O
mundo já não era um lugar de viver.
Agora,
já nem de morrer é.
Avô
Mariano
Agora,
já nem de morrer é.
A
lancha que nos vem buscar a bordo é diferente das outras. Nela está
meu pai, Fulano Malta, sentado sobre uma caixa de madeira. Quando me
vê, deixa-se ficar imovente, fosse demasiado o esforço de
simplesmente estar ali. Inclino-me para o saudar. – Está triste,
pai? – Não. Estou sozinho.
– Estou
aqui, pai.
– Faço-me
falta, sem você, meu filho.
Se
ergue, necessitado, quem sabe, de um amparo. Ainda julguei que
buscasse o conforto de um abraço. Mas não. Finge que atenta numa
qualquer gaivota. Também olho o pássaro: suas asas em floração
rectificam a nossa frágil condição. Mão no remo, gesto firme, meu
velho suspira, em consolo: – Ninguém vive de ida e volta.
A
seu lado, reparo então, está um indiano. Reconheço-o, é o médico
da Ilha, o Doutor Amílcar Mascarenha. O médico divide-se entre
Luar-do-Chão e a cidade. Desta vez, ele viajara no mesmo barco e,
sem notar, desembarcáramos juntos. Ele me saúda com um meneio do
chapéu.
– O
médico é porquê? – pergunto a Abstinêncio, que está a meu
lado.
– Para
confirmar.
– Confirmar
o quê? – Olha, já estamos a chegar.
Na
praia esperam-nos. É a família, quase completa. Os homens à
frente, pés banhados pelo rio, acenam-nos. As mulheres atrás,
braços de umas cruzando braços de outras como que segurando um só
corpo. Nenhuma delas me olha no rosto.
Quando
me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento.
Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no
chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a
família; do outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à
espera. Até que uma onda desfaz o desenho na areia. Olhando a berma
do rio, o Tio Abstinência profere: – O Homem trança, o rio
destrança.
Estava
escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume.
Só então Abstinência e meu pai avançam para os abraços.
Voltando-se para mim, meu tio autoriza: – Agora, sim, receba os
cumprimentos! Nada demora mais que as cortesias africanas.
Saúdam-se
os presentes, os idos, os chegados. Para que nunca haja ausentes.
Palavras que apertam tanto quanto o entrecruzar de braços das
mulheres que nos esperam.
Depois
das circunstâncias, atravessamos o mercado do peixe. As vendedeiras
estão já arrumando os apetrechos, desmanchando as tendas. Os
últimos peixes são vendidos ao desbarato. Daqui a umas horas
estarão podres.
– Ajude-me,
meu filho.
Ainda
pensei ser uma vendedeira, assediando-me. Mas é Miserinha que me
pede que a conduza, entre a multidão.
– Vá
olhando os céus, veja se está passar um pássaro.
Meu
tio faz-me sinal para que me afaste da gorda. Mas não a posso deixar
sem cumprir esse favor de atravessar o mercado. Olho para o céu.
Passa a lenta garça, de regresso às grandes árvores.
– Veja,
Miserinha, uma garça! – Isso garça não é. É um mangondzwane.
É
um pássaro-martelo, bicho coberto de lendas e maldições. Miserinha
reconhecia-o sem deixar de olhar para o chão.
– Fique
atento a ver se ele canta.
Passa
sem cantar. Um frio me golpeia. Ainda me lembro do mau presságio que
é o silêncio do mangondzwane. Algo grave estaria para ocorrer na
vila.
– Suba
no ganda-ganda! Nem tempo tenho de me despedir. Me empoleiro no
atrelado do tractor, vou circulando entre caminhos estreitos de
areia. Até há pouco a vila tinha apenas uma rua. Chamavam-lhe, por
ironia, a Rua do Meio. Agora, outros caminhos de areia solta se
abriram, num emaranhado. Mas a vila é ainda demasiado rural,
falta-lhe a geometria dos espaços arrumados. Lá estão os
coqueiros, os corvos, as lentas fogueiras que começam a despontar.
As casas de cimento estão em ruína, exaustas de tanto abandono. Não
são apenas casas destroçadas: é o próprio tempo desmoronado.
