No
pátio onde nos reunimos à tarde para conversar, fiquei conhecendo
ontem um senhor muito idoso e muito educado, que se diz representante
do Imperador da Rússia, embora não saiba uma só palavra em russo,
segundo pude constatar. Falamos sobre assuntos diversos, conforme
manda a boa diplomacia, e no fim concluímos que ambos gostamos
imensamente de sorvete, sobretudo de sorvete de frutas, o que nos
deixou profundamente satisfeitos pela feliz coincidência.
O
calor era tórrido, como convém a uma conversa sobre sorvetes, e
logo se aliou ao nosso grupo de dois o potentado hindu a quem vendi
por uma ninharia a minha famosa coleção de palitos de fósforo e
que se chama, se não me engano, José. Conversa vai, conversa vem,
quando demos por nós já éramos uns quinze a falar ao mesmo tempo e
sobre os mais variados assuntos, o que motivou a interferência de um
dos garçons do hotel, que nos pediu silêncio.
Não
entendo, sinceramente, como um hotel de boa reputação como este
permite que os seus hóspedes se imiscuam na conversa uns dos outros
sem ao menos serem apresentados, criando situações por vezes
difíceis e ruidosas, que podem muito bem um dia levar até o crime.
Ontem, não fora a pronta intervenção do referido maître-d’hôtel,
eu teria esganado com todas as forças dos meus dedos uma respeitável
matrona que mora na outra ala do edifício e que, ao passar por mim,
me piscou impudentemente o olho esquerdo, e depois o direito, sem ao
menos me dar as razões por que o fazia, embora essas razões me
parecessem óbvias. O professor de matemática, que se diz nas horas
vagas sobrinho torto de Napoleão Bonaparte, acirrou-me com palavras
de ódio contra a pecaminosa e desconhecida senhora, e o mesmo
fizeram uns dois ou três que se encontravam a discutir ao meu lado e
que casualmente se inteiraram do fato. Felizmente o incidente foi
contornado e superado pela ação viril do maître que se achava a
observar tudo a pouca distância de nós, e ainda pela diplomacia
realmente eficaz do representante do Imperador da Rússia que me
aconselhou a acender um cigarro e a contar até cento e vinte.
Nesse
pátio ensolarado, que é tudo quanto temos para espairecer nossas
muitas ideias, enquanto não termina a malfadada guerra entre os
bôeres e os negros (suspeita-se da presença de espiões entre nós)
aprendi a conhecer uma fauna rica e por vezes miraculosa, como de
resto deve ocorrer em todos os hotéis finos e que se prezam,
sobretudo durante a guerra. A princípio, como manda minha alta
categoria, procurei esquivar-me de contatos malsãos ou quando menos
suspeitos, só respondendo por monossílabos às perguntas dos
desconhecidos ou mesmo de alguns garçons encarregados de nos tomar a
temperatura para a estatística do governo. Com o tempo, porém, e
sobretudo com o mau tempo, acostumei-me a entabular conversação com
um ou outro desses companheiros de vilegiatura, sempre porém
mantendo essa discrição que sempre me caracterizou mesmo entre os
mais discretos, não fora eu um espião nato e prevenido contra todos
os espiões deste planeta.
Assim
foi que, seja à hora das refeições, seja à hora de recreio no
pátio cercado de altos muros (para evitar ataques aéreos), fiquei
conhecendo intimamente o famoso cientista anônimo que nas horas
vagas escreve versos futuristas e se dedica à fabricação de
bilboquês sem barbante, mais leves e mais econômicos do que os
outros. Fez-me ele uma demonstração prática de seu engenhoso
invento, servindo-lhe a cabeça de bola e um de seus dedos de base de
sustentação, o que me impressionou vivamente. Conheci, também,
embora menos intimamente, um legado pontifício que se fez passar por
modesto funcionário bancário para melhor fiscalizar os altos
interesses da Igreja em todo o mundo, e que de certa feita me
confessou estar empenhado na criação de um novo Deus — coisa
nunca vista — que lhe permita, um dia, emancipar-se economicamente.
Esse mesmo legado, aliás, apresentou-me ao seu secretário
particular e possivelmente o futuro Messias redivivo, o qual, durante
todos o tempo em que conversamos, não disse bolacha nem se mostrou
impressionado com o seu bigode supersônico, limitando-se a sorrir
vez por outra, a propósito das coisas mais sérias.
