domingo, 24 de abril de 2022

Capítulo dois | O desperto nome dos vivos

O mundo já não era um lugar de viver.
Agora, já nem de morrer é.
Avô Mariano

Agora, já nem de morrer é.
A lancha que nos vem buscar a bordo é diferente das outras. Nela está meu pai, Fulano Malta, sentado sobre uma caixa de madeira. Quando me vê, deixa-se ficar imovente, fosse demasiado o esforço de simplesmente estar ali. Inclino-me para o saudar. – Está triste, pai? – Não. Estou sozinho.
Estou aqui, pai.
Faço-me falta, sem você, meu filho.
Se ergue, necessitado, quem sabe, de um amparo. Ainda julguei que buscasse o conforto de um abraço. Mas não. Finge que atenta numa qualquer gaivota. Também olho o pássaro: suas asas em floração rectificam a nossa frágil condição. Mão no remo, gesto firme, meu velho suspira, em consolo: – Ninguém vive de ida e volta.
A seu lado, reparo então, está um indiano. Reconheço-o, é o médico da Ilha, o Doutor Amílcar Mascarenha. O médico divide-se entre Luar-do-Chão e a cidade. Desta vez, ele viajara no mesmo barco e, sem notar, desembarcáramos juntos. Ele me saúda com um meneio do chapéu.
O médico é porquê? – pergunto a Abstinêncio, que está a meu lado.
Para confirmar.
Confirmar o quê? – Olha, já estamos a chegar.
Na praia esperam-nos. É a família, quase completa. Os homens à frente, pés banhados pelo rio, acenam-nos. As mulheres atrás, braços de umas cruzando braços de outras como que segurando um só corpo. Nenhuma delas me olha no rosto.
Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento. Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a família; do outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Até que uma onda desfaz o desenho na areia. Olhando a berma do rio, o Tio Abstinência profere: – O Homem trança, o rio destrança.
Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume. Só então Abstinência e meu pai avançam para os abraços. Voltando-se para mim, meu tio autoriza: – Agora, sim, receba os cumprimentos! Nada demora mais que as cortesias africanas.
Saúdam-se os presentes, os idos, os chegados. Para que nunca haja ausentes. Palavras que apertam tanto quanto o entrecruzar de braços das mulheres que nos esperam.
Depois das circunstâncias, atravessamos o mercado do peixe. As vendedeiras estão já arrumando os apetrechos, desmanchando as tendas. Os últimos peixes são vendidos ao desbarato. Daqui a umas horas estarão podres.
Ajude-me, meu filho.
Ainda pensei ser uma vendedeira, assediando-me. Mas é Miserinha que me pede que a conduza, entre a multidão.
Vá olhando os céus, veja se está passar um pássaro.
Meu tio faz-me sinal para que me afaste da gorda. Mas não a posso deixar sem cumprir esse favor de atravessar o mercado. Olho para o céu. Passa a lenta garça, de regresso às grandes árvores.
Veja, Miserinha, uma garça! – Isso garça não é. É um mangondzwane.
É um pássaro-martelo, bicho coberto de lendas e maldições. Miserinha reconhecia-o sem deixar de olhar para o chão.
Fique atento a ver se ele canta.
Passa sem cantar. Um frio me golpeia. Ainda me lembro do mau presságio que é o silêncio do mangondzwane. Algo grave estaria para ocorrer na vila.
Suba no ganda-ganda! Nem tempo tenho de me despedir. Me empoleiro no atrelado do tractor, vou circulando entre caminhos estreitos de areia. Até há pouco a vila tinha apenas uma rua. Chamavam-lhe, por ironia, a Rua do Meio. Agora, outros caminhos de areia solta se abriram, num emaranhado. Mas a vila é ainda demasiado rural, falta-lhe a geometria dos espaços arrumados. Lá estão os coqueiros, os corvos, as lentas fogueiras que começam a despontar. As casas de cimento estão em ruína, exaustas de tanto abandono. Não são apenas casas destroçadas: é o próprio tempo desmoronado. Ainda vejo numa parede o letreiro já sujo pelo tempo: “A nossa terra será o túmulo do capitalismo”. Na guerra, eu tivera visões que não queria repetir. Como se essas lembranças viessem de uma parte de mim já morta.