Ainda vejo numa parede o letreiro já sujo pelo tempo: “A nossa
terra será o túmulo do capitalismo”. Na guerra, eu tivera visões
que não queria repetir. Como se essas lembranças viessem de uma
parte de mim já morta.
Dói-me
a Ilha como está, a decadência das casas, a miséria derramada
pelas ruas. Mesmo a natureza parece sofrer de mau-olhado. Os
capinzais se estendem secos, parece que empalharam o horizonte. À
primeira vista, tudo definha. No entanto, mais além, à mão de um
olhar, a vida reverbera, cheirosa como um fruto em verão: enxames de
crianças atravessam os caminhos, mulheres dançam e cantam, homens
falam alto, donos do tempo.
Cruzamo-nos
com um luxuoso automóvel enterrado no areal. Quem traria viatura da
cidade para uma ilha sem estrada? – Olha, é o Tio Ultímio! – e
acenam.
Meu
Tio Ultímio, todos sabem, é gente grande na capital, despende
negócios e vai politicando consoante as conveniências. A política
é a arte de mentir tão mal que só pode ser desmentida por outros
políticos. Ultímio sempre espalhou enganos e parece ter lucrado,
acumulando alianças e influências. No entanto, ele ali se apresenta
frágil, à mercê de uma pobre mão. No tractor comentam vastamente
o carro afocinhado, rodas enfronhadas na areia. Mas não param. Ainda
há alguns que insistem nos deveres solidários. Mas Fulano Malta é
terminante: – Ele que se desenterre – é sua arreganhada
sentença.
Por
fim, avisto a nossa casa grande, a maior de toda a Ilha. Chamamos-lhe
Nyumba-Kaya, para satisfazer familiares do Norte e do Sul. “Nyumba”
é a palavra para nomear “casa” nas línguas nortenhas. Nos
idiomas do Sul, casa se diz “kaya”.
Mesmo
ao longe, já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É
assim, em caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos
compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades. A casa é um
corpo – o tecto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus.
Sobre mim se abate uma visão que muito se irá repetir: a casa
levantando voo, igual ao pássaro que Miserinha apontava na praia. E
eu olhando a velha moradia, a nossa Nyumba-Kaya, extinguindo-se nas
alturas até não ser mais que nuvem entre nuvens.
Desembarcamos
do tractor, aos molhos. A grande casa está defronte a mim,
desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a
Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas
estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se
confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria
residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável.
À
porta está Tia Admirança, irmã de minha Avó. Era muito mais nova
que Dulcineusa, filha de um outro casamento. Dizíamos, brincando,
que ela era irmã afastada. Em Luar-do-Chão não há palavra para
dizer meia-irmã. Todos são irmãos em totalidade.
Admirança
é a primeira pessoa que me beija. Seus braços me apertam,
demorados. Com o corpo, Admirança fala tristezas que as palavras
desconhecem.
– Por
que demoraste tanto? – Não fui eu, Tia. Foi o tempo.
No
quintal e no interior da casa tudo indicia o enterro. Vive-se, até
ao detalhe, a véspera da cerimónia. Na casa grande se acotovelam os
familiares, vindos de todo o país. Nos quartos, nos corredores, nas
traseiras se aglomeram rostos que, na maior parte, desconheço. Me
olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha.
Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que
isso: irreconhecem-me. Pois eu, na circunstância, sou um aparente
parente. Só o luto nos faz da mesma família.
Seja
eu quem for, esperam de mim tristeza. Mas não este estado de
ausência. Não os tranquiliza ver-me tão só, tão despedido de
mim. Em África, os mortos não morrem nunca. Excepto aqueles que
morrem mal. A esses chamamos de “abortos”. Sim, o mesmo nome que
se dá aos desnascidos. Afinal, a morte é um outro nascimento.
– Venha,
meu filho, que está relampejar.
Tia
Admirança me convida para dentro. Vamos rompendo entre a enchente,
espremidos um contra o outro como duas pahamas, essas árvores que se
estrangulam, num abraço de raízes e troncos. De encontro ao peito,
sinto os seus seios provocantes. Provoquentes, diria meu Avô
Mariano.
– Cuidado
com os relâmpagos – insiste ela.
Olho
a noite e não vislumbro faiscação. O céu está limpo de escuro.
Admirança nota a minha incredulidade.
