quarta-feira, 4 de maio de 2022

Dois gigolôs

Ser gigolô é uma experiência muito estranha, sobretudo para os não profissionais. A casa tinha dois pisos. Comstock morava com Lynne no andar de cima. Eu, com Doreen no de baixo. A casa ficava num belo cenário ao pé de Hollywood Hills. As donas eram ambas executivas, com empregos de altos salários. A casa vivia estocada de bom vinho, boa comida, e com um cachorro de rabo frisado. Havia também uma grande empregada negra, Retha, que passava a maior parte do tempo na cozinha abrindo e fechando a porta da geladeira.
Todas as revistas certas chegavam todo mês no dia certo, mas Comstock e eu não as líamos. Apenas zanzávamos pela casa, nos refazendo de nossas ressacas, esperando a noite, quando as donas nos davam vinho e comida de novo por conta de suas verbas de representação.
Comstock disse que Lynne era uma produtora de cinema muito bem-sucedida, num grande estúdio. Comstock usava uma boina, uma echarpe de seda, um colar de turquesa, uma barba, e tinha um passo sedoso. Eu era um escritor empacado no segundo romance. Tinha meus aposentos num prédio de apartamentos bombardeado em Hollywood leste, mas raramente estava lá.

Meu transporte era um Comet 62. A jovem da casa defronte sentia-se muito ofendida com meu carro velho. Eu tinha de estacionar defronte da casa dela, porque era uma das poucas áreas planas na vizinhança e meu carro não pegava em ladeira. Mal pegava no plano, e eu ficava lá apertando o acelerador e ligando a chave, a fumaça saindo debaixo do carro, aquele barulho nocivo e contínuo. A dona se punha a gritar como se estivesse ficando louca. Foi uma das poucas vezes que tive vergonha de ser pobre. Eu ficava ali bombeando e rezando para fazer aquele Comet 62 pegar, e tentando ignorar os gritos de raiva da luxuosa casa dela. Bombeava e bombeava, o carro pegava, andava uns poucos centímetros, tornava a morrer.
Tira essa maldita lata velha da frente da minha casa, senão eu chamo a polícia!
E aí vinham os gritos alucinados. Finalmente, ela saía de quimono, uma loura jovem, linda, mas aparentemente doida de pedra. Corria até a porta do carro gritando, um dos seios saía da roupa. Ela o metia de volta e o outro saía. E aí uma perna saía da abertura do quimono.
Dona, por favor – eu dizia. – Estou tentando.
Eu finalmente conseguia pôr o carro para andar e ela ficava parada no meio da rua com os dois seios de fora e gritando.
Não pare seu carro aqui de novo, nunca mais, nunca mais, nunca mais!
Era nestas horas que eu realmente pensava em procurar um emprego.
Entretanto, minha senhora, Doreen, precisava de mim. Tinha problemas com o carregador no supermercado. Eu a acompanhava e ficava junto dela, dando-lhe uma sensação de segurança. Ela não conseguia enfrentá-lo e terminava jogando um cacho de uvas na cara dele, ou denunciando-o ao gerente, ou escrevendo uma carta de seis páginas ao dono do estabelecimento. Eu podia cuidar do garoto das sacolas para ela. Até gostava dele, sobretudo pelo modo como abria uma grande sacola com apenas uma graciosa virada do pulso.
Meu primeiro encontro informal com Comstock foi interessante. A gente só tinha batido um papo tomando uns drinques com nossas senhoras à noite. Uma manhã, eu andava pelo primeiro andar, de cuecas. Doreen saíra para trabalhar. Eu pensava em me vestir e ir a meu apartamento verificar a correspondência. Rheta, a empregada, estava acostumada a me ver de cuecas.
Ó, cara – dizia –, você tem as pernas brancas demais. Parecem pernas de frango. Nunca pega uma cor?
Só havia uma cozinha, e ficava embaixo. Imagino que Comstock estava com fome. Entramos na mesma hora. Ele usava uma velha camiseta branca com uma mancha de vinho na frente. Eu pus um pouco de café e Rheta se ofereceu para fritar ovos com bacon para nós. Comstock sentou-se.
Bem – perguntei a ele –, quanto tempo mais acha que a gente pode continuar enrolando elas?
Muito tempo. Preciso de um descanso.
Eu também.
Seus sacanas, vocês são mesmo uma coisa – disse Rheta.
Não queime os ovos – disse Comstock.
Retha nos serviu suco de laranja, torrada, ovos com bacon. Sentou-se e comeu conosco, lendo um número de Playgirl.
Acabo de sair de um casamento de verdade – disse Comstock. – Preciso de uma longa, longa folga.
Tem geleia de morango pra torrada – disse Rheta. – Experimentem a geleia de morango.
Me fale do seu casamento – pedi a Rheta.
Bem, eu peguei um vagabundo imprestável, rato de sinuca...
Rheta nos contou tudo sobre ele, terminou seu café, subiu e começou a passar o aspirador de pó. Então Comstock me falou do seu casamento.
Antes do casamento, foi ótimo. Ela me mostrou todas as suas cartas boas, mas tinha meio baralho que jamais me deixou ver. Eu diria mais que meio baralho.
Comstock tomou um gole de seu café.