Dói-me a Ilha como está, a decadência das casas, a miséria derramada pelas ruas. Mesmo a natureza parece sofrer de mau-olhado. Os capinzais se estendem secos, parece que empalharam o horizonte. À primeira vista, tudo definha. No entanto, mais além, à mão de um olhar, a vida reverbera, cheirosa como um fruto em verão: enxames de crianças atravessam os caminhos, mulheres dançam e cantam, homens falam alto, donos do tempo.
Cruzamo-nos com um luxuoso automóvel enterrado no areal. Quem traria viatura da cidade para uma ilha sem estrada? – Olha, é o Tio Ultímio! – e acenam.
Meu Tio Ultímio, todos sabem, é gente grande na capital, despende negócios e vai politicando consoante as conveniências. A política é a arte de mentir tão mal que só pode ser desmentida por outros políticos. Ultímio sempre espalhou enganos e parece ter lucrado, acumulando alianças e influências. No entanto, ele ali se apresenta frágil, à mercê de uma pobre mão. No tractor comentam vastamente o carro afocinhado, rodas enfronhadas na areia. Mas não param. Ainda há alguns que insistem nos deveres solidários. Mas Fulano Malta é terminante: – Ele que se desenterre – é sua arreganhada sentença.
Por fim, avisto a nossa casa grande, a maior de toda a Ilha. Chamamos-lhe Nyumba-Kaya, para satisfazer familiares do Norte e do Sul. “Nyumba” é a palavra para nomear “casa” nas línguas nortenhas. Nos idiomas do Sul, casa se diz “kaya”.
Mesmo ao longe, já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É assim, em caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades. A casa é um corpo – o tecto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus. Sobre mim se abate uma visão que muito se irá repetir: a casa levantando voo, igual ao pássaro que Miserinha apontava na praia. E eu olhando a velha moradia, a nossa Nyumba-Kaya, extinguindo-se nas alturas até não ser mais que nuvem entre nuvens.
Desembarcamos do tractor, aos molhos. A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável.
À porta está Tia Admirança, irmã de minha Avó. Era muito mais nova que Dulcineusa, filha de um outro casamento. Dizíamos, brincando, que ela era irmã afastada. Em Luar-do-Chão não há palavra para dizer meia-irmã. Todos são irmãos em totalidade.
Admirança é a primeira pessoa que me beija. Seus braços me apertam, demorados. Com o corpo, Admirança fala tristezas que as palavras desconhecem.
Por que demoraste tanto? – Não fui eu, Tia. Foi o tempo.
No quintal e no interior da casa tudo indicia o enterro. Vive-se, até ao detalhe, a véspera da cerimónia. Na casa grande se acotovelam os familiares, vindos de todo o país. Nos quartos, nos corredores, nas traseiras se aglomeram rostos que, na maior parte, desconheço. Me olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me. Pois eu, na circunstância, sou um aparente parente. Só o luto nos faz da mesma família.
Seja eu quem for, esperam de mim tristeza. Mas não este estado de ausência. Não os tranquiliza ver-me tão só, tão despedido de mim. Em África, os mortos não morrem nunca. Excepto aqueles que morrem mal. A esses chamamos de “abortos”. Sim, o mesmo nome que se dá aos desnascidos. Afinal, a morte é um outro nascimento.
Venha, meu filho, que está relampejar.
Tia Admirança me convida para dentro. Vamos rompendo entre a enchente, espremidos um contra o outro como duas pahamas, essas árvores que se estrangulam, num abraço de raízes e troncos. De encontro ao peito, sinto os seus seios provocantes. Provoquentes, diria meu Avô Mariano.
Cuidado com os relâmpagos – insiste ela.
Olho a noite e não vislumbro faiscação. O céu está limpo de escuro. Admirança nota a minha incredulidade.
Não sabe? Aqui há desses relâmpagos que não fazem luz. Esses é que matam muito.
