sábado, 5 de março de 2022

Os inimigos da festa

Às sextas, o telefone insiste: “Tem festa?” Quando tem, vem: “É festa ou reuniãozinha?” Quando é festa, Ok, cabem bicos; quando não, tem: “Quem vai?” E lá estará o desfile das “roupichas” que a luz do dia ofusca. E dançar, ficar bêbado, falar merda e cantar cem garotas(os). Inventou-se a festa para exibirmos o que à luz do dia acovardamos.
Os escritores, que não são bobos nem nada, se utilizam de festas para as grandes revelações. É numa que Emma Bovary vê, no salão, o que sonhava na sua vidinha miserável. Depois, passa a procurar a aventura que seu casamento escondia. Em Os Mortos, de Joyce, duas velhinhas empetecadas botam pra quebrar todos os anos: dão festas e dançam, cantam, comem e fofocam epifanias. É depois de uma que Gabriel descobre que sua mulher, Gretta, teve uma paixão mortal antes de se casar; tudo porque Gretta ouviu, na festa, a música que seu amado cantava.
Mas existem os inimigos declarados de festas (vizinhos, síndicos, zeladores & cia.), inimigos de epifanias e revelações. O bem-estar comum inventou os salões de festas. O do meu prédio tem regras anacrônicas. Segundo a ata da última assembleia, depois de uma festa com “incrível número de jovens”, não se aluga mais o salão para dependentes, o número de convidados fica limitado a cinquenta, o som deve ser desligado às 22 horas de domingo a quinta e às 24 horas sexta e sábado. Sugere-se ainda o gradeamento da área do salão para “restringir a movimentação dos convidados”. Que animação...
Há uma semana, jornalistas da Folha reuniram-se para homenagear uma colega de trabalho. Os meliantes não somavam mais que trinta, num apartamento da avenida São Luís, com a música baixa. À uma da manhã, depois da sétima interfonada da vizinha, o bom senso decidiu encerrar a festa. Fui o primeiro a sair. Encontrei a própria, no hall, com o cabelo despenteado e cara de sono: “Aí dentro só tem maloqueiro. Não se consegue dormir!” Ainda tentei: “Minha senhora, aproveita que amanhã é feriado e vai ler um livro, ou arrumar o armário...”
No térreo, a porta do prédio estava trancada. “Só saem daqui quando a polícia chegar!”, decretou, em conluio com o porteiro e zelador. “Minha senhora, isto é cárcere privado e formação de quadrilha”, tentamos. Nicas. A festa desceu. O bate-boca rendeu até a chegada da polícia. Acusações de lado a lado, todos para a delegacia. Documentos à mesa, ela quis impressionar, apresentando uma carteirinha de uma revista pornô: “Também sou da imprensa!” Restaram dois boletins de ocorrência e uma noite memorável para a inimiga de festas que, no íntimo, é a mais competente perturbadora da ordem, aliada do caos. Foi a sua revelação.

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola

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