sexta-feira, 6 de maio de 2022

O bacurau-mede-léguas

É dizendo e o Bacurau escrevendo...
Imagem afirmativa de origem misteriosa

O sino da matriz distante derramou a sonoridade vagarosa das três lentas badaladas das “Trindades” dando à paisagem imóvel do fim crepuscular a suavidade de uma paz melancólica. A noite iniciante foi adormecendo as cores, e as névoas da treva dispersavam os contornos dos seres e das coisas.
A rodovia onde passam trepidantes os caminhões de carga e os automóveis de trabalho ou vadiagem é paralela à velha estrada de areia solta, com blocos de barro batido que um vago compressor comprimiu e o tempo esqueceu. Foi caminho das boiadas e estrada do fio porque se alinhavam, espectrais, os postos do telégrafo Morse. A orla é feita por um mato raro e ralo, espalhado entre os tufos de capim amarelo e duro, desdenhado pela fome dos ruminantes e asilo das saúvas e besouros variados. Há formigueiros de muitas cores e formigas de tamanhos, conformações e tintas diversas, ocupadas todas, umas de dia, outras de noite e as saúvas de dia e de noite.
Agora, que a tarde acabou e a noite começa, Niti está cumprindo sua tarefa habitual, andando com gravidade ou saltando como um palhaço, dando voos baixos e curtos, com reviravoltas, descidas e curvas que nenhum piloto acrobático plagiaria. Vezes para, estendendo o abreviado pescoço e fica quase deitado ao rés do areal, o bico escancarado mostrando o abismo vermelho da goela palpitante. Bruscamente fecha o bico para dar um pulo vertical, aproveitando o impulso num pequenino voo com alguns coleios aéreos que terminam numa descida de folha seca ou parafuso da morte.
Quando está imóvel, espectante, vezes a luz dos holofotes dos automóveis incide por um segundo na ave e os dois olhos de Niti se iluminam, imensos, redondos, deslumbrantes, como se fossem dois espelhos de cegantes reflexos, amarelos e rutilantes, insustentáveis à contemplação humana.
Niti está caçando insetos e o fará, com maior ou menor entusiasmo, até o clarear do dia. De papo abastecido por algumas horas, volta ao seu pouso ocasional porque independe, bicho feliz, de possuir domicílio certo até a postura dos dois ovos brancos, com pintinhas violeta.
Niti é conhecido por curiango e também bacurau. Teodoro Sampaio informou que bacurau é voz onomatopaica mas Rodolfo Garcia disse que talvez fosse originária de mbaê, coisa, bicho, e curau, que-solta-a-língua, o maldizente. Essa habilidade humaníssima do bacurau ser falador, mexeriqueiro, enredador, creio injusta para ave de tão composto e sisudo porte.
Retraído, isolado, solitário, desconfiado, como é que Niti vai preocupar-se com a vida do xexéu, do canário, do bem-te-vi e das lavadeiras doidivanas e peraltas? Tem todas as horas ocupadas em misteres indispensáveis. Não podendo ver de dia e sim das horas crepusculares em diante, emprega-as para sua estimável subsistência. Anunciado o dia, Niti retoma seu lar num oco de pau ou cavidade de pedras e adormece, de consciência tranquila. Nunca se aproxima de outra ave e sim, duas vezes por ano, da senhora Niti, também de livre escolha ocasional, para o sacrifício da propagação da espécie no tempo e no espaço. Com quem o velho bacurau ia exercer o exercício gostoso de falar do próximo se ele não tem próximo, excetuando os insetos assimiláveis?
Passava, pesado e lento com sua clava maciça, o homem de Heidelberg e o bacurau já caçava suas predileções ao escurecer a noite de quinhentos mil anos.
É um caprimulgídeo, gênero Nyctidromus albicollis, Gm. Nyctidromus porque passeia, anda, corre, durante a noite. Albicollis por ostentar certo tipo uma mancha branca, semilunar, na garganta. Por isso o chamam bacurau-de-peito-branco. Porque fica deitado, pisando devagar pela estrada, gastando tempo de um para outro ponto, dizem-no bacurau-mede-léguas, explicando-se que Niti está espontaneamente verificando a honestidade dos construtores rodoviários, medindo escrupulosamente a quilometragem.