– Não
sabe? Aqui há desses relâmpagos que não fazem luz. Esses é que
matam muito.
A
Tia caminha agora à frente. Aprecio o quanto o seu corpo acedeu à
redondura, mas se conserva firme. Acontecendo como o chão: por
baixo, subjaz a ardente lava, fogo acendendo fogo.
– Vá,
vamos ver a Avó, ela pediu para lhe ver assim que você chegasse...
Paramos
à porta do quarto da Avó Dulcineusa. Antes de entrarmos, minha tia
faz de conta que me ajeita a camisa. E me avisa: a Avó não estava
muito bem, submersa ao peso da tristeza. Começara a desvairação
mesmo antes do falecimento. Mas, agora, ela se agravara. Se
equivocava em nomes, trocava lugares.
Entramos,
nos respeitos. A Avó está sentada no cadeirão alto, parece
estatuada em deusa. Ninguém é tão vasto, negra em fundo preto. O
luto duplica sua escureza e lhe acrescenta volumes. Em redor, como se
fora um presépio, estão os filhos: meu pai, Abstinêncio e Ultímio,
que acaba de entrar. A voz grave de Dulcineusa torna o compartimento
mais estreito: – Já alguém deitou água à casa? Todos os dias a
Avó regava a casa como se faz a uma planta. Tudo requer ser aguado,
dizia ela. A casa, a estrada, a árvore. E até o rio deve ser
regado.
– Tenho
que ser eu a lembrar-me de tudo. Estou tão sozinha. Apenas tenho
este miúdo! Aponta para mim. O dedo permanece estendido, como que em
acusação, enquanto as carnes lhe estremecem, pendentes do
antebraço. Só então reparo nas mãos da Avó. Já quase não
lembrava seus dedos cancromidos, queimados pelo trabalho de descascar
fruto de caju. Dulcineusa me aponta aquele dedo desunhado e é como
se me espetasse uma vaga culpa.
– Só
este miúdo – repete com voz sumida. Tia Admirança faz menção de
sair. Deixava a Avó na companhia estreita de seus directos filhos.
– Você
fica, Mana Admirança! – ordena Dulcineusa. E virando-se para mim:
– Me diga, meu neto, você, lá na cidade, foi iniciado? Tio
Abstinêncio tosse, em delicada intromissão. – É que eles lá na
cidade, mamã…
– Ninguém
lhe pediu falas, Abstinência.
O
inquérito tem exacta finalidade. Querem saber se eu já atingi a
idade do luto. De novo, a matriarca espeta seus inquisitivos olhares
em mim: – Me deixe que lhe pergunte, meu neto Mariano, você foi
circuncidado? Abano a cabeça, negando. Meu pai nota o meu embaraço.
Calado, ele me sugere paciência, com um simples revirar de olhos. A
Avó prossegue: – Me responda ainda mais: você já engravidou
alguma moça? Abstinência interfere, uma outra vez: – Mamã, o
moço tem maneiras dele para... – Quais são seus namoros? –
insiste a velha. Um constrangimento nos encolhe a todos. Meu pai
brinca, adiantando: – Ora, mamã, o melhor é ele falar de suas
doenças.. .
– Namoros
são doenças – corrige a Avó.
Não
chego a pronunciar palavra. A conversa rodopia no círculo pequeno
dos donos da fala, em obediências e respeitos. Tudo lento, para se
escutarem os silenciosos presságios. Após longa pausa, a Avó
prossegue: – Falo tudo isso, não é por causa de nada. É para
saber se você pode ou não ir ao funeral.
– Entendo,
Avó.
– Não
diga que entende porque você não entende nada. Você ficou muito
tempo fora.
– Está
certo, Avó.
– Seu
Avô queria que você comandasse as cerimónias.
Meu
pai se levanta, incapaz de se conter. Abstinência o puxa para que se
volte a sentar, em calada submissão. No rosto de meus tios disputam
zanga e incredulidade. O Avô terá mesmo dito que eu iria exercer as
primazias familiares? Que eu seria chefe de cerimónia, sabendo que
isso era grave ofensa contra a tradição? Havia os mais-velhos, com
mais competência de idade.
– Bom,
falta saber se ele está mesmo morto.
– Está
morto – sentencia Dulcineusa. – Tem que ser você, Marianinho, a
mestra r a cerimónia.