A Tia caminha agora à frente. Aprecio o quanto o seu corpo acedeu à redondura, mas se conserva firme. Acontecendo como o chão: por baixo, subjaz a ardente lava, fogo acendendo fogo.
Vá, vamos ver a Avó, ela pediu para lhe ver assim que você chegasse...
Paramos à porta do quarto da Avó Dulcineusa. Antes de entrarmos, minha tia faz de conta que me ajeita a camisa. E me avisa: a Avó não estava muito bem, submersa ao peso da tristeza. Começara a desvairação mesmo antes do falecimento. Mas, agora, ela se agravara. Se equivocava em nomes, trocava lugares.
Entramos, nos respeitos. A Avó está sentada no cadeirão alto, parece estatuada em deusa. Ninguém é tão vasto, negra em fundo preto. O luto duplica sua escureza e lhe acrescenta volumes. Em redor, como se fora um presépio, estão os filhos: meu pai, Abstinêncio e Ultímio, que acaba de entrar. A voz grave de Dulcineusa torna o compartimento mais estreito: – Já alguém deitou água à casa? Todos os dias a Avó regava a casa como se faz a uma planta. Tudo requer ser aguado, dizia ela. A casa, a estrada, a árvore. E até o rio deve ser regado.
Tenho que ser eu a lembrar-me de tudo. Estou tão sozinha. Apenas tenho este miúdo! Aponta para mim. O dedo permanece estendido, como que em acusação, enquanto as carnes lhe estremecem, pendentes do antebraço. Só então reparo nas mãos da Avó. Já quase não lembrava seus dedos cancromidos, queimados pelo trabalho de descascar fruto de caju. Dulcineusa me aponta aquele dedo desunhado e é como se me espetasse uma vaga culpa.
Só este miúdo – repete com voz sumida. Tia Admirança faz menção de sair. Deixava a Avó na companhia estreita de seus directos filhos.
Você fica, Mana Admirança! – ordena Dulcineusa. E virando-se para mim: – Me diga, meu neto, você, lá na cidade, foi iniciado? Tio Abstinêncio tosse, em delicada intromissão. – É que eles lá na cidade, mamã…
Ninguém lhe pediu falas, Abstinência.
O inquérito tem exacta finalidade. Querem saber se eu já atingi a idade do luto. De novo, a matriarca espeta seus inquisitivos olhares em mim: – Me deixe que lhe pergunte, meu neto Mariano, você foi circuncidado? Abano a cabeça, negando. Meu pai nota o meu embaraço. Calado, ele me sugere paciência, com um simples revirar de olhos. A Avó prossegue: – Me responda ainda mais: você já engravidou alguma moça? Abstinência interfere, uma outra vez: – Mamã, o moço tem maneiras dele para... – Quais são seus namoros? – insiste a velha. Um constrangimento nos encolhe a todos. Meu pai brinca, adiantando: – Ora, mamã, o melhor é ele falar de suas doenças.. .
Namoros são doenças – corrige a Avó.
Não chego a pronunciar palavra. A conversa rodopia no círculo pequeno dos donos da fala, em obediências e respeitos. Tudo lento, para se escutarem os silenciosos presságios. Após longa pausa, a Avó prossegue: – Falo tudo isso, não é por causa de nada. É para saber se você pode ou não ir ao funeral.
Entendo, Avó.
Não diga que entende porque você não entende nada. Você ficou muito tempo fora.
Está certo, Avó.
Seu Avô queria que você comandasse as cerimónias.
Meu pai se levanta, incapaz de se conter. Abstinência o puxa para que se volte a sentar, em calada submissão. No rosto de meus tios disputam zanga e incredulidade. O Avô terá mesmo dito que eu iria exercer as primazias familiares? Que eu seria chefe de cerimónia, sabendo que isso era grave ofensa contra a tradição? Havia os mais-velhos, com mais competência de idade.
Bom, falta saber se ele está mesmo morto.
Está morto – sentencia Dulcineusa. – Tem que ser você, Marianinho, a mestra r a cerimónia.
