quarta-feira, 13 de abril de 2022

Capítulo um | Na véspera do tempo

Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras.
Mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.
Juca Sabão

A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais pára de morrer.
Meu Tio Abstinência está encostado na amurada, fato completo, escuro envergando escuridão. A gravata cinza semelha uma corda ao despendurão num poço que é o seu peito escavado. Rasando o convés do barco, as andorinhas parecem entregar-lhe secretos recados.
Abstinência é o mais velho dos tios. Daí a incumbência: ele é que tem que anunciar a morte de seu pai, Dito Mariano. Foi isso que fez ao invadir o meu quarto de estudante na residência universitária. Sua aparição me alertou: há anos que nada fazia Tio Abstinência sair de casa. Que fazia ali, após anos de reclusão? Suas palavras foram mais magras que ele, a estrita e não necessária notícia: o Avô estava morrendo. Eu que viesse, era o pedido exarado pelo velho Mariano. Abstinência me instruiu: rápido, fizesse a mala e embarcássemos no próximo barco para a nossa Ilha. – E meu pai? – perguntei enquanto escolhia roupas. – Está na Ilha, esperando por nós. Depois, o Tio nada mais falou, afivelado em si.
Nem se esboçou para me ajudar a empacotar os miúdos haveres.
Fomos, pela cidade, ele um pouco à frente, com seu andar empinado mas tropeçado de salamaleques. Sempre foi assim: ao mínimo pretexto, Abstinência se dobrava, fazendo vénia no torto e no direito. Não é respeito, não, explicava ele. É que em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos mas simples convidados. A vida, por respeito, requer constante licença.
Os outros familiares eram muito diferentes. Meu pai, por exemplo, tinha a alma à flor da pele. Já fora guerrilheiro, revolucionário, oposto à injustiça colonial. Mesmo internado na Ilha, nos meandros do rio, Madzimi, meu velho Fulano Malta transpirava o coração em cada gesto. Já meu Tio Ultímio, o mais novo dos três, muito se dava a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital. Não frequentara mais a sua ilha natal, ocupado entre os poderes e seus corredores. Nenhum dos irmãos se dava, cada um em individual conformidade.
O Tio Abstinêncio, este que cruza o rio comigo, sempre assim se apresentou: magro e engomado, ocupado a trançar lembranças. Um certo dia, se exilou dentro de casa. Acreditaram ser arremesso de humores, coisa passatemporária. Mas era definitivo. Com o tempo acabaram estranhando a ausência. Visitaram-no. Sacudiram-no, ele nada.
Não quero sair nunca mais.
Tem medo de quê?
O mundo já não tem mais beleza.
Como aqueles amantes que, depois de zanga, nunca mais se querem ver. Assim era o amuo do nosso tio. Que ele tinha tido caso com o mundo. E agora doía-lhe de mais a decadência desse rosto de quem amara. Os outros riram. O parente sofria de tardias poesias?
Você, Abstinêncio, é uma pessoa muito impessoal. Tem medo da vida ou do viver?
Me deixem, irmãos: esta é a minha natureza.
Ou, se calhar, o Mano Abstinêncio não recebeu foi suficiente natureza.
E deixaram-no, só e único. Afinal, era escolha dele. Abstinêncio Mariano despendera a vida inteira na sombra da repartição. A penumbra adentrou-se nele como um bolor e acabou ficando saudoso de um tempo nunca havido, viúvo mesmo sem ter nunca casado. Houve noiva, dizia-se. Mas ela falecera em véspera. Nessa anteviuvez, Abstinêncio passou a envergar uma tarjeta de pano preto, guarnição de luto sobre a lapela. Todavia, do que se conta, sucedia o seguinte: a pequena tarja crescia durante as noites. Manhã seguinte, o paninho estava acrescido de tamanho, a pontos de toalha. E, no subsequente, um lençol já pendia do sombrio casaco. Parecia que a tristeza adubava os pesarosos panos. Na família houve quem logo encontrasse a adequada conveniência: que ali estava uma manufactura têxtil, motivo não de perda chorosa, mas de ganhos chorudos. Diz-se, sem mais que o dizer.
Não sou apenas eu e o Tio Abstinêncio que atravessamos o rio para ir a Luar-do-Chão: toda a família se estava dirigindo para os funerais. A Ilha era a nossa origem, o lugar primeiro do nosso clã, os Malilanes. Ou, no aportuguesamento: os Marianos.
Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas.
Tio?
Sim?
O Avô está morrendo ou já morreu?
É a mesma coisa.
A vontade é de chorar. Mas não tenho idade nem ombro onde escoar tristezas. Entro na cabina do barco e sozinho-me num canto. Não importa o rebuliço nem os ruídos coloridos das vendedeiras de peixe. Minha alma balouça, mais murcha que a gravata do Tio. Houvesse agora uma tempestade e o rio se reviravirasse, em ondas tão altas que o barco não pudesse nunca atracar, e eu seria dispensado das cerimónias. Nem a morte de meu Avô aconteceria tanto. Quem sabe mesmo o Avô não chegasse nunca a ser enterrado? Ficaria sobrado em poeira, nuveado, sem aparência. Sobraria a terra escavada com um vazio sempre vago, na inútil espera do adiado cadáver. Mas não, a morte, essa viagem sem viajante, ali estava a dar-nos destino. E eu, seguindo o rio, eu mais minha intransitiva lágrima.
O calor me faz retirar da cabina. Vou para o convé_ onde se misturam gentes, cores e cheiros. Sento-me na ré, numa escada já sem uso. O rio está sujo, peneirado pelos sedimentos. É o tempo das chuvas, das águas vermelhas. Como um sangue, um ciclo mênstruo vai manchando o estuário.
