Curando
tudo que se podia curar, Antão não recebia dinheiro. Para Ananias,
por mais que se esforçasse, nunca aparecia uma maneira de realizar
qualquer grande milagre. Também não passava de um modesto anjo e
que tinha sido pequenininho. Consolava-se pensando assim.
Mas
Antão não curou seu Antoninho Verdureiro. Noite bem madura e apenas
duas velas acendendo o ambiente onde o relógio morto predominava.
Antão,
armado de Raça Dura no colo, como sempre, pensava. Bateram com os
nós dos dedos na porta. Primeiro de leve, depois nervosamente. Logo,
logo a voz de Dona Maria José anunciou angústia.
Ananias
pulou célere de dentro do quarto.
– Seu
Antão, seu Ananias!...
Antão
abriu a tramela e deu com os olhos arregalados da mulher saltando
pelo rosto pálido onde os cabelos desgrenhados davam um colorido
ainda mais trágico às suas feições.
– Entre.
Entrou,
trêmula. Balbuciou.
– Venha,
seu Antão. Logo. Seu Antoninho, lá...
– Mas
o que aconteceu?
– Ninguém
sabe muito. Deu um trubufe nele lá e ele se pastifou no chão.
– Mas
no dia de Natal ainda falei com ele. Estava bem. Contente.
– É
porque o senhor não viu ele na missa do galo. Já estava com mostras
de esquisitice. Agora o médico já foi chamado e até o padre. A
família é meio herégica, mas nessa hora de juntar os nó cum Deus,
a coisa destroca toda.
Se
meteram pra lá, atravessando o escuro da noite, as ruas cheias de
capinzal, pernilongo e pobreza de prefeitura. Entraram na casa e
cumprimentaram a todos respeitosamente.
Padre
Santa Helena, ainda esbaforido pela pressa, acabara de dar
extrema-unção. Fitou os dois homens tão pobres e tão humildes que
falavam com tanta doçura. Falavam baixinho, ao contrário das três
Marias, tão esganiçadas e chatas e achatadas. Que mal poderiam
fazer aquelas pobres criaturas? Mas haveria uma hora, tamanha a
pressão que lhe faziam, que seria forçado a tomar uma atitude.
Naturalmente tinham vindo ali por um ato de solidariedade humana.
Porque não haveria milagre que salvasse aquele homem morto. Milagre
era no tempo de Nosso Senhor Jesus Cristo. E isso já ia bem longe,
dobrando a esquina dos séculos.
Olhou
mais os homens e eles inocentemente retribuíram o seu olhar com o
sorriso mais suave que se pudesse imaginar. Ia ser duro ter que agir.
Preferia não julgar e antes de retirar-se fez uma promessa dentro do
seu coração de que cada noite antes de dormir e na missa rezaria a
Deus por aqueles homens, certamente ignorantes de tudo quanto se
fazia contra as suas pessoas.
Espalharam-se
os visitantes para que passassem e olharam com respeito os santos,
medo no olhar até.
A
casinha tinha luz de eletricidade que doía nos olhos.
Dona
Maria José já penetrara no quarto para fazer a reportagem. No dia
seguinte, jacaré, que só come coisa podre e tem bafo trágico, se
criava na voz dela, detalhando para Dona Cordélia. Tinha morte,
velório, facada, enforcamento, estava ela no posto. Mesmo quando não
via jornal, não sabia de crimes, de nascimentos ruins com cesariana,
esbarro de bondes, engavetamentos de trem, viradas de carro, ela ia
contar as novelas que ouvira na Rádio Nacional, e só se lembrava de
colorir sombriamente aqueles pedaços:
– Sabe,
Dona Cordélia? Aí ele viu que o violinista não era filho dela. De
quem Paulo é filho? Diga, mulher perjura! Carlota não tinha voz.
Ele apertava as mãos no pescoço dela, que era mais macio que seda,
palha de seda... – Dava o grito igualzinho ao de Carlota.
Dona
Cordélia sentia-se excitadíssima, colocava-se no lugar de todas as
mulheres enforcadas, violentadas, adulteradas, menosprezadas, dava
pancada na roupa, no sabão, na água e só conseguia balbuciar: “Que
coisa!...”.
