J.
J. R. — O que o senhor tem a dizer sobre o ser humano?
Nelson
Rodrigues — “O ser humano é o único que se falsifica. Um
tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até
morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como
tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa.
Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao
mesmo tempo, falsifica o mundo”. — Aparenta desânimo. — “O
ser humano, tal como imaginamos, não existe”. — Expressa-se, de
forma veemente: — “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem
uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao
passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez”. — Diz
enquanto retira um cigarro do maço e manipula um isqueiro: —
“Somos aquela pureza e somos aquela miséria. Ora aparecemos
varados de luz, como um santo de vitral, ora surgimos como faunos de
tapete”. — Engrossando e reforçando o timbre de voz: — “Só
não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de
culpa nos salva.” — Neste instante, aproxima-se e em voz baixa,
fumando mais um cigarro: — “O homem não nasceu para ser grande.
Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um
ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o
empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas
vivas.” — Silêncio prolongado. — “O ser humano é cego para
os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se
vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de
nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à
boca de cena e anunciar, de testa erguida: ‘Senhoras e senhores, eu
sou um canalha’”. — E, em tom eloquente: — “Não há nada
que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”.
Nelson Rodrigues, in entrevista ao repórter J. J. Ribeiro, do jornal O Opiniático
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