Está livre, esse chãozito? Uma velha gorda pede licença para se sentar.
Leva um tempo a ajeitar-se no chão. Fica em silêncio, alisando as pernas. As roupas são velhas, de antigo e encardido uso. Contrasta nela um lenço novo, com as colorações todas do mundo. Até a idade do rosto lhe parece minguar, tão de cores é o lenço.
Está-me a olhar o lenço? Este lenço fui dada na cidade. Agora é meu.
Ajeita uma vaidade na cabeça, saracoteando os ombros. Depois, fica estudando o Tio Abstinência. – Esse aí é seu parente? – É meu tio.
A velha me contempla, então, com cuidado. Seus olhos se estreitam chinesamente. Em seguida, volta a olhar Abstinência. Compara-nos, sem dúvida. Depois ela me estende o braço, abrindo um sorriso.
Me chamo Miserinha. É nome que foi dado, mas não da nascença. Como esse lenço que recebi.
De novo, a sua atenção pousa no Tio. Seu olhar parece mais um modo de escutar. Que seria que ela retirava de meu parente? Talvez sua definhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, o sofrimento é uma nudez – não se mostra aos públicos. Abstinência se comporta em sua melancolia. A velha coloca a mão sobre a testa cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinêncio.
Esse homem vai carregado de sofrimento.
Como sabe?
Não vê que só o pé esquerdo é que pisa com vontade? Aquilo é peso do coração.
Explica-me que sabe ler a vida de um homem pelo modo como ele pisa o chão. Tudo está escrito em seus passos, os caminhos por onde ele andou.
A terra tem suas páginas: os caminhos. Está me entendendo?
Mais ou menos.
Você lê o livro, eu leio o chão. Agora, mais junto, me diga: o fato dele é preto?
Sim. Não vê?
Eu não vejo cores. Não vejo nenhuma cor.
Doença que lhe pegou com a idade. Começou por deixar de ver o azul. Espreitava o céu, olhava o rio. Tudo pálido. Depois foi o verde, o mato, os capins – tudo outonecido, desverdeado. Aos poucos lhe foram escapando as demais cores.
Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos.
Se conformara. Afinal, não é o cego quem mais espreita à janela? Lhe fazia falta, sim, o azul. Porque tinha sido a sua primeira cor. Na aldeiazinha onde crescera, o rio tinha sido o céu da sua infância. No fundo, porém, o azul nunca é uma cor exacta. Apenas uma lembrança, em nós, da água que já fomos.
Agora, sabe o que faço? Venho perto do rio e escuto as ondas: e, de novo, nascem os azuis. Como, agora, estou escutar o azul.
Miserinha se levanta. O balanço do barco lhe faz tontear o corado. E lá se afasta. oasso atordoado.
A gorda mete os pés pelos vãos. Entre a multidão vai perdendo destaque.
Já se vislumbra o contorno escuro da Ilha. O barco vai abrandando os motores. Me deixo, brisa no rosto, a espreguiçar o olhar na ondeação. É quando vejo o lenço flutuar nas ondas. É, sem dúvida, o pano de Miserinha. Um alvoroço no peito: a velha escorregara, se afundara nas águas? Era urgente o alerta, parar o barco, salvar a senhora.
Tio, a mulher caiu no rio!
Abstinêncio fica perturbado. Ele que nunca se alterava ergue os braços, alvoroçado. Espreita as ondas, mãos crispadas na borda da embarcação. Urge que seja dado o alarme. Vou empurrando para me chegar à sala de comando. Mas, logo, alguém me sossega: – Não caiu ninguém, foi o vento que levantou um lenço.
Sinto, então, um puxão no ombro. É Miserinha. A própria, cabeça descoberta, cabelo branqueado às mostras. Se junta a mim, rosto no rosto, num segredo: – Não se aflija, o lenço não tombou. Eu é que lancei nas águas.
Atirou o lenço fora? E porquê?
Por sua causa, meu filho. Para lhe dar sortes.
Por minha causa? Mas esse lenço era tão lindo/ E, agora, assim desperdiçado no rio...
E depois? Há lugar melhor para deitar belezas? O rio estava tristonho que ela nunca vira. Lhe atirara aquela alegria. Para que as águas recordassem e fluíssem divinas graças.
E você, meu filho, vai precisar muito de boa proteccão.
Uma gaivota se confunde com o pano, as patas roçando o falso peixe. E logo se juntam outras, invejosas, em barulhação. Quando reparo, já Miserinha se retira, dissolta no meio das gentes.
A Ilha de Luar-do-Chão deve estar a um toque do olhar, tamanha é a agitação. O Tio Abstinência se aproxima, endireitando-se solene contra o vento.
Estava falando com essa velha?
Sim, Tio. Falava.
Pois não fale. Não deixe que ela chegue perto.
Mas, Tio...
Não há mas. Essa mulher que não se chegue.
Nunca! As canoas e jangadas se aproximam para carregar os passageiros para a praia. Alguns homens sobem para o convés para ajudar no transbordo. Fico com Tio Abstinêncio a ver a gente descer. Ele se guarda sempre para último. Há-de morrer depois de todos, dizia o Avô.
A noite está mais espessa, a lancha que nos vem buscar parece flutuar no escuro. Antes de entrarmos na embarcação Abstinêncio me faz parar, mão posta sobre o meu peito: – Agora que estamos a chegar, você prometa ter cuidado.
Cuidado? Porquê, Tio?
Não esqueça: você recebeu o nome do velho Mariano. Não esqueça.
O Tio se minguou no esclarecimento. Já não era ele que falava. Uma voz infinita se esfumava em meus ouvidos: não apenas eu continuava a vida do falecido. Eu era a vida dele.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

Um comentário:

  1. O primeiro capítulo anuncia o que virá, de certo, outros deleitosos capítulos de boa literatura.

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