sexta-feira, 4 de março de 2022

Capítulo Quarto | O Gurufim


Curando tudo que se podia curar, Antão não recebia dinheiro. Para Ananias, por mais que se esforçasse, nunca aparecia uma maneira de realizar qualquer grande milagre. Também não passava de um modesto anjo e que tinha sido pequenininho. Consolava-se pensando assim.
Mas Antão não curou seu Antoninho Verdureiro. Noite bem madura e apenas duas velas acendendo o ambiente onde o relógio morto predominava.
Antão, armado de Raça Dura no colo, como sempre, pensava. Bateram com os nós dos dedos na porta. Primeiro de leve, depois nervosamente. Logo, logo a voz de Dona Maria José anunciou angústia.
Ananias pulou célere de dentro do quarto.
Seu Antão, seu Ananias!...
Antão abriu a tramela e deu com os olhos arregalados da mulher saltando pelo rosto pálido onde os cabelos desgrenhados davam um colorido ainda mais trágico às suas feições.
Entre.
Entrou, trêmula. Balbuciou.
Venha, seu Antão. Logo. Seu Antoninho, lá...
Mas o que aconteceu?
Ninguém sabe muito. Deu um trubufe nele lá e ele se pastifou no chão.
Mas no dia de Natal ainda falei com ele. Estava bem. Contente.
É porque o senhor não viu ele na missa do galo. Já estava com mostras de esquisitice. Agora o médico já foