrás do balcão e ela me olhou como se eu fosse um assaltante ou coisa parecida. Procurei as limas e depois de algum tempo ela disse:
Posso ajudar? E eu disse:
Quero algumas limas.
Ela disse que não tinha lima nenhuma. Aí eu pedi pra ela me dar alguns limões, pois pensei em fazer uma limonada, mas ela também não tinha limões, nem laranjas, nem nada. Não era esse tipo de armazém. Fiquei procurando durante umas duas horas, e a mulher foi ficando nervosa e finalmente disse:
Não vai comprar nada?
Aí eu peguei uma lata de pêssegos da prateleira, um pouco de açúcar, achando que já que não tinha outra coisa eu podia fazer uma “pessegada” ou algo parecido. Eu tava quase morrendo de sede. Quando voltei pro porão, abri a lata com uma faca, esmaguei os pêssegos dentro de uma de minhas meias e espremi num jarro. Depois pus um pouco de água e açúcar e misturei, mas vou dizer uma coisa, não tinha gosto de nada parecido com refresco de lima. Pra dizer a verdade, mais do que qualquer coisa, tinha gosto de meias picantes.
Mas de qualquer modo eu tinha de tá na fraternidade às sete horas, e quando cheguei, alguns dos rapazes tavam arrumando as coisas, mas não vi Jenny nem o cara do banjo em lugar nenhum. Perguntei pras pessoas e ninguém sabia, então saí pra respirar um pouco de ar fresco no estacionamento. Vi o carro de Jenny e achei que talvez ela tivesse nele.
As janelas do carro tavam todas embaçadas, de modo que não dava pra ver dentro. Bem, aí, de repente, achei que talvez ela não tivesse conseguido sair e tivesse respirado o gás ou coisa parecida, e então abri a porta e olhei pra dentro. Quando fiz isso, a luz acendeu.
Lá tava ela, deitada no banco de trás, a parte de cima da roupa abaixada e a de baixo levantada. O tocador de banjo também tava lá, em cima dela. Jenny me viu e começou a gritar e a espernear, igualzinho como ela fez no cinema, e de repente me veio na cabeça que talvez ela tivesse sendo molestada, por isso agarrei o tocador de banjo pela camisa, que afinal era tudo que ele vestia, e arranquei ele de cima dela.
Bem, qualquer idiota veria que eu tinha feito a coisa errada de novo. Meu Deus, nem podem imaginar o que aconteceu! Ele me xingava e ela me xingava e tentava levantar e abaixar a roupa. Finalmente Jenny disse: — Oh, Forrest, como pôde fazer isso? — e foi embora. O tocador de banjo pegou o banjo e também se foi.
Bem, só sei que depois disso, ficou evidente que eu nunca mais seria bem recebido pra tocar com a banda e voltei pro porão. Eu ainda não tinha entendido muito bem o que tinha acontecido, porém mais tarde, naquela noite, Bubba viu a luz acesa e desceu. Quando contei aquela coisa toda, ele disse:
Poxa, Forrest, aquela gente tava fazendo amor!
Bem, acho que devia ter percebido sozinho, mas pra ser franco, não era uma coisa que eu queria saber. Às vezes, no entanto, um homem tem de encarar os fatos.
Provavelmente foi uma boa coisa eu me manter ocupado jogando futebol, porque eu tava me sentindo muito mal por entender o que Jenny tava fazendo com aquele tocador de banjo e por ela provavelmente nem mesmo ter pensado em mim. Mas nessa época, a gente tinha passado a temporada invicta e ia disputar ó Campeonato Nacional no Orange Bowl contra aqueles palhaços de Nebraska. Era sempre uma coisa especial jogar contra equipes do norte porque eles tinham pretos no time, e isso assustava alguns dos rapazes — como meu ex-companheiro de quarto, Curtis, por exemplo —, se bem que pra mim não era problema, já que a maioria dos pretos que eu tinha conhecido era mais legal comigo que os brancos.
Bem, mas aí, fomos pro Orange Bowl, em Miami, e quando tava chegando a hora do jogo, ficamos como que excitados. O técnico Bryant veio ao vestiário e não falou muito, a não ser que se a gente quisesse ganhar, tinha de jogar pra valer, ou coisa parecida, e aí fomos pro campo e eles deram o chute inicial. A bola veio direto na minha direção e eu agarrei ela no ar e corri direto prum monte de panacas grandalhões, pretos e brancos, do Nebraska, que pesavam mais ou menos duzentos e cinquenta quilos cada um.
Foi assim a tarde toda. No primeiro tempo eles ganharam de 28 a 7 e a gente ficou muito infeliz e triste. O técnico Bryant veio ao vestiário e balançava a cabeça como se já esperasse que a gente fosse desapontar ele. Aí ele começou a desenhar no quadro-negro e a falar com Snake, o zagueiro, e com alguns outros. Depois ele me chamou e pediu pra eu ir com ele até o corredor.
Forrest — ele disse —, esta merda tem de parar. — A cara dele tava quase encostada na minha e senti sua respiração quente nas minhas bochechas. — Forrest — ele disse —, passamos o ano inteiro treinando você, em segredo, a agarrar os lançamentos, e você foi muito bem. Agora vamos fazer isso neste segundo tempo contra esses imbecis fuleiros de Nebraska e eles vão ficar tão confusos que a sunga deles vai bambolear em torno do tornozelo. Agora é com você, garoto. Vá até lá e corra como se um animal selvagem estivesse querendo pegar você.
Concordei com a cabeça e, então, tava na hora de voltar pro campo. Todo mundo gritava e dava vivas, mas senti que, de certa forma, era uma carga injusta em cima de mim. Mas, diacho, às vezes as coisas são assim.
Na primeira jogada, quando a gente tinha a bola, Snake, o quarterback, combinou:
Certo, agora vamos fazer a Série Forrest — e depois se virou pra mim. — Só tem de correr vinte jardas, olhar pra trás e a bola vai estar ali.
E diabos, tava mesmo! De repente, o placar passou pra 28 a 14.
A gente jogou realmente bem a partir daí, mas os negros e os brancos patetas de Nebraska só ficavam observando a cena. Também tinham seus truques, principalmente o de correrem na nossa direção como se a gente fosse de papel ou coisa parecida.

Mas ainda assim ficaram surpresos por eu agarrar a bola, e depois de eu agarrar umas quatro ou cinco vezes, e o placar marcar 28 a 21, eles botaram dois caras pra correr atrás de mim. No entanto, isso deixou Gwinn, o ponta, sem ninguém pra marcar ele e ele agarrou o lançamento do Snake e colocou a gente na linha das quinze jardas. Weasel, o chutador, conseguiu um field goal e o placar passou pra 28 a 24.
No banco, o técnico Bryant veio até mim e disse:
Forrest, pode ser que você tenha um cérebro de merda, mas vai ter de tirar a gente desta situação. Vou pessoalmente tratar pra que seja eleito presidente dos Estados Unidos ou o que você quiser, se simplesmente conseguir levar essa bola até a linha do gol mais uma vez.
Deu um tapinha na minha cabeça, como se eu fosse um cachorro, e eu voltei pro campo.
Snake ficou preso atrás da linha logo na primeira jogada, e o relógio corria. Na segunda jogada, tentou enganar eles me passando a bola, em vez de lançá-la, mas quase uma tonelada de palermas de Nebraska, pretos e brancos, caiu em cima de mim na mesma hora. Eu fiquei ali, estatelado de costas, pensando que devia ter sido assim quando a carga de bananas caiu em cima de meu pai. Depois, voltei pro grupo pra combinar os outros lances.
Forrest — Snake disse —, finjo que vou lançar pra Gwinn, mas lanço a bola pra você, por isso quero que corra até o final do campo, vire pra direita e a bola vai estar lá.
O olhar de Snake era tão selvagem quanto o de um tigre. Assenti com a cabeça e fiz o que mandaram.
Snake realmente arremessou a bola nas minhas mãos e eu disparei pro meio do campo com as balizas do gol logo à frente. Mas, de repente, um homem gigantesco voou pra cima de mim e me atrasou, e depois todos os pretos de Nebraska e brancos do mundo inteiro começaram a me agarrar, me frear, a bater o pé em mim, e eu caí. Maldição! A gente só precisava de algumas jardas pra vencer o jogo. Quando me levantei, vi Snake reunindo todo mundo pra última jogada, já que a gente não tinha mais direito a pedir tempo. Assim que cheguei, ele disse que ia repetir o truque, e saí correndo, mas de repente ele lançou a bola de propósito cerca de seis metros acima de minha cabeça, fora do meu alcance — acho que pra parar a contagem do tempo, pois só faltavam 2 ou 3 segundos.
Infelizmente, Snake confundiu as coisas. Acho que ele pensou que era a terceira jogada, e teríamos mais uma, mas era a quarta e perdemos a bola, e também, é claro, o jogo. Parecia algo que eu teria feito.
De qualquer jeito, foi extremamente triste pra mim, porque imaginava que Jenny Curran provavelmente teria assistido ao jogo, e quem sabe se eu tivesse conseguido agarrar a bola e ganhado, ela perdoaria o que eu tinha feito? Mas não era pra ser. O técnico Bryant tava muito infeliz com o que tinha acontecido, mas disse:
Bem, garotos, sempre há o outro ano. Exceto pra mim. Não haveria.

Winston Groom, in Forrest Gump

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