Três dias depois da cerimônia, eu voltei pra casa e ela tinha comprado umas minissaias, as minissaias mais curtas que alguém já viu. E quando cheguei ela estava lá sentada, encurtando mais ainda as minissaias. “Que está fazendo?” – perguntei, e ela respondeu: “Essas porras dessas coisas são compridas demais. Eu gosto de usar elas sem calcinha, e gosto de ver os homens olharem minha xoxota quando desço dos banquinhos do bar e tudo mais”.
Ela jogou essa carta em cima de você assim, sem mais aquela?
Bem, talvez eu tenha recebido um aviso. Dois dias antes do casamento, levei ela para conhecer meus pais. Ela pôs um vestido decente e meus pais disseram a ela que gostaram dele. Ela disse: “Gostaram de meu vestido, hem?” E tirou o vestido e mostrou as calcinhas a eles.
Você na certa achou isso encantador.
De certa maneira, sim. Seja como for, ela passou a andar por aí sem calcinha, com as minissaias. Eram tão curtas que se ela curvasse a cabeça você via o cu.
A turma gostou?
Acho que sim. Quando a gente entrava num lugar, eles olhavam pra ela, e depois pra mim. Ficavam lá pensando como é que um cara aceitava aquilo?
Bem, todos temos nosso jeito. Que diabos. Uma xoxota e um cu são só isso mesmo. Não se pode fazer mais nada que isso com eles.
Você pode pensar assim até acontecer com você. A gente deixava um bar, chegava lá fora, e ela dizia: “Escuta, você viu o cara careca no canto? Meteu os olhos pra valer em minha xoxota quando eu me levantei! Aposto que vai pra casa tocar uma punheta.”
Posso lhe servir outro café?
Claro, e ponha um pouco de uísque. Pode me chamar de Roger.
Claro, Roger.
Uma noite, eu voltei pra casa do trabalho e ela tinha ido embora. Tinha quebrado todas as janelas e espelhos da casa. Tinha escrito coisas tipo: “Roger é um merda!” “Roger chupa cu!” “Roger bebe mijo!” em todas as paredes. E foi embora. Deixou um bilhete. Ia tomar um ônibus pra casa da mãe dela no Texas. Estava preocupada. A mãe tinha estado num asilo de doidos dez vezes. Precisava dela. Era o que dizia o bilhete.
Mais um café, Roger?
Só o uísque. Eu fui até a rodoviária e lá está ela numa minissaia, mostrando a xoxota, dezoito caras em volta com ereções. Sento junto dela, e ela começa a chorar. “Um negro aí”, me diz, “falou que eu posso ganhar mil dólares por semana se eu fizer o que ele mandar. Eu não sou nenhuma puta, Roger.”
Rheta desceu a escada, atacou a geladeira para pegar bolo de chocolate e sorvete, entrou no quarto, ligou a TV, deitou na cama e se pôs a comer. É uma mulher muito gorda, mas agradável.
Seja como for – disse Roger –, eu disse que a amava e conseguimos pegar de volta o dinheiro da passagem. Levei-a pra casa. Na noite seguinte, um amigo meu aparece e ela vai por trás e senta a colher de pau da salada na cabeça do cara. Sem aviso, sem nada. Simplesmente vai por trás e dá-lhe uma cacetada. Depois que ele sai, ela me diz que vai ficar bem se eu deixar que frequente uma aula de cerâmica toda noite de quarta-feira. Tudo bem, eu digo. Mas nada funciona. Ela começa a me atacar com facas. É sangue pra tudo que é lado. Sangue meu. Nas paredes e nos tapetes. Ela é muito rápida com os pés. Está no balé, ioga, ervas, vitaminas, come sementes, nozes, essa merda toda, leva uma bíblia na bolsa, metade das páginas sublinhadas com tinta vermelha. Encurta todas as saias mais dois centímetros. Uma noite, estou dormindo e acordo bem a tempo. Ela vem voando por cima dos pés da cama gritando, faca de açougueiro na mão. Eu rolo e a faca se enterra no colchão uns quinze ou vinte centímetros. Eu me levanto e jogo ela contra a parede. Ela cai e diz: “Seu covarde! Seu covarde sujo, você bate em mulher! Você é frouxo, frouxo, frouxo!”
Bem, acho que não devia ter batido nela.
Seja como for, eu saí de casa e iniciei o processo de divórcio, mas isso não acabou com ela pra mim. Ela vivia me seguindo. Uma vez, eu estava na fila do caixa do supermercado. Ela se aproximou e gritou pra mim: “Seu chupador de pau imundo! Sua bicha!” Outra vez, ela me cercou numa lavanderia automática. Eu tirava as roupas da lavadora e punha na secadora. Ela ficou ali parada sem dizer nada. Deixei as roupas, peguei o carro e fui embora. Quando voltei, ela não estava mais lá. Olhei dentro da secadora, vazia. Ela tinha levado minhas camisas, minhas cuecas, minhas calças, minhas toalhas, meus lençóis, tudo. Comecei a receber cartas escritas com tinta vermelha sobre os sonhos dela. Sonhava o tempo todo. Eu não conseguia decifrar a letra. Quando eu estava sentado em meu apartamento à noite, ela vinha e jogava cascalho na minha janela e berrava: “Roger Comstock é bicha!” Os gritos eram ouvidos por quadras e quadras.
Tudo isso parece muito animado.
Aí eu conheci Lynne e me mudei pra cá. Me mudei de manhã cedo. Ela não sabe onde eu estou. Larguei meu emprego. E aqui estou. Acho que vou levar o cachorro de Lynne pra um passeio. Ela gosta disso. Quando ela volta do trabalho, eu digo: “Oi, Lynne, eu levei seu cachorro pra um passeio”. Aí ela sorri. Gosta disso.
Tudo bem – eu disse.
Ei, Boner! – gritou Roger. – Vamos lá, Boner!
A criatura idiota, de barriga mole, entrou salivando. Os dois saíram juntos.

