A
gente convivia com os escorpiões. Houve dia em que apareceram onze
dentro de casa. Tanto assim não era comum. Acontecia quando as
formigas, por razões desconhecidas, formavam corredeiras e se punham
a marchar em filas intermináveis pelos cantos da casa, saindo de uma
fresta do assoalho e desaparecendo em outra. As formigas não temiam
os terríveis aracnídeos. Metiam-se em suas tocas e os pobrezinhos,
indefesos, tinham de sair do abrigo acolhedor do seu lar para se
expor ao perigo de se movimentar a descoberto. A população de
escorpiões aumentava sempre quando o Zé Ripá trazia lenha no seu
caminhão arruinado. Aí eles se punham a andar pelo quintal, e não
era incomum ver uma galinha idiota ou um pato espantado tentando
comer um escorpião de rabo levantado, sem saber do perigo que morava
naquele bicho esquisito. Mas logo eles desapareciam. O monte de lenha
era uma espécie de favela provisória para os recém-chegados. Mas
eles, sem terra, logo invadiam propriedade alheia, descobriam que o
porão escuro era lugar muito mais adequado para fixarem residência
definitiva.
Sobre
os escorpiões se contavam muitas estórias, sendo a mais famosa
delas que os bichos, cercados por um braseiro, sabendo que não
tinham saída, cometiam suicídio como samurais japoneses, enterrando
o ferrão venenoso na própria nuca. De fato, basta um pouco de
imaginação para perceber intenções suicidas nos bichinhos, que
andam, normalmente, com o rabo curvado e apontando para o pescoço.
Pelo menos era isso que haveríamos de pensar de um policial que
andasse pela rua com o revólver apontado para a própria cabeça.
Mas como nós meninos tínhamos mentalidade científica e não
estávamos dispostos a acreditar em boatos, resolvemos tirar a
questão a limpo com um escorpião capturado. Fizemos uma rodinha,
agachados à sua volta, enquanto um correu à cozinha para pegar uma
pá de brasas no fogão de lenha. Logo o pobre escorpião se
encontrou em situação idêntica à de Joana D’Arc. E ficamos ali
na expectativa, à espera do gesto humano que o aproximaria de nós.
Mas nada. O bicho se recusou a cometer suicídio e morreu mesmo foi
torrado pelas brasas.
Todo
escorpião que se pegava ia para dentro de um vidro com álcool. É
que suco de escorpião, suas tripas esmagadas, tem o poder de curar a
dor da picada. Pelo menos era isso que todos diziam enquanto
relatavam curas milagrosas. Se isso era verdade no caso de cobra, por
que não ser verdade no caso de escorpião? Pois soro contra mordida
de cobra não se faz mesmo não é com o veneno da dita? O vidro
ficava no porta-bibelôs, bem à vista das visitas, e se por acaso
faltasse assunto, escorpião em conserva virava escorpião em
conversa.
Minha
mãe foi picada por escorpião. Por via das dúvidas, achamos melhor
não acreditar no valor curativo das tripas do aracnídeo e mandamos
chamar o farmacêutico, que deu uma injeção. Eu quase fui picado
quando enfiei o pé descalço debaixo da bola de borracha encostada
no canto da parede, e atrás dela estava um escorpião de rabo em pé.
E o meu pai, quase também. Só que a estória dele poderia ter tido
um desfecho trágico. Só não o foi por proteção de algum santo ou
espírito de luz. Tudo se deveu ao seu curioso costume de ir fazer
suas necessidades no banheiro com a luz apagada. As razões para
isso, que são sempre discutidas quando se conta este caso, nunca
puderam ser esclarecidas. Alguns dizem que era para economizar
eletricidade. Outros, que ele considerava aquele momento um momento
próprio para a meditação, o que é bem verdadeiro. Muitos relatos
religiosos contam de experiências de iluminação acontecidas quando
a pessoa se encontrava assentada no trono, como é o caso da famosa
Türm Erlebnis, de Lutero. Outros invocam a questão do pudor:
como se aquilo fosse coisa vergonhosa que devesse acontecer ao abrigo
da escuridão. Mas esta é uma questão que não interessa à
substancialidade do acontecido que passo a narrar. Como de costume,
ele se preparava para se assentar no lugar devido, luz apagada,
quando, por alguma estranha inspiração, interrompeu o movimento
descendente que já se iniciara, a fim de fazer algo que nunca fazia:
acender a luz. Pois não é que, sobre a tampa quadrada da privada,
ferrão armado, encontrava-se o escorpião? Meu pai livrou-se não só
de uma ferroada, como também do embaraço de ter de explicar a
situação constrangedora em que o acidente teria se dado.
Dona
Mazinha abrigava em sua casa um filho, a nora e um neto, menino de
uns sete anos, molenga e choroso, que vivia brincando com a gente no
pastinho. Pois aconteceu que um dia ele enfiou a mão dentro de um
buraco no barranco, morada de um escorpião. A gritaria foi infernal;
o menino carregado nos braços, lânguido, para dentro da casa, para
comoção de toda a redondeza. A casa de dona Mazinha tornou-se o
centro da curiosidade de toda a vizinhança, que começou a fazer
romaria para ver como estava passando o menino. Nós, que temíamos
aquela língua desenfreada, tratávamos de nos manter sempre a
respeitosa distância. Mas naquele dia não teve jeito. Tínhamos de
fazer uma visita. Se não o fizéssemos era sinal de orgulho e
garantia de mau-olhado. Lá pelas quatro da tarde fomos em nossa
peregrinação visitar o menino ferido. E qual não foi a nossa
surpresa: era uma cena de presépio. Os adoradores em volta, num
semicírculo, e no lugar de honra, para a contemplação piedosa de
todos, a criança assentada no chão, pernas cruzadas. No meio das
pernas um penico, cheio de urina, nunca soubemos quem havia sido o
doador, ou doadores, medicina mais potente para a cura de picada de
escorpião que o próprio veneno de escorpião. O menino-jesus tinha
a sua mão direita mansamente mergulhada no mágico líquido amarelo.
Dona
Mazinha, certamente perseguida pelo medo de que a julgássemos pobre,
apressou-se a explicar aquela cena nunca vista:
“O
penico é novo. Foi comprado hoje...”
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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