– Qual
cerimónia? – pergunta Abstinência. – Se ele não estiver
realmente morto, de que cerimônia estamos a falar? A Avó agita o
braço para fechar o assunto. Ordena silêncio, quer que todos se
voltem a sentar.
– Eu
não confio em mais nenhum. Só em você, meu neto, só em você eu
deito fianças.
Faz
chocalhar um saco que traz preso na cintura. E pergunta: – Sabe o
que é este saco? – Não sei, Avó.
– É
aqui onde escondo as chaves todas da Nyumba-Kaya. Você vai guardar
estas chaves, Mariano.
Faço
menção de me desviar do encargo. Como podia aceitar honras que
competiam a outros? Mas Dulcineusa não cede nem concede.
– Tome.
E guarde bem escondido. Guarde esta casa, meu neto! .
Estendeu-me
o braço para que eu recolhesse o molho de chaves. E eu, boca
fechada, aceitando os comandos de minha Avó. Estar calado ou estar
sem falar é a mesma coisa? A Avó se acanhava com esse sentimento
fundo e antigo, um medo fundado no que ela já vira e agora
adivinhava repetir-se. Que outros da nossa família viriam disputar
os bens, reclamar heranças, abutrear riquezas.
– Hão-de
vir os outros, os da família de Mariano. Virão buscar as coisas,
disputar os dinheiros.
– Havemos
de falar com eles, Avó.
– Você
não conhece a sua raça, meu filho. Eles olham para mim e vêem uma
mulher. Sou uma viúva, você não sabe o que é isso, miúdo.
Ser-se
velha e viúva é ser merecedora de culpas. Suspeitariam, certamente,
que a Avó seria autora de feitiços. O estado moribundo de Mariano
seria obra de Dulcineusa. De repente, a Avó se converteria numa
estranha, intrusa e rival.
– Não
os quero aqui, ouviu, Mariano? – Escutei, sim.
– Você
é quem o meu Mariano escolheu. Para me defender, para defender as
mulheres, para defender a Nyumba-Kaya. É por isso que lhe entrego a
si essas chaves.
O
suor escorre no peito da matriarca, as gotas se apressam no abismo
entre os volumosos seios. Abstinêncio com um gesto pede licença.
Ele receia que a sua mãe se esteja desgastando demasiado, no abafado
do quarto.
– A
senhora, agora, como viúva...
– Eu
sempre fui viúva.
– Mas
a mamã não pode...
– Agora
me deixem, meus filhos. Me deixem que estou sendo chamada.
A
Avó parece vencida por um repentino cansaço. A cabeça se abate
sobre o ombro esquerdo e emerge em fundo sono. Todos permanecem em
silêncio, vigiando a velha mãe. Nem passam uns minutos, porém,
quando Dulcineusa desperta, confusa.
– Quero
ir-me embora – reclama.
– Para
onde, mamã? – Para casa.
– Mas
a senhora já está em sua casa...
Que
não, que não estava. Seu olhar revela essa inexplicável
estranheza: perdera familiaridade com o seu próprio lar.
– Levem-me,
meus filhos, lhes peço. Levem-me para minha casa.
Os
filhos se entreolham, embaraçados. Para onde? O olhar de Dulcineusa
faz medo, em foco de inavistáveis seres.
– Minha
irmã? Onde está minha irmã? Levem-me para casa de minha irmã.
– Mamã,
sua irmã Admirança está aqui, a senhora não tem outra irmã...
Admirança
toma conta de Dulcineusa e manda que nos retiremos. Ela deitaria a
velha matriarca na devida cama, quem sabe despertaria mais tranquila?
Que ela muito teria que ganhar repouso. Pois lhe competia a ela e só
a ela tratar do amortecido esposo: lavá-lo, barbeá-lo, mudar-lhe as
roupas.
Retiramo-nos
do quarto. O Tio Abstinência encosta-se na porta, usando o corpo
todo para a fechar. É ele quem comenta: – Para mim, estes delírios
dela é tudo fingido.
– Fingido
como? – A mamã tem medo de ser alcunhada de feiticeira.