Quanto ao nome ilustre de caprimulgídeo há uma história longa e séria, digna de qualquer almanaque de gota. Aristóteles – sim senhor, Aristóteles – escreveu que certas corujas gregas (a Grécia é a sua terra; lá são dedicadas a Minerva, Palas-Atenas) tinham a técnica maravilhosa de ordenhar as cabras. Pior é que as cabras ficavam cegas depois da ordenha. Esta tradição escorreu pela Europa e ficou densamente na península itálica, irradiando-se com a memória romana.
Encontrando-se sempre certas aves junto aos currais ou rebanhos de cabras, especialmente nas tardes, horas da colheita do leite, houve uma interpretação inteligente de dizer que as cabras eram mungidas por aquelas aves pequenas, de cores neutras, espantadiças e humildes. A história, aqui, “estória” como escrevo, teimoso, das corujas da Grécia vestiu como uma luva a observação local e deram para chamar as aves de Caprimulges, Capra-mulgere. E daí a família dos caprimulgídeos que o austero inglês denomina, seriíssimo, Goat-suck, no mesmo roteiro. Pela Borgonha o nome ficou ainda mais significativo, Sèche-trappe ou Sèche-terrine.
Naturalmente os sábios têm suas horas de niño e esquecem que as aves, os pássaros, não podem mungir animal algum. Não possuem o movimento da sucção. Não precisava o pesquisador Schwenckfeld realizar longo inquérito entre criadores de cabras para assegurar-se da inexistência de qualquer caprino permitir ser ordenhado por uma ave. E nem pensou que, funcionalmente, o caprimulgídeo não conseguiria extrair leite da teta da cabra com o atrapalhante auxílio do seu bico curto. São as horas de niño, de rejuvenescedora presença.
Na França os caprimulgídeos receberam o doce nome de Engoulevent porque voando de bico aberto contra possíveis enxames de mosquitos ou moscas noturnas engoliam vento. O principal modelo é o Caprimulgus europoeus, que se diz, em Portugal, noitibó, e que provocou a pesquisa erudita de Artur Neiva, provando não ser vocábulo da língua tupi, e sim da portuguesa. Provinha de noctivoo e este de noctivolans. Volans e não o dromus de sua classificação científica e mais justa, exceto o ordenhar cabras.
Niti mede seus 25 centímetros da altura, vestindo modestamente os tons de ferrugem-canela sobre fundo cinzento. Cores discretas como convém a um notívago que o esplendor do sol não iluminará as garridices vistosas das cores vivas e atraentes. Suas penas macias e moles lhe dão silêncio no voo. Não sei se ele, como seus primos europeus, voa com o bico aberto, engolindo vento e fazendo rumor de tear cuja intensidade denuncia a rapidez, enfim o wheel-bird da Grã-Bretanha. No mais ou menos é idêntico aos da família.
O Senhor Conde de Buffon afirmava que o caprimulgídeo era originário do continente americano e que o Caprimulgus carolinensis, Gmel., partindo da parte setentrional, d’où le passage en Europe était facile, alcançara o Velho Mundo estabelecendo a primeira colônia. Pelo menor cálculo é a espécie parecida e residindo, ainda hoje, nas regiões mais próximas, o elo para os engoulevents europeus.
Muito se tem falado contra a preguiça de Niti em fazer o seu ninho. Não o faz e sim utiliza cavidade de árvore velha ou simplesmente uma depressão de terreno para oferecer à senhora Niti o conforto indispensável à maternidade. Buffon, há dois séculos, contrariou o libelo-crime acusatório. Os pássaros não trabalham à noite na tarefa da nidificação. A noite para Niti é um período totalmente preenchido pelas suas ocupações alimentares. As aves da noite não nidificam. Servem-se do que encontraram já feito, por outra ave ou pela Mãe-Natureza, sempre raseiros e fáceis de entrar e sair porque Niti é ave do solo, dromus e não volans.
