sexta-feira, 8 de abril de 2022

Luto

Adoro casas e todas as coisas que elas me dizem, então essa é uma das razões por que eu não me importo de trabalhar como faxineira. É como ler um livro.
Há algum tempo, venho trabalhando para Arlene, da imobiliária Central Reality. Limpando basicamente casas vazias, mas mesmo casas vazias têm histórias, pistas. Uma carta de amor enfiada bem no fundo de um armário, garrafas de uísque vazias atrás da secadora, listas de compras… “Por favor, compre sabão em pó, um pacote de linguine e seis latinhas de cerveja. Eu não quis realmente dizer aquilo que eu disse ontem à noite.”
Ultimamente tenho limpado casas onde alguém acabou de morrer. Faço faxina e ajudo a separar as coisas para as pessoas levarem ou doarem para caridade. Arlene sempre pergunta se elas têm roupas ou livros para doar para a Casa de Repouso para Pais Judeus, que é onde a mãe dela, Sadie, está. Esses trabalhos têm sido deprimentes. Ou todos os parentes querem tudo — e discutem por causa das menores coisas, um par de suspensórios velhos e xexelentos ou uma caneca de café — ou nenhum deles quer saber de nada do que tem na casa inteira, e aí eu simplesmente empacoto tudo. Nos dois casos, o triste é a quantidade ínfima de tempo que isso leva. Pense só. Se você morresse… eu poderia me livrar de todos os seus pertences em duas horas, no máximo.
Na semana passada, limpei a casa de um carteiro negro, bem velhinho. Arlene o conhecia, disse que ele estava acamado por causa da diabetes e tinha morrido de ataque cardíaco. Segundo ela, era um velho mesquinho e severo, presbítero de uma igreja. Era viúvo; sua mulher tinha morrido dez anos antes. Arlene é amiga da filha dele, uma ativista política, membro do Conselho de Educação de Los Angeles. “Ela fez muito pela educação e pela moradia dos negros; é uma senhora durona”, disse Arlene. Então ela deve ser mesmo, já que é isso que as pessoas sempre dizem a respeito de Arlene. O filho é cliente de Arlene, e é outra história. Promotor público em Seattle, tem imóveis espalhados por Oakland inteira. “Eu não diria que ele é exatamente um daqueles senhorios que chupam o sangue de inquilinos pobres, mas…”
O filho e a filha só chegaram à casa do pai no final da manhã, mas eu já sabia muito a respeito deles, pelo que Arlene tinha me contado e pelas pistas que encontrei. A casa estava silenciosa quando eu entrei com a chave que tinham me dado, aquele silêncio ecoante de uma casa onde não mora mais ninguém, onde alguém acabou de morrer. Ficava num bairro decadente da zona oeste de Oakland. Parecia uma pequena casa de fazenda, bem-arrumada e bonitinha, com um balanço na varanda, um quintal bem cuidado, com velhas roseiras e azaleias. A maior parte das casas ao redor tinha janelas tapadas com ripas, paredes pichadas. Grupos de velhos beberrões me observavam de degraus cediços de varandas; jovens traficantes de crack esperavam clientes parados na esquina ou sentados em carros.
Do lado de dentro, a casa também parecia muito afastada daquele bairro, com cortinas de renda, móveis de carvalho polidos. O velho havia passado seu tempo num amplo jardim de inverno nos fundos da casa, numa cama hospitalar e numa cadeira de rodas. Havia samambaias e violetas africanas amontoadas em prateleiras nas janelas e quatro ou cinco comedouros de pássaros logo em frente à vidraça. Uma enorme televisão nova, um aparelho de videocassete, um aparelho de CD — presentes dos filhos, imaginei. No consolo da lareira, havia uma fotografia de casamento, ele de smoking, com o cabelo penteado para trás, um bigode bem fino. A noiva era jovem e bonita; ambos tinham uma expressão solene. Uma fotografia dela, já idosa e de cabelo branco, mas com um sorriso, olhos sorridentes. Solenes também eram as fotos de formatura dos dois filhos, ambos bonitos, confiantes, arrogantes. A foto do casamento do filho. Uma bela noiva loura, com um vestido de cetim branco. Uma foto dos dois com uma menininha de cerca de um ano. Uma foto da filha com o deputado Ron Dellums. Na mesa de cabeceira havia um cartão com uma mensagem que começava assim: “Desculpe, eu estava com tanta coisa para resolver que simplesmente não tive como ir passar o Natal em Oakland…”; poderia ter sido enviado por qualquer um dos dois. A Bíblia do velho estava aberta no Salmo 104. “Ele olha a terra e ela estremece, toca as montanhas e elas fumegam.”
