Uma
amiga iniciou uma nova aventura psicanalítica. Depois de anos, ela
encerrou uma análise que lhe permitiu desatar muitos nós e iniciou
uma jornada no divã de outro psicanalista. Não foi uma troca de
profissionais. Apenas o reconhecimento de que uma boa história havia
se encerrado e o desejo de começar outra. O novo psicanalista
perguntou a ela: “O que você espera desta análise?”. Minha
amiga respondeu: “Eu quero me desconhecer”.
Achei
uma excelente resposta. Ou uma ótima pergunta sobre si mesma. Na
mesma semana, conversando com outro amigo, de uma área bem
diferente, ele me contava que não consegue mais se sentir estimulado
pelo que durante as primeiras décadas da sua vida profissional lhe
deu grande prazer e reconhecimento. Está mais interessado nos
meandros de um novo esporte que começou a praticar do que nos temas
que sempre o interessaram. Só que toda a sua vida adulta e sua
estabilidade financeira foram construídas sobre aquilo que hoje não
lhe dá mais tesão. Ou, seria mais exato dizer, não lhe dá mais
tesão fazer do jeito que fazia antes e que deu certo no passado, mas
que hoje não faz mais sentido para ele.
A
mesma questão tem aparecido em conversas com outros amigos. Por
alguma razão — e não exatamente a faixa etária, porque a
primeira amiga tem 30 e poucos e o segundo mais de 50 —, estou
cercada de pessoas que vivem um momento de vazio. Eu incluída. Quem
me acompanha sabe que, em março de 2010, deixei meu emprego na
revista Época, mantendo apenas esta coluna, e comecei uma vida sem
carteira assinada nem estabilidade e com dinheiro apenas para o
básico. Naquele momento, quando escrevi sobre a minha escolha, eu
dizia que meu desejo era me reinventar. Hoje, passados quase cinco
meses dessa mudança, descubro que, para me reinventar, é preciso
antes me desconhecer.
Foi
uma surpresa para mim — como, por outros caminhos, está sendo para
meus amigos tão diferentes do início deste texto. Hoje, não basta
saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para,
então, saber quem eu posso ser. Vou tentar explicar melhor. Para nos
estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não
com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que
têm, mas com algum grau de livre arbítrio. Embora variem as nuances
do que as pessoas pensam sobre cada um de nós, há algo que é
geral, que emana desse personagem que criamos. E, aqui, quando me
refiro à personagem, não há nenhuma relação com falsidade ou
simulação. É tão verdadeiro quanto qualquer coisa pode ser
verdadeira.
Na
medida em que esse personagem se torna convincente, no sentido de ser
bem-sucedido na sua relação com as várias esferas sociais, ele nos
dá possibilidades e também nos tira possibilidades. Ele nos dá
estabilidade, segurança, certezas, reconhecimento. Mas ele contém
em si uma armadilha. Do tipo: “Bom, então é isso o que eu sou e
esta é a minha vida, daqui em diante é só navegar”. Esse tipo de
conclusão pode se tornar uma prisão se você achar que esse
personagem é tudo o que você é. Ou que tudo o que havia para ser
decidido na sua vida já está dado. Neste caso, a natureza fluida
que nos habita vira cimento. E a busca, que é a matéria que move
nossa existência, termina.
O
que descubro — e que tem se mostrado um caminho bem mais difícil
do que eu imaginava que seria — é a necessidade de se manter, pelo
menos em parte, estrangeiro à própria vida. Manter algo de si no
vazio, uma parte de nós capaz de olhar para o todo como terra
desconhecida, aberta para o espanto de nós em nós. Ou seja: é
preciso ser capaz de olhar para nós mesmos com estranhamento para
que possamos enxergar possibilidades que um olhar viciado tornaria
invisíveis. Este é o processo de se desconhecer como uma forma mais
profunda de se conhecer. Para novamente se desconhecer e assim por
diante. Exige muita coragem. Porque dá um medo danado.
Ao
mudar minha vida para me reapropriar do meu tempo, um dos meus planos
era me dar ao luxo de ficar olhando para o teto, por exemplo, sem
fazer nada que pudesse ser considerado útil ou produtivo. Queria ser
um pouco perdulária com o meu tempo num sentido novo. Em vez disso,
tratei de ocupar todas as minhas horas com tarefas minhas, mas
tarefas. Em vez de acordar às 6h30, como fazia quando tinha emprego
e salário, passei a acordar às 4h30. Eu tinha tanto medo do vazio
que resolvi preenchê-lo todo, a ponto de quase não dormir. Descobri
que precisava abrir mão da covardia de não querer ter tempo para
tudo o que não sei o que é. Demorei meses, me angustiei bastante,
mas consegui me lambuzar de uma liberdade nova.
Descobri
também que deveria fechar algumas portas — e não mais abri-las.
Passei boa parte dos últimos anos abrindo portas e experimentando o
que havia do outro lado. Isso me levou a experiências ricas e me
ajudou a construir o momento em que pude começar a fechar portas.
Descobri então que tão importante quanto abrir é ter a coragem de
fechar. E fechar é muito mais difícil. Quando quase tudo está em
aberto, é preciso ser muito seletivo com relação às portas. O que
eu quero, o que eu não quero. O que é importante, o que não é
importante. O que é bom para mim, o que não é. As pessoas com quem
vale a pena compartilhar projetos, sonhos, as que não quero manter
perto de mim. O que me leva a algum lugar novo ou a alguma forma nova
de ver o mesmo lugar, o que me traz de volta ao mesmo ponto.
