O
bem-estar. É uma coisa muito estranha: a comida é boa, o coração
é simples, encontro um menino na rua jogando bola, eu lhe digo: não
quero que você brinque de bola em cima de mim, ele responde: vou
tomar cuidado. Fui ver um filme, não entendi nada, mas senti tudo.
Vou vê-lo de novo? Não sei, posso dessa vez não estar em
bem-estar, não quero arriscar, posso de repente entender e não
sentir.
E
houve a amiga. Ela estava com ciúmes. E não suportei bem: o ciúme
dela exigia. Então falei claro: disse-lhe que ela podia estar
estragando uma amizade que poderia durar a vida inteira. Ela sofreu
e, por amizade pura, resolveu desistir de mim. Depois me disse que a
amizade verdadeira sabe desistir. Mas eu não desistira. E houve um
dia que telefonei de novo para ela. Enquanto isso, nós
“trabalhávamos” no perigo da amizade desfeita. Nós nos vimos. E
agora está muito, muito melhor. Estamos simples. Ela diz que eu sou
engraçada. Suporto bem: parece que às vezes sou espontânea demais
e isso me torna engraçada. Em casa a cozinheira fez canjica. Minha
amiga é doida por canjica. Ela veio em casa, achou a canjica boa, e
simplesmente repetiu.
E
há os filhos. Bem-estar com os filhos. Franqueza, amor natural. E
houve uma grande amiga que passou o fim de semana fora. Senti falta
dela, mas com bem-estar: agradava-me que ela descansasse.
E
houve um velho amigo a quem pretendi pedir emprego. Ele estava em
Brasília. Quando telefonei-lhe, falei com quem devia ser o seu pai.
Disse meu nome. E o pai teve alegria ao ouvir meu nome. Também eu
estou aceitando meu nome, nessa onda de alegria calma, eu que achava
meu nome estranho e gaguejava ao pronunciá-lo. E estou aceitando
acordar de madrugada e esquentar café para mim. O café quase
queimou minha boca. Aceitei.
E
eu, que raramente faço visitas, resolvi de surpresa visitar uma
amiga. Só que antes fui tomar num bar uma batida de caju, eu que não
bebo e quando bebo, bebo mal: bebo depressa demais, sobe à cabeça,
me dá sono. Encontrei várias pessoas na casa que visitei. A mãe de
minha amiga estava muito bonita. Vocês veem como estou escrevendo à
vontade? Sem muito sentido, mas à vontade. Que importa o sentido? O
sentido sou eu.
E
meu menino menor está indo a festinhas. Não quer me contar o que
acontece nas festinhas. E eu aceito.
Tenho
falado muito em dinheiro porque estou precisando dele. Mas táxi eu
tomo de qualquer jeito. E converso com o chofer. Ele gosta também.
Encontrei um que tinha nove filhos: achei demais.
E
depois ando meio bonita, sem o menor pudor: vem do bem-estar.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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