quarta-feira, 27 de abril de 2022

Judas | 1

Eis aí uma história dos dias de inverno no final de 1959 e início de 1960. Nesta história há erro e desejo, há amor frustrado e certa questão religiosa que ficou aqui sem resposta. Em alguns prédios ainda se reconhecem os sinais da guerra que há dez anos dividiu a cidade. Ao fundo dá para ouvir o toque distante de um acordeão ou os sons nostálgicos de uma gaita ao entardecer, por trás de uma persiana cerrada.
Em muitas residências de Jerusalém é possível ver na parede da sala de estar o redemoinho de estrelas de Van Gogh ou a ardência de seus ciprestes, e nos pequenos quartos ainda estão estendidas esteiras de palha, e um exemplar de Iemei Tziklag ou de Doutor Jivago virado e aberto na beirada de um colchão de espuma coberto com um pedaço de tecido de motivo oriental e um monte de almofadas bordadas. Durante a noite inteira um aquecedor a querosene arde com uma chama azul. De dentro de um cartucho de obus no canto da sala cresce uma espécie de ramalhete estilizado feito de ramos de espinheiro.
No início de dezembro Shmuel Asch interrompeu seus estudos na universidade e pretendia ir embora de Jerusalém, por causa de um amor frustrado, devido a uma pesquisa que empacou e principalmente porque a situação econômica de seu pai despencara e Shmuel se via obrigado a procurar algum trabalho.
Era um rapaz corpulento, barbado, vinte e cinco anos mais ou menos, tímido, sensível, socialista, asmático, com tendência a se entusiasmar facilmente e se decepcionar logo em seguida. Tinha ombros pesados, um pescoço curto e grosso, assim como a mão, e também os dedos: grossos e curtos como se em cada um deles faltasse uma falange. De cada poro do rosto e do pescoço de Shmuel Asch irrompia sem freio um fio de barba encaracolado que lembrava lã de aço. Essa barba se estendia e se juntava ao cabelo, que era todo cacheado, e com o emaranhado de pelos do peito. De longe parecia sempre, fosse no verão ou no inverno, que ele estava todo afogueado e banhado em suor. Mas de perto, com agradável surpresa, se notava que a pele de Shmuel não exalava a acidez do suor, mas simplesmente um delicado aroma de talco de bebê. Ele num instante se embriagava com novas ideias, contanto que essas ideias viessem muito bem formuladas e implicassem numa mudança radical. Mas da mesma forma tendia a se cansar depressa, talvez por causa de um coração dilatado e também porque sofria de asma.
Com grande facilidade seus olhos se enchiam de lágrimas, e isso lhe causava constrangimento e até vergonha: ao pé de uma cerca um filhote de gato berra numa noite de inverno, talvez tenha se perdido da mãe, e esse filhote ergue para Shmuel um olhar de cortar o coração e se esfrega suavemente em sua perna, e logo os olhos de Shmuel se turvam. Ou ao final de algum filme bem mediano sobre solidão e desespero no Cinema Edison de repente se descobre que o personagem mais durão de todos é capaz, afinal de contas, de revelar a grandeza de sua alma, e logo lhe vêm as lágrimas e elas começam a sufocar-lhe a garganta. Ao avistar na saída do Hospital Shaarei Tsedek uma mulher magra e um menino, que lhe são totalmente estranhos, parados e abraçados, ambos chorando — na mesma hora lhe vem o choro e também o arrebata.
Naquela época era comum considerar o choro uma coisa de mulher. Um homem banhado em lágrimas provocava retraimento, e até uma leve repulsa, mais ou menos como uma mulher com uma barbicha crescendo no queixo. Shmuel sentia muita vergonha dessa sua fraqueza e se esforçava muito por superá-la, mas sem conseguir. No íntimo, ele mesmo aderia às zombarias suscitadas por sua sensibilidade, e até se resignava com o pensamento de que sua masculinidade estava um pouco prejudicada e por isso era bastante provável que sua vida fosse passar em branco e sem atingir qualquer objetivo.
Mas o que faz você, perguntava-se às vezes em sua autorrejeição, o que na verdade você faz além de sentir pena? Pois aquele gato, por exemplo, você poderia ter aconchegado no casaco e levado para o seu quarto. Quem o impediu? E você poderia simplesmente ter ido até a mulher chorosa e o menino, e ter perguntado a eles como poderia, quem sabe, ajudá-los. Ou fazer o garoto sentar na varanda com algum livro e com biscoitos, enquanto você e a mulher sentam-se um junto ao outro na cama, no quarto, e aos sussurros esclarecem o que tinha acontecido a ela e o que você poderia tentar fazer?