Qual cerimónia? – pergunta Abstinência. – Se ele não estiver realmente morto, de que cerimônia estamos a falar? A Avó agita o braço para fechar o assunto. Ordena silêncio, quer que todos se voltem a sentar.
Eu não confio em mais nenhum. Só em você, meu neto, só em você eu deito fianças.
Faz chocalhar um saco que traz preso na cintura. E pergunta: – Sabe o que é este saco? – Não sei, Avó.
É aqui onde escondo as chaves todas da Nyumba-Kaya. Você vai guardar estas chaves, Mariano.
Faço menção de me desviar do encargo. Como podia aceitar honras que competiam a outros? Mas Dulcineusa não cede nem concede.
Tome. E guarde bem escondido. Guarde esta casa, meu neto! .
Estendeu-me o braço para que eu recolhesse o molho de chaves. E eu, boca fechada, aceitando os comandos de minha Avó. Estar calado ou estar sem falar é a mesma coisa? A Avó se acanhava com esse sentimento fundo e antigo, um medo fundado no que ela já vira e agora adivinhava repetir-se. Que outros da nossa família viriam disputar os bens, reclamar heranças, abutrear riquezas.
Hão-de vir os outros, os da família de Mariano. Virão buscar as coisas, disputar os dinheiros.
Havemos de falar com eles, Avó.
Você não conhece a sua raça, meu filho. Eles olham para mim e vêem uma mulher. Sou uma viúva, você não sabe o que é isso, miúdo.
Ser-se velha e viúva é ser merecedora de culpas. Suspeitariam, certamente, que a Avó seria autora de feitiços. O estado moribundo de Mariano seria obra de Dulcineusa. De repente, a Avó se converteria numa estranha, intrusa e rival.
Não os quero aqui, ouviu, Mariano? – Escutei, sim.
Você é quem o meu Mariano escolheu. Para me defender, para defender as mulheres, para defender a Nyumba-Kaya. É por isso que lhe entrego a si essas chaves.
O suor escorre no peito da matriarca, as gotas se apressam no abismo entre os volumosos seios. Abstinêncio com um gesto pede licença. Ele receia que a sua mãe se esteja desgastando demasiado, no abafado do quarto.
A senhora, agora, como viúva...
Eu sempre fui viúva.
Mas a mamã não pode...
Agora me deixem, meus filhos. Me deixem que estou sendo chamada.
A Avó parece vencida por um repentino cansaço. A cabeça se abate sobre o ombro esquerdo e emerge em fundo sono. Todos permanecem em silêncio, vigiando a velha mãe. Nem passam uns minutos, porém, quando Dulcineusa desperta, confusa.
Quero ir-me embora – reclama.
Para onde, mamã? – Para casa.
Mas a senhora já está em sua casa...
Que não, que não estava. Seu olhar revela essa inexplicável estranheza: perdera familiaridade com o seu próprio lar.
Levem-me, meus filhos, lhes peço. Levem-me para minha casa.
Os filhos se entreolham, embaraçados. Para onde? O olhar de Dulcineusa faz medo, em foco de inavistáveis seres.
Minha irmã? Onde está minha irmã? Levem-me para casa de minha irmã.
Mamã, sua irmã Admirança está aqui, a senhora não tem outra irmã...
Admirança toma conta de Dulcineusa e manda que nos retiremos. Ela deitaria a velha matriarca na devida cama, quem sabe despertaria mais tranquila? Que ela muito teria que ganhar repouso. Pois lhe competia a ela e só a ela tratar do amortecido esposo: lavá-lo, barbeá-lo, mudar-lhe as roupas.
Retiramo-nos do quarto. O Tio Abstinência encosta-se na porta, usando o corpo todo para a fechar. É ele quem comenta: – Para mim, estes delírios dela é tudo fingido.
Fingido como? – A mamã tem medo de ser alcunhada de feiticeira.