Antes de eles chegarem, limpei os quartos e o banheiro do andar de cima. Não havia muita coisa, mas tudo o que estava nos guarda-roupas e nos armários eu empilhei em cima de uma das camas. Eu estava limpando a escada quando eles entraram, então desliguei o aspirador. Ele foi simpático, apertou a minha mão; ela só acenou com a cabeça e depois subiu a escada. Eles pareciam ter vindo direto do funeral. Ele estava usando um terno preto com listras finas douradas e colete; ela usava um conjunto de cashmere cinza e uma jaqueta cinza de camurça. Ambos eram altos e extremamente elegantes. O cabelo preto dela estava preso num coque. Ela nunca sorria; ele sorria o tempo todo.
Fiquei atrás dos dois enquanto eles passavam pelos quartos. Ele pegou um espelho oval trabalhado. Eles não queriam mais nada. Perguntei se havia alguma coisa que eles pudessem doar para a Casa de Repouso para Pais Judeus. Ela baixou os olhos pretos e os cravou em mim.
Nós parecemos judeus pra você?”
Mais que depressa, ele me explicou que pessoas da Igreja Batista Rosa de Sharon iriam passar mais tarde para pegar tudo o que eles não quisessem. E a loja de artigos hospitalares viria buscar a cama e a cadeira de rodas. Ele disse que achava melhor me pagar logo e puxou quatro notas de vinte de um maço grosso de notas presas com um clipe de prata. Pediu que eu trancasse a casa, depois de terminar a faxina, e deixasse a chave com Arlene.
Enquanto eu limpava a cozinha, eles foram examinar o jardim de inverno. O filho pegou a foto de casamento dos pais e as suas próprias fotos. Ela queria a foto da mãe. Ele também, mas disse: “Não, pode ficar”. Ele pegou a Bíblia; ela pegou a foto dela com Ron Dellums. Eu e ela o ajudamos a levar a televisão, o aparelho de videocassete e o aparelho de CD até o porta-malas do Mercedes dele.
Meu Deus, é horrível olhar para esse bairro agora”, ele disse. Ela não disse nada. Não creio que tenha olhado para o bairro. Voltando para dentro da casa, ela se sentou no jardim de inverno e olhou ao redor.
Eu não consigo imaginar o papai observando pássaros e cuidando de plantas”, disse ela.
Estranho, né? Mas a sensação que eu tenho é que nunca conheci o papai de verdade.”
Era ele que nos fazia trabalhar duro.”
Eu lembro dele espinafrando você quando você tirou um C em matemática.”
Não foi um C, foi um B”, disse ela. “Um B mais. Nunca nada do que eu fazia era bom o bastante para ele.”
É, eu sei. Mesmo assim… eu gostaria de ter passado mais tempo com ele. Odeio pensar em quanto tempo fazia que eu não vinha aqui… Sim, eu telefonava bastante pra ele, mas…”
Ela o interrompeu, dizendo para ele não se culpar, e depois eles falaram sobre como teria sido impossível levar o pai para morar com qualquer um deles dois, como era difícil para ambos tirar folga do trabalho. Estavam tentando fazer com que o outro se sentisse bem, mas dava para perceber que os dois estavam se sentindo muito mal.
Eu e minha língua comprida. Seria tão bom se eu conseguisse simplesmente calar a boca. O que fiz foi dizer: “Esse jardim de inverno é tão agradável. Parece que o pai de vocês foi feliz aqui”.
Parece, não é?”, disse o filho, sorrindo para mim, mas a filha me lançou um olhar colérico.
Não é da sua conta se ele foi ou não foi feliz.”
Desculpe. Lamento se fui intrometida”, eu disse. Lamento não poder dar um tapa nessa sua cara de víbora.
Um drinque cairia bem agora”, disse o filho. “É pouco provável que haja alguma bebida na casa.”
Eu mostrei a ele o armário onde havia uma garrafa de conhaque, um pouco de licor de menta e xerez. Perguntei o que eles achavam de ir para a cozinha enquanto eu esvaziava os armários, pois assim eu poderia ir mostrando as coisas antes de encaixotá-las. Eles foram para a mesa da cozinha. Ele serviu bebida para ambos, duas generosas taças de conhaque. Ficaram bebendo e fumando cigarros Kool, enquanto eu tirava as coisas dos armários. Nenhum deles quis nada, então eu encaixotei tudo rapidamente.
Também tem algumas coisas na despensa…” Eu sabia porque estava de olho nelas. Um velho ferro de passar, com cabo de madeira trabalhada, feito de ferro fundido preto.
Eu quero isso!”, os dois disseram.
A sua mãe realmente passava roupa com esse ferro?”, eu perguntei ao filho.