Alguns dias antes de abandonar você, Iardena lhe disse: Você, ou é uma espécie de cachorrinho todo animado, fazendo barulho, correndo, se esfregando, e até mesmo quando está sentado numa cadeira de certa forma fica rodando o tempo todo em torno de seu rabo, ou ao contrário, passa dias inteiros enfiado na cama como um cobertor que fica lá o inverno todo sem ser arejado.
Com isso Iardena se referia, por um lado, ao eterno cansaço de Shmuel, e por outro a algum componente de insanidade, perceptível em seu modo de andar, no qual sempre se escondia uma corrida reprimida: devorava degraus impetuosamente, de dois em dois. Atravessava ruas movimentadas na diagonal, com muita pressa, e muito risco, sem olhar à direita ou à esquerda, como quem se atira numa briga, a cabeça com sua barba encaracolada se jogando com força à frente, pronta para a batalha, o corpo inclinado para a frente, e sempre parecendo que suas pernas perseguiam com todas as forças o corpo que perseguia a cabeça, como se as pernas tivessem medo de se atrasar caso Shmuel desaparecesse de sua vista depois de dobrar uma esquina, deixando-as para trás. Corria o dia inteiro, ofegando, febril, não porque temesse atrasar-se para a aula ou para um encontro político, mas porque a qualquer momento, pela manhã ou à noite, estava sempre querendo terminar de uma vez o que tinha de fazer, apagar tudo o que tinha anotado em sua lista diária de tarefas. E finalmente voltar para a tranquilidade de seu quarto. Cada dia de sua vida lhe parecia uma cansativa corrida de obstáculos pelo caminho no qual circulava desde o momento em que era arrancado do sono, de manhã, até voltar para debaixo do cobertor de inverno.
Gostava muito de discursar para quem o ouvisse, e sobretudo para os colegas do grupo de estudos sobre a renovação socialista: gostava de explicar, fundamentar, divergir, refutar e propor algo novo. Discorria longamente, com prazer, com agudeza e com ímpeto. Mas quando lhe respondiam, quando chegava sua vez de ouvir as ideias alheias, Shmuel era logo atacado de impaciência, perda de atenção e cansaço a ponto de fechar os olhos e deixar pender a cabeça desgrenhada para o peito estofado.
Também gostava de proferir para Iardena todo tipo de discurso veemente, demolir preconceitos e abalar convenções, tirar conclusões de uma hipótese e formular uma hipótese a partir de uma conclusão. Mas, quando era ela que lhe falava, suas pálpebras costumavam baixar em dois ou três minutos. Ela o acusava de nem sequer a ouvir, ele negava, ela pedia que ele repetisse o que havia dito ainda agora, e ele mudava de assunto e lhe falava do erro que Ben Gurion estava cometendo. Ele era bondoso, generoso, cheio de boa vontade e suave e macio como uma luva de lã, sempre disposto a tudo para ser útil a todos, mas também confuso e impaciente, esquecia onde exatamente tinha pendurado a outra meia ou o que o senhorio estava querendo dele ou a quem tinha emprestado o caderno com as anotações das palestras. Mesmo assim, nunca se confundia ao levantar para citar com toda a exatidão o que Kropótkin tinha dito sobre Necháiev após o primeiro encontro entre os dois e o que disse sobre ele dois anos depois. Ou quem, dos apóstolos de Jesus, era o que falava menos entre todos os outros apóstolos.
Apesar de gostar de seu espírito vivaz, de seu desamparo, do que parecia a ela ser uma qualidade de cão amigável, esfuziante e exuberante, um grande cão que sempre se aperta contra nós para se esfregar e babar em nossos joelhos, Iardena decidiu separar-se dele e aceitar o pedido de casamento feito pelo namorado anterior, um hidrologista aplicado e calado chamado Nesher Sharshavsky, especialista em captação e acumulação de água de chuva, que quase sempre sabia adivinhar exatamente qual seria o próximo desejo dela. Nesher Sharshavsky comprou para ela uma bela echarpe como presente de aniversário, segundo a data do calendário universal, e depois uma esteira ao estilo oriental, verde, de acordo com a data do calendário hebraico, que caiu dois dias depois. Ele se lembrava até mesmo dos aniversários dos pais dela.

Amós Oz, in Judas

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