Na sala onde nos juntamos está sentado o médico. Todos olham gravemente Amílcar Mascarenha. Como sempre, o goês usa chinelos, o que faz com que as calças pareçam ainda mais curtas. A seu lado está um copo com vinho tinto. Sentamo-nos e permanecemos em silêncio. Até que o meu pai, esfregando a testa com um lenço, decide falar: – E então, doutor? – Então, o quê? O médico sacode a cabeça, sem expressão. Vezes sem conta já se tinha debruçado sobre o Avô, tomado o pulso, levantado a pálpebra, apalpado o peito. Uma vez mais se sujeitava ao repetido interrogatório: – Ele está morto, doutor?
Clinicamente morto.
Como clinicamente? Está morto ou não está?
Eu já disse: ele está em estado cataléptico.
Estado quê? Amílcar ergue os olhos para o tecto, enquanto os dedos, nervosos, percorrem a borda do copo já vazio. – Ninguém me pode encher outra vez este copo? – Explica melhor, doutor, não estamos habituados a esses vocabulários. Diga uma coisa: ele respira, o coração bate?
Respira mas a um nível quase imperceptível. E o pulso está tão fraco que não o sentimos.
Silêncio enchendo um vazio tenso. O médico sacode a última gota do copo a sugerir reabastecimento. Tio Ultímio agita nervosamente a cabeça. É visível que não gosta do goês. Meu pai, caminhando em círculos pela sala, vai passeando a sua impaciência. Abstinência é o único que permanece impassível.
Esse tipo não sabe nada – desabafa Ultímio.
Respeite o doutor, mano – corrige Abstinência.
Então, ele que me esclareça uma coisa: eu estou clinicamente vivo?
Peço um pouco mais de vinho, meus senhores.
Não sirvam nada a esse gajo. Este tipo nem merece apelido. Que doutor é você, afinal?
O Tio Ultímio repete, martelando um desdém: clinicamente morto, clinicamente morto! Abstinência, olhar distante, ainda sorri: – Só o nosso pai é que nos fazia uma coisa dessas...
Esse Mariano! – lamentam em coro.
Enquanto vivo se dizia morto. Agora que falecera ele teimava em não morrer completamente. Desta feita, é Fulano Malta que exige esclarecimento: – O que pode acontecer agora, doutor? Ele reanima, volta à vida? Ou começa por aí a apodrecer?
Não sei, nunca vi um caso destes...
Não sabe, não sabe – reclama Ultímio. – Mas eu preciso definir a minha vida, tenho coisas a fazer lá na capital, os meus negócios, minhas obrigações políticas.
Francamente, Mano Ultímio, numa altura destas, falar de negócios...
Não podemos ficar aqui uma eternidade à espera que o pai morra de vez. Olha, para mim ele já está morto. Sempre esteve morto.
Se calhar o melhor é levá-lo para a morgue.
Qual morgue? Aqui nem hospital há.
Mas o pai não pode ficar assim, nem se enterra nem ressuscita. Podíamos, por exemplo, colocá-lo na câmara frigorífica da Pesca-Mar.
Desculpa, Ultímio, não estou a ver o pai congelado no meio de corvinas, garoupas e camarão. Então é que ele morria de vez...
O doutor pede calma e tempo. E mais um copo, por especial obséquio. Vai definindo com palavras sempre profissionais o estado do Avô Mariano. Ele era portador assintomático de vida. E nisso, disse o médico, o moribundo não diferia muito de outros, acreditados como bem vivos. Como, por exemplo, o Tio Abstinêncio. E ri-se, de bem consigo mesmo.
Explique outra coisa, doutor. Ainda hoje o senhor desatou a cheirar a boca do nosso pai, parecia um cão a farejar. Era para quê aquele farejo? – São diligências de rotina. Um médico faz isso como procedimento...
Fala a verdade, doutor...
Eu acho que senti um cheiro estranho...
Estranho? – Um cheiro de veneno.
Os meus tios, em uníssono, olham para mim. Interrogam-se se escutei as palavras de Mascarenha. Do silêncio transparece que não me querem ali. Então eu me esgueiro daquele quarto. Na minha cabeça a decisão aflorava: iria ao encontro do proibido, iria espreitar o meu Avô Mariano.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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