Não, ela usava pra fazer misto-quente. E corned beef, para prensar a carne.”
Eu sempre me perguntei como as pessoas faziam isso…”, eu disse, falando demais de novo, mas calei a boca porque a filha estava me olhando com aquela cara.
Um rolo de macarrão velho e surrado, polido pelo uso, acetinado.
Eu quero isso!”, os dois disseram. Ela até riu nessa hora. O conhaque e o calor da cozinha haviam suavizado o penteado dela, mechas de cabelo se encaracolavam ao redor do seu rosto, agora brilhoso. O batom tinha sumido; ela estava parecendo a menina da foto de formatura. Ele tirou o paletó, o colete e a gravata, enrolou as mangas da camisa. Ela me pegou olhando para o corpo bem-feito dele e me lançou aquele olhar fulminante.
Nesse momento, funcionários da loja de artigos hospitalares chegaram para pegar a cama e a cadeira de rodas. Eu os levei até o jardim de inverno, abri a porta dos fundos. Quando voltei, o irmão tinha posto mais um pouco de conhaque nas taças dos dois. Ele se inclinou na direção dela.
Faça as pazes com a gente”, ele disse. “Passe um fim de semana lá em casa, conheça melhor a Debbie. E você nunca viu a Latania. Ela é linda, parecidíssima com você. Por favor.”
Ela não disse nada. Mas eu percebi que a morte estava trabalhando nela. Morte é cura, ela nos convence a perdoar, nos faz lembrar que não queremos morrer sozinhos.
A irmã fez que sim. “Eu vou”, disse ela.
Oba! Que bom!” Ele pôs a mão em cima da dela, mas ela recuou. Sua mão chegou para trás e se agarrou à beira da mesa como uma pata rígida.
Nossa, você é uma filha da mãe fria, eu disse. Não em voz alta. Em voz alta eu disse: “Agora tem uma coisa aqui que eu aposto que vocês dois vão querer”. Uma fôrma de waffle de ferro fundido, bem pesada, do tipo que você bota em cima do fogão. A minha avó Mamie tinha uma dessas. Não há nada como aqueles waffles. Bem crocantes e torradinhos por fora e macios por dentro. Eu pus a fôrma de waffle em cima da mesa, no meio dos dois.
Ela estava sorrindo. “Olha, isso é meu!”
Ele riu. “Você vai ter que pagar uma fortuna de excesso de peso no avião.”
Não tem importância. Você se lembra como a mamãe sempre fazia waffles quando a gente ficava doente? Com xarope de bordo de verdade?”
E no Valentine’s Day ela fazia waffles em forma de coração.”
Só que eles nunca ficavam nem um pouco parecidos com corações.”
Não, mas a gente dizia: ‘Mãe, eles ficaram iguaizinhos a corações!’”
Com morango e chantili.”
Eu trouxe outras coisas, então, tabuleiros e caixas de potes de compota que não eram interessantes. A última caixa, que estava na prateleira de cima, eu botei em cima da mesa.
Aventais. Daquele tipo antigo, com peitilho. Feitos à mão, bordados com pássaros e flores. Panos de prato, também bordados. Todos feitos com sacos de farinha ou com pedaços de tecido riscadinho de roupas velhas. Macios e desbotados, com cheiro de cravo e baunilha. “Esse foi feito com o pano do vestido que eu usei no primeiro dia de aula da quarta série!”
A irmã estava desdobrando cada avental e pano de prato e os estendendo em cima da mesa. Ah, Ah, ela dizia a toda hora. Lágrimas escorriam pelas suas bochechas. Ela juntou todos os aventais e panos de prato e os segurou junto ao peito.
Mamãe!”, exclamou. “Minha mãezinha tão querida!”
O irmão também estava chorando agora e foi para perto da irmã. Ele a abraçou, e ela deixou que ele a abraçasse e a embalasse. Saí de mansinho da cozinha e fui para o lado de fora pela porta dos fundos.
Eu ainda estava sentada nos degraus quando um caminhão parou na pista de entrada da casa e três homens da igreja batista desceram. Eu os levei até a porta da frente, depois até o andar de cima e lhes mostrei tudo o que era para ir. Ajudei um dos homens a levar as coisas que estavam no andar de cima lá para baixo e depois o ajudei a botar no caminhão o que estava na garagem, ferramentas e ancinhos, um cortador de grama e um carrinho de mão.
Bem, é isso”, um dos homens disse. O caminhão saiu de marcha a ré e os homens acenaram para mim. Voltei lá para dentro. A casa estava em silêncio. Os irmãos já tinham ido embora. Varri o que faltava ser varrido e saí, trancando as portas da casa vazia.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

Nenhum comentário:

Postar um comentário