Eu só durei mais três meses. Doreen conheceu um cara que falava três línguas e era egiptologista. Eu voltei pro meu apartamento bombardeado em Hollywood leste.

Eu saía do consultório de meu dentista em Glendale um dia, quase um ano depois, e lá estava Doreen entrando em seu carro. Eu me aproximei e entramos num boteco e tomamos um café.
Como vai o romance? – ela perguntou.
Ainda empacado – respondi. – Acho que nunca vou terminar o filho da puta.
Está sozinho?
Não.
Eu também não.
Bom.
Não é bom, mas tudo bem.
Roger continua lá com Lynne?
Ela ia chutar ele – me contou Doreen. – Aí ele ficou bêbado e caiu da sacada. Ficou paralítico da cintura pra baixo. Recebeu cinquenta mil dólares da companhia de seguros. Depois ficou melhor. Passou das muletas pra bengala. Podia levar Boner pra passear de novo. Recentemente, fez umas fotos maravilhosas da Olvera Street. Escuta, preciso correr. Vou pra Londres na semana que vem. Umas férias de trabalho. Todas as despesas pagas! Tchau.
Tchau.
Doreen levantou-se de um salto, sorriu, afastou-se, dobrou para oeste e desapareceu. Eu ergui minha xícara de café, tomei um gole, tornei a pô-la na mesa. A conta ali estava. Um dólar e oitenta e cinco. Eu tinha dois dólares, que davam para cobrir a conta, mais a gorjeta. Como diabos ia pagar o dentista era outra história.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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