domingo, 20 de março de 2022

Facilidade repentina

O bem-estar. É uma coisa muito estranha: a comida é boa, o coração é simples, encontro um menino na rua jogando bola, eu lhe digo: não quero que você brinque de bola em cima de mim, ele responde: vou tomar cuidado. Fui ver um filme, não entendi nada, mas senti tudo. Vou vê-lo de novo? Não sei, posso dessa vez não estar em bem-estar, não quero arriscar, posso de repente entender e não sentir.
E houve a amiga. Ela estava com ciúmes. E não suportei bem: o ciúme dela exigia. Então falei claro: disse-lhe que ela podia estar estragando uma amizade que poderia durar a vida inteira. Ela sofreu e, por amizade pura, resolveu desistir de mim. Depois me disse que a amizade verdadeira sabe desistir. Mas eu não desistira. E houve um dia que telefonei de novo para ela. Enquanto isso, nós “trabalhávamos” no perigo da amizade desfeita. Nós nos vimos. E agora está muito, muito melhor. Estamos simples. Ela diz que eu sou engraçada. Suporto bem: parece que às vezes sou espontânea demais e isso me torna engraçada. Em casa a cozinheira fez canjica. Minha amiga é doida por canjica. Ela veio em casa, achou a canjica boa, e simplesmente repetiu.
E há os filhos. Bem-estar com os filhos. Franqueza, amor natural. E houve uma grande amiga que passou o fim de semana fora. Senti falta dela, mas com bem-estar: agradava-me que ela descansasse.
E houve um velho amigo a quem pretendi pedir emprego. Ele estava em Brasília. Quando telefonei-lhe, falei com quem devia ser o seu pai. Disse meu nome. E o pai teve alegria ao ouvir meu nome. Também eu estou aceitando meu nome, nessa onda de alegria calma, eu que achava meu nome estranho e gaguejava ao pronunciá-lo. E estou aceitando acordar de madrugada e esquentar café para mim. O café quase queimou minha boca. Aceitei.
E eu, que raramente faço visitas, resolvi de surpresa visitar uma amiga. Só que antes fui tomar num bar uma batida de caju, eu que não bebo e quando bebo, bebo mal: bebo depressa demais, sobe à cabeça, me dá sono. Encontrei várias pessoas na casa que visitei. A mãe de minha amiga estava muito bonita. Vocês veem como estou escrevendo à vontade? Sem muito sentido, mas à vontade. Que importa o sentido? O sentido sou eu.
E meu menino menor está indo a festinhas. Não quer me contar o que acontece nas festinhas. E eu aceito.
Tenho falado muito em dinheiro porque estou precisando dele. Mas táxi eu tomo de qualquer jeito. E converso com o chofer. Ele gosta também. Encontrei um que tinha nove filhos: achei demais.
E depois ando meio bonita, sem o menor pudor: vem do bem-estar.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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