Eu
nunca havia ido a um médico. De médicos eu só sabia uma cena
cômica da qual fui o protagonista sem que o soubesse. Eu era ainda
nenezinho, em Boa Esperança. O médico era o doutor Gigico, que vim
a conhecer muitos anos depois. Ele iria me aplicar uma injeção no
traseiro. No momento em que ele me espetou defendi-me soltando-lhe um
sonoro pum na cara.
Eu
estava doente. Minha mãe me levou ao consultório do doutor José
Marcos, uma casa imponente de dois andares diante do Grupo Escolar
Brasil, a um quarteirão do jardim do sapo.
O
jardim do sapo era a alegria da meninada! Na verdade não era um
jardim. Não tinha canteiros nem flores. Só árvores, muitas
árvores, um pequeno bosque. Lugar maravilhoso para brincadeiras. Tão
diferente do jardim principal, sem uma única árvore, cheio daqueles
bichos que se esculpem nos ciprestes, elefantes, cavalos, girafas,
cisnes. Tinha um laguinho com uma garça de metal sobre uma pedra,
bico aberto para cima, esguichando água. As crianças não gostavam
dele. Para dizer a verdade, não sei de ninguém que gostasse dele. O
sol batia inclemente. Nem uma sombra fresca onde se assentar.
A
sala de espera era elegante, com poltronas e sofás macios. Enquanto
esperava, os meus olhos iam de objeto a objeto, explorando. Até que
eles pararam num quadro. Aproximei-me para ver melhor.
Eu
acho que a alma é um corredor escuro onde estão pendurados quadros,
as cenas que os olhos do coração registraram. Muitos anos depois a
luz iluminou o quadro e eu o vi de novo. E foi isso que eu vi e
escrevi, com olhos de velho:
É
a sala de uma casa. Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar
central, iluminado pela luz de um lampião. Uma menina doente. Seus
olhos estão fechados, mergulhados em um esquecimento febril. Num
canto, o casal, pai e mãe, imagens da impotência. Nada sabem fazer,
nada podem fazer. A mãe está debruçada sobre uma mesa. Seu rosto
está mergulhado no vazio. Só lhe resta chorar. O marido, de pé,
pousa a mão sobre o ombro da esposa. Mas imagino que ela não a
sente. Naquele momento ela não é nem esposa e nem dona de casa: é
mãe, apenas mãe. Ao lado da menina, um estranho, assentado: o
médico. Pois o médico não é um estranho? Estranho sim, pois não
pertence ao cotidiano da família. E, no entanto, na hora da luta
entre o amor e a morte, é ele que é chamado. O médico medita. Seu
cotovelo se apoia sobre o joelho, seu queixo se apoia sobre a mão.
Não medita sobre o que fazer. As poções sobre a mesinha revelam
que o que podia ser feito já foi feito. Sua presença meditativa
acontece depois da realização dos atos médicos, depois de
esgotados o seu saber e o seu poder. Bem que poderia retirar-se, pois
que ele já fez o que podia fazer... Mas não. Ele permanece. Espera.
Convive com a sua impotência. Talvez esteja rezando. Todos rezamos
quando o amor se descobre impotente. Oração é isto: esta comunhão
com o amor, sobre o vazio... Talvez esteja silenciosamente pedindo
perdão aos pais por ser assim tão fraco, tão impotente, diante da
morte. E talvez sua espera meditativa seja uma confissão: Também eu
estou sofrendo…
O
doutor José Marcos apalpou-me a barriga, examinou minha língua e
fez o diagnóstico. “É o fígado...” Aconselhou comida sem
gordura e receitou-me Befigol.
Rubem Alves, in O Velho que Acordou Menino
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