Recebi
convites de todos os tipos, alguns bem inusitados. Para ganhar muito
mais dinheiro do que jamais ganhei, para não ganhar nada, para fazer
o que nunca fiz, para fazer o que sempre fiz. Tive de parar e pensar
que, naquele momento, eu tinha de recusar tudo, porque ainda que
algumas propostas fossem quase irrecusáveis, eu precisava ficar no
vazio e me desconhecer, para ser capaz de fazer escolhas mais
verdadeiras. Eu precisava me desintoxicar de mim para poder ser mais
eu mesma.
Descobri
ainda que é preciso resistir também às certezas que as pessoas têm
sobre nós. Há gente de todo o tipo. E alguns ficam muito
desorientados se a gente muda, se qualquer coisa ao redor deles muda.
Querem desesperadamente que voltemos a ser um clichê seguro. Quando
você abre mão do seu clichê, o clichê que mora em alguns começa
a coçar. Desinteressei-me de alguns amigos que queriam porque
queriam que eu dissesse que sentia falta da vida que tinha, muito
parecida com a deles. Percebi que torciam menos secretamente do que
gostariam
para
que meu projeto desse errado, para então continuar vivendo em paz
com certezas sobre as quais, ao que parece, têm muitas dúvidas. Do
mesmo modo que guardei apenas um olhar de Mona Lisa para aqueles que
adoram teorias conspiratórias e queriam saber “de verdade” o que
tinha acontecido, porque lidam melhor com fofocas velhas do que com
fatos novos. Fechar portas é também virar as costas para quem exige
que sejamos sempre os mesmos, para sua própria comodidade.
Mais
difícil do que resistir à necessidade de certezas de quem está ao
nosso redor, é resistir à nossa própria necessidade de certezas —
abrir mão de nossos clichês pessoais. Me descobri agarrada a todos
os meus como um daqueles náufragos de histórias em quadrinhos
boiando sobre destroços em mar aberto. Nos primeiros tempos, ficava
muito desorientada com uma pergunta recorrente que me faziam: “Mas
você deixou de ser repórter?”. Não! Eu não deixei de ser
repórter, gosto cada vez mais de ser repórter. Mas ser repórter
não é tudo o que eu sou. Boa parte das pessoas entende muito bem
quando você “não dá certo” no que faz e tenta ser ou fazer
outras coisas. Mas acha inadmissível que você “dê certo” e
também tente ser ou fazer outras coisas. Não negando a sua
história, pelo contrário. Mas a usando para criar outros eus
possíveis.
Descobrir
as outras possibilidades do que sou é, neste momento, minha maior
tarefa. Para chegar a isso preciso me perder de mim, me desconhecer.
Neste sentido, hoje minha reportagem mais difícil é a busca destes
outros personagens que moram no universo sem limites definidos do que
sou. E que são tão verdadeiros quanto a repórter que sou. E que me
tornarão melhor repórter do que pude ser antes de construir a
chance de viver a verdade dessa busca.
Um
momento da vida que é apenas um momento, que também deve ser
superado para que outros possam vir, já que não me interessa sair
de um escaninho para cair em outro. Nada impede que amanhã eu
descubra que ter um emprego e um formato de vida mais estável é o
melhor para mim — ou que não, eu continue achando mais divertido
viver com mais autonomia e menos dinheiro. Ou que invente um jeito
novo que serve para mim, mas pode não servir para mais ninguém. O
contrato que assinei comigo mesma é o de seguir coerente com a
necessidade de me buscar.
Quando
minha amiga repetiu para mim o que disse ao analista — “Estou
aqui porque quero me desconhecer” —, ela me ajudou a compreender
melhor o meu momento. E eu pude dizer a meu outro amigo que ele
precisa ter a coragem de se manter sem saber quem é por um tempo,
para poder então descobrir o que quer fazer com seu desejo.
Conto
essa experiência aqui porque acredito que outras pessoas possam
estar vivendo algo parecido, por caminhos e circunstâncias próprias
— e acho importante refletirmos juntos. Manter parte de nós no
vazio provoca muita angústia, mas, se tivermos a coragem de aguentar
um pouco, nos leva a lugares desconhecidos e excitantes de nós
mesmos. Não é nem que as perguntas mudem, mas é o jeito de
fazê-las que precisa ser novo para que possamos alcançar respostas
mais estimulantes. Tenho para mim que as grandes perguntas de todos
nós são sempre as mesmas, o que muda é como buscamos as respostas.
Acho
que se desconhecer é sacudir o cimento que há em nós, colocado por
nossas mãos e também pelas mãos ávidas de outros. E isso vale
para tudo, até para coisas muito triviais. Como aquelas frases:
“Fulano não come peixe” ou “Sicrano detesta sair de casa”.
Se o fulano acredita que, porque não comia peixe aos dez anos, não
vai comer aos 30, nunca vai saber o gosto de um tambaqui. Assim como
nenhuma pequena ou grande aventura acontecerá ao sicrano, já que
não se arrisca além da porta da rua, esmagado que está, no sofá
da sala, pelo dogma que criou para si e que outros ajudaram a
cimentar. Porque é só o começo. Destes pequenos dogmas se passa
para outras verdades absolutas que dizem respeito a todas as áreas
da vida. “Fulano é assim”, portanto fulano é imutável e,
portanto, fulano está morto, mas não sabe.
Meu
conselho é fugir de frases do gênero: “Eu sou um tipo de pessoa
que...” ou “Deixa eu te contar que tipo de pessoa eu sou...”.
Suspeito que quem diz essas coisas não sabe nem o caminho de casa.
Acho que as buscas mais interessantes começam com frases como: “Não
sei mais quem eu sou” ou “Não tenho ideia de quem eu sou”.
Ótimo, podemos dizer que começamos a nos conhecer. Claro que só
para nos perdermos logo adiante. Afinal, para que mais serve a vida?
Eliane Brum, in A Menina Quebrada
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