Dentro
tinha muito povo. Dona Bárbara ajudou a introduzir os dois no
quarto. O quarto se enchia mais para ver Antão. Antão entrou e se
concentrou nessa hora.
Nem
Ananias sabia o que o irmão pensava nesses momentos. Tinha uma
prece? Devia ter. Quais seriam as palavras? Ninguém sabia. Pensava,
rezava mexendo os lábios docemente, fechando e abrindo os olhos. E
seu olhar adquiria um brilho singular, vitorioso, dominador.
O
quarto ainda se encheu de mais gente e expectativa. Dona Maria José
trepou no arranha-céu de sua curiosidade para não perder nada. E
aquele mundaréu junto, se misturando, de humanidade suada, se
comprimindo, se promiscuindo, poluía o mau cheiro da câmara da
morte. Suor acre de barro pegado, suor de pedreira e enxada. O suor
de barro melado e ácido de corpos. De células mortas, calos de mão,
precisava ser forte mesmo para dinamizar o transpirar da terra.
Seu
Antoninho Verdureiro ainda vivia, mas nada se poderia fazer mais. Nem
o médico, nem o padre, nem os santos. Já era bem tempo. Assim ele
descansava de roubar os outros na verdura, na quitanda. Antão
pensaria isso? Ananias também? Seu Polydoro, que fazia questão de
escrever o nome com ipsilone no meio e apertava a mão do velho
português contra a vela, por acaso não seria vítima dos mesmos
pensamentos?
Talvez
sim, talvez não. O importante era segurar a vela, forçando-a entre
os dedos, para que o pobre diabo encontrasse luz na porta que logo
teria de transpor. Os olhos se abrindo, se fechando, prendendo o
resto de luz como se os fosse aprisionando numa redoma. E escorria a
baba viscosa. A boca se escancarando num roncar, mostrando os cacos
de dentes escuros, o céu da boca limoso, tudo querendo prender a
vida e enxotar a morte. As mãos crispadas contra o brancor da vela
quase com raiva. Ter de morrer quando agora economizara trinta contos
de réis escondidos. E todo mundo sabia disso, estaria no forro do
boné? Enterrado na quitanda ou dentro de uma lata no fundo do
quintal?
Nem
bem desse o prego, iam escavocar tudo. Nem bem ficasse a mesa fria do
seu corpo, haveria corrida em todas as direções e cavando e nada
encontrando, só minhocas, cacos de garrafas, dinheiro nenhum.
Ananias
abanou a cabeça, afastando a ideia. Não. Antão nunca pensaria
nisso em sua prece muda. Seria outro o objeto do seu pensar de santo.
Com ele, Ananias, ninguém poderia ter certeza...
O
frio começou a descer pelos pulsos do português. Dona Bárbara, que
tinha prática de apalpar galinhas e praticar ajuda em nascimentos,
segurou no pé sebento, não antes sem arranhar o pulso nas unhas
compridas do velho. Disse que o frio subia também. Quando os frios
se encontrassem, davam um nó e o povo poderia procurar o dinheiro.
Antão
abanou a cabeça. Dona Maria José prendeu a suspiração. Dona
Bárbara soltou uma lágrima obrigatória que desceu aos saltos pelas
escadas das rugas. A luz da vela foi abafando a respiração do velho
e pouco mais os frios se encontraram.
Mais
engrossadas as horas, no envelhecer da noite, começou a gurufinar o
português. Arranjaram bancos e encheram o quintal, pois a casa já
estava estourando de população. Além disso, o seu Antoninho
Verdureiro, colocado na mesa com a toalha de um lençol barato, com
quatro velas duramente acesas, tinha adquirido, com a morte, uma cara
parva, barbada, terrosa, inexpressivamente besta. Estava o desgraçado
estupidamente morto, sem jeito, sem deixar saudades, a provocar
lembranças ou arrancar suspiros. Nem pena chegava a dar. Nem mesmo a
vela, substituída de vez em quando, nova, viçosa, esbanjando luz,
conseguia dar um tom além do anedótico naquela cara-pedaço de
canteiro de hortaliças. O quente do verão propalava mais ainda o
fedor do apodrecimento, o cheiro de sujo, de mijo. Uma quitanda de
micróbios se fragmentando, se devorando, se consumindo. Um horror.