A senhora Niti guarda com carinho os dois ovos brancos com salpicos violeta e cumpre a incubação dedicadamente. Não defende o ninho como a galinha faz, bico e patas incansáveis, mas chega ao heroísmo de permanecer até a máxima aproximação do observador que ela, a inocente, não sabe distinguir entre o interesse do ornitologista ou o atrevimento do caçador. Sua área restringe-se sob a força do amor maternal. Permite uma aproximação muitíssimo maior que noutras ocasiões. Além desta solicitude, a senhora Niti, informa Buffon, empurra os ovos com as asas para um recanto mais sossegado, ocultando-os ou tentando ocultá-los quando os crê ameaçados. Verdade é que o segundo ninho é tão rude e primitivo quanto o primeiro. Lembro Buffon para mostrar a antiguidade da observação.
Não posso afirmar que Niti tenha vista sobrenatural. Deduzo-a apenas razoável pela pouca distância dos seus golpes. A olfação é reduzida ou quase nula. O ouvido é sensível e põe o bacurau de sobreaviso de qualquer anormalidade nas suas horas de caça. Horas de caça são horas visíveis para visitá-lo com decente afastação cerimoniosa. De dia o bacurau é fidalgo. Não recebe. De mais a mais não lhe sabemos o endereço. Só um acaso conduz o felizardo à morada do velho Niti. A recepção é impossível. Niti foge, infalivelmente. Reposez-vous et laissez reposer les autres, monsieur!
Nunca tive o encanto de encontrar o velho Niti empoleirado numa árvore. Centenas de vezes o deparo pela estrada, andando, deitado, pulando, esvoaçando, com os dois grandes olhos de fogo radiante, denunciando-lhe a presença.
Pequeno, grosso, o bico curto, o rasgão da boca segue até o nível das órbitas dando-lhe um aspecto trágico e uma impressão vaga de sábio meditativo na quadratura do círculo ou cubagem da esfera.
É preciso um lento e precavido rodeio, com paradas de minutos, escondendo-se nos acidentes do terreno, para vê-lo em ação caçadora. Vê-lo a uma determinada distância. Durante os fulgurantes lampejos dos faróis dos automóveis identifica-se Niti que, imediatamente, levanta acampamento para dentro do mato rasinho, retomando a posição desde que a obscuridade se restabeleça. Há uma espécie de cauda bem maior, arrastando-se, ornamental mas inútil, na areia escura. Nunca o vi abrindo esta cauda que dizem não ter muita plumagem. Nunca cheguei a ver Niti no seu gênero Hydropsalis torquatus, com as retrizes formando asas de tesoura, a mais cega de todas as tesouras deste mundo. Dias da Rocha recenseou quatro no Ceará, o Caprimulgus parvulus, Gould, o Eleotreptus anomalus, Gould, o Nyctidromus albicollis, que vive nos arredores do canto de muro, e o Nyctibius grandis, Wild, o Mãe-da-lua, cheio de espantos e de lendas assombrosas, fabuloso pelo canto lúgubre e espalhador de pavores.
Como o velho Niti passa sua noite atarefada rasteiro ao solo, dizem que ele escreve. Para quem e o que escreve é que é segredo da natura. Daí virá a frase sertaneja do Nordeste do Brasil: É dizendo e bacurau escrevendo, imagem corroborante de qualquer afirmativa que não admitia dúvida.
Nunca me disseram que o bacurau bicasse outra ave ou gostasse de frutas verdes, maduras ou podres. Tampouco lhe ouvi canto ou rumor no voo. Vários mestres da ornitologia afirmam que ele canta, mas não me concedeu as honras de audição mesmo longínqua.
O dia vem longe mas a noite esfriou, anunciando a madrugada remota quando os pássaros cantarão. Niti apagou seus olhos coruscantes e sentiu-se o voo rápido, intervalado de pousos, rumo ao lar que só ele sabe onde será.
Não faz mal. Amanhã quando a noite vier encontrá-lo-ei na estrada abandonada, na moldura do mato raro e ralo, caçando infatigado os invisíveis insetos que vivem na areia pobre e nos arbustos tristes…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

Nenhum comentário:

Postar um comentário