Na
sala onde nos juntamos está sentado o médico. Todos olham
gravemente Amílcar Mascarenha. Como sempre, o goês usa chinelos, o
que faz com que as calças pareçam ainda mais curtas. A seu lado
está um copo com vinho tinto. Sentamo-nos e permanecemos em
silêncio. Até que o meu pai, esfregando a testa com um lenço,
decide falar: – E então, doutor? – Então, o quê? O médico
sacode a cabeça, sem expressão. Vezes sem conta já se tinha
debruçado sobre o Avô, tomado o pulso, levantado a pálpebra,
apalpado o peito. Uma vez mais se sujeitava ao repetido
interrogatório: – Ele está morto, doutor?
– Clinicamente
morto.
– Como
clinicamente? Está morto ou não está?
– Eu
já disse: ele está em estado cataléptico.
– Estado
quê? Amílcar ergue os olhos para o tecto, enquanto os dedos,
nervosos, percorrem a borda do copo já vazio. – Ninguém me pode
encher outra vez este copo? – Explica melhor, doutor, não estamos
habituados a esses vocabulários. Diga uma coisa: ele respira, o
coração bate?
– Respira
mas a um nível quase imperceptível. E o pulso está tão fraco que
não o sentimos.
Silêncio
enchendo um vazio tenso. O médico sacode a última gota do copo a
sugerir reabastecimento. Tio Ultímio agita nervosamente a cabeça. É
visível que não gosta do goês. Meu pai, caminhando em círculos
pela sala, vai passeando a sua impaciência. Abstinência é o único
que permanece impassível.
– Esse
tipo não sabe nada – desabafa Ultímio.
– Respeite
o doutor, mano – corrige Abstinência.
– Então,
ele que me esclareça uma coisa: eu estou clinicamente vivo?
– Peço
um pouco mais de vinho, meus senhores.
– Não
sirvam nada a esse gajo. Este tipo nem merece apelido. Que doutor é
você, afinal?
O
Tio Ultímio repete, martelando um desdém: clinicamente morto,
clinicamente morto! Abstinência, olhar distante, ainda sorri: – Só
o nosso pai é que nos fazia uma coisa dessas...
– Esse
Mariano! – lamentam em coro.
Enquanto
vivo se dizia morto. Agora que falecera ele teimava em não morrer
completamente. Desta feita, é Fulano Malta que exige esclarecimento:
– O que pode acontecer agora, doutor? Ele reanima, volta à vida?
Ou começa por aí a apodrecer?
– Não
sei, nunca vi um caso destes...
– Não
sabe, não sabe – reclama Ultímio. – Mas eu preciso definir a
minha vida, tenho coisas a fazer lá na capital, os meus negócios,
minhas obrigações políticas.
– Francamente,
Mano Ultímio, numa altura destas, falar de negócios...
– Não
podemos ficar aqui uma eternidade à espera que o pai morra de vez.
Olha, para mim ele já está morto. Sempre esteve morto.
– Se
calhar o melhor é levá-lo para a morgue.
– Qual
morgue? Aqui nem hospital há.
– Mas
o pai não pode ficar assim, nem se enterra nem ressuscita. Podíamos,
por exemplo, colocá-lo na câmara frigorífica da Pesca-Mar.
– Desculpa,
Ultímio, não estou a ver o pai congelado no meio de corvinas,
garoupas e camarão. Então é que ele morria de vez...
O
doutor pede calma e tempo. E mais um copo, por especial obséquio.
Vai definindo com palavras sempre profissionais o estado do Avô
Mariano. Ele era portador assintomático de vida. E nisso, disse o
médico, o moribundo não diferia muito de outros, acreditados como
bem vivos. Como, por exemplo, o Tio Abstinêncio. E ri-se, de bem
consigo mesmo.
– Explique
outra coisa, doutor. Ainda hoje o senhor desatou a cheirar a boca do
nosso pai, parecia um cão a farejar. Era para quê aquele farejo? –
São diligências de rotina. Um médico faz isso como procedimento...
– Fala
a verdade, doutor...
– Eu
acho que senti um cheiro estranho...
– Estranho?
– Um cheiro de veneno.
Os
meus tios, em uníssono, olham para mim. Interrogam-se se escutei as
palavras de Mascarenha. Do silêncio transparece que não me querem
ali. Então eu me esgueiro daquele quarto. Na minha cabeça a decisão
aflorava: iria ao encontro do proibido, iria espreitar o meu Avô
Mariano.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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