Lá
fora tinha estrelas, fazia calor no escuro sem vento. Alguém começou
a ideia da vaquinha e a história quase sempre se repetiu. Mais
dinheiro para a pinga do que para o café e o pão. Depois do
primeiro embalo, se conversava de tudo menos lembrar as grandes
qualidades do defunto esquecido, abandonado na companhia da mesma
sombra que o perseguira em vida.
Alguns
contavam histórias engraçadas até. Palavrão serrava a conversa
num desabuso naturalíssimo. Outros, aventuras de caçadas onde as
onças eram maiores que um leão e as espingardas faziam verdadeiros
milagres de pontaria. Gente até jogava porrinha com palitos de
fósforos já usados.
Rosinea
chegou, olhou a contragosto, disfarçando mesmo aquela coisa que era
o defunto. Tentou se constranger para impressionar se algum presente
estivesse de olho nela. Saiu pressurosamente da sala e foi se postar
no meio de Dona Bárbara e Dona Cordélia; e Dona Cordélia não
deixava de dizer que coisa. Se bem que com pouca emoção, porque a
morte evidente não conseguia ter a grande tragédia que Dona Maria
José sabia usar nas contações. Naquele momento exato falavam sobre
o morto. E o morto nem parecia aquilo lá dentro. O morto de fora
tinha mais vida e significava qualquer coisa.
De
repente as três ensaiaram se cutucar ao mesmo tempo e ouve um
entrechoque de cotovelos.
– Espie
só a fita da Taninha. Taninha só casou mais ele porque queria dar
nome à filha. Sempre falou dele como bacorinho de chiqueiro, como
sujo de casinha. Como se o pobre fosse que nem Sapucaia.
– Que
coisa, mas não é?
Então
no olhar de Dona Cordélia (e estava custando) se passou o sacrifício
do holocausto. Era agora todas as pessoas que morreram abandonadas,
exploradas, injustiçadas.
Quiterinha
se chegou para Taninha, porque “chegara” a hora de dizer qualquer
coisa ao seu ouvido. Aí todas as mulheres entrechocaram os
cotovelos.
Só
Antão permanecia impassível, distanciado, no seu papel de santo, de
tudo que se comentava. Mas Ananias, como anjo, olhava tudo. Sapecava
uma maliciazinha aqui e outra acolá. Se arrependia um pouco porque
aquilo poderia contar no exame de fim de ano da pré-santidade...
Melhor observar estrelas, olhar o jogo, escutar as mentiras dos
caçadores.
Passou-se
um tempinho e Taninha soltou o grito, alto, agudo, impressionante,
enchendo a noite de fantasmas apressados... Pôs a mão no coração,
revirejou os olhos e tombou penosamente. Correu gente para acudir.
Algumas
balançaram a cabeça e se explicaram de maneira cochichosa.
– Não
disse que Quiterinha foi avisar que estava chegando a hora?
Levaram
Taninha para dentro do quarto e afrouxaram as grossas peças da
intimidade. Abanaram que abanaram. Abriram as janelas.
Antão
foi chamado. Rezou mudo, falou com o olhar e ela foi melhorando.
Taninha
peneirou as lágrimas e foi dizendo:
– Magine,
seu Antão. O senhor, que é santo, pode compreender. Ele morreu, ele
se passou, e eu que fui tudo na vida para ele. E a minha maior mágoa,
seu Antão, foi que ele morreu e nem me disse onde escondeu os trinta
contos. Não teve fé nem confiança em mim. Nem fé, nem confiança,
nem caridade. O que seremos da gente, meu Deus!...
Rosinea
se levantou, ajeitou a blusa na cintura fina e deitou importância.
– Preciso
me recolher. Amanhã tenho que sair muito cedo, pegar o maria-fumaça,
gramar a viagem em pé por causa da minha aula de violino.
Olhou
ainda que disfarçando para dentro e divisou o nariz afilado de seu
Antoninho Verdureiro, que continuava duro, estupidamente morto dentro
das velas renovadas.
José Mauro de Vasconcelos, in Rua Descalça
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