Há
também o caso do cidadão mais preto do que branco, com lentes
poderosíssimas assestadas sobre o nariz, e que por diversas vezes
procurou interessar-me na exploração de um veio petrolífero de sua
propriedade, mas sem qualquer auxílio norte-americano, o que me
pareceu absurdo. Delicadamente fiz-lhe ver que não gostava de óleo,
nem mesmo às refeições, e que o assunto aliás escapava à minha
alçada particular, sendo como sou casado em regime de comunhão de
bens. Esse mesmo senhor petrolífero, de certa feita, atirou à hora
do almoço um garfo em pleno nariz do legado pontifício, só porque
este não lhe quis passar uma travessa de arroz, o que me
impressionou mal e fez esquivar-me ainda mais de suas poderosíssimas
lentes. Parece que o escândalo foi abafado, ou pelo menos não se
voltou a falar nisso até a presente data, que é, se não me engano,
26 de fevereiro.
Outras
pessoas, mais distintas, que sou obrigado a ver sempre, por força do
regime de guerra a que estamos submetidos, são, por exemplo, o
grande artista de cinema Heliodoro Papanatas (grego) —
irreconhecível em seu travesti de Dama das Camélias, e que por duas
vezes já tentou suicidar-se atirando-se contra a parede como uma
bola de pingue-pongue; o sobrinho torto de Napoleão Bonaparte a que
já me referi antes, mas que por sua alta ascendência merece aqui
nova citação, como se faz nos campos de batalha; um misterioso
senhor Valadão, de sobrancelhas espessas e que tem o péssimo hábito
de cuspir por todos os cantos (a mim já me cuspiu duas vezes) — e
que ultimamente parece ter sumido de circulação, ou pelo menos já
não o tenho visto cuspindo sobre o próprio prato de comida; o
astrônomo Dr. Keither, de ascendência judia e Premio Nobel de
Química de 1952, e que se mostra sempre muito afável para comigo,
discorrendo horas seguidas sobre a importância das migrações
indo-europeias sobre as descobertas etruscas e vice-versa, para só
falar do seu assunto preferido; o estudante de filosofia que diz
chamar-se Vinícius, mas que desconfio tenha realmente outro nome, e
que tem a mania de recitar versículos bíblicos a propósito de
todos os assuntos e mesmo a propósito das coisas mais escabrosas,
como sejam as nádegas da senhora do gerente ou subgerente, e que na
verdade são bem volumosas. E muitos outros ainda, todos do sexo
masculino e dotados mesmo, alguns, de excelentes barbas, que em nada
ficam a dever às do poeta Walt Whitman ou às do rei Artur.
O
que me parece aliás inconcebível, neste hotel, é a separação
arbitrária que fazem entre homens e mulheres de ambos os sexos, não
nos permitindo nunca, ou quase nunca, ver o que se passa no pavilhão
que fica à esquerda da minha janela e onde, a julgar pelas vozes,
deve reinar uma alegria tipicamente feminina — entremeada, é bem
verdade, de um ou outro grito de pavor. Não fossem as empregadas do
hotel, que são muito delicadas mas nem sempre bonitas, e nem sei
como haveria de arranjar-me um dia para contar aos meus amigos, lá
fora, as muitas aventuras frasearias e sentimentais que sem dúvida
ainda estão para acontecer-me no futuro. Penso que mais uma vez é o
caso de formular o meu mais veemente protesto contra a maneira
estranha por que nos vêm tratando, a todos, neste hotel que nem
sequer um nome decente tem, ou se tem não é do nosso conhecimento
nem consta das colchas e das fronhas que nos dão para dormir.
Levarei amanhã o caso ao conhecimento do gerente, que já me conhece
de sobejo, e se preciso irei ao Presidente da República e à sua
exma. esposa, que devem ser criaturas importantes e capazes de
reconhecer nossos direitos.
(É
bem verdade que só me interessam as mulheres deste hotel que saibam
impor-se o devido respeito, e não essas que a três por dois estão
a piscar-nos um olho quando porventura passem ao nosso lado, nos dias
de audiência coletiva ou em festas de data nacional. Exijo de meus
semelhantes, sejam eles de que sexo for, o mínimo de maneiras e
gestos compatível com as boas normas de educação cristã; e não é
piscando os olhos aos outros que se granjeará a fama de criatura
civilizada e cem por cento honesta, mesmo durante um período difícil
como este por que visivelmente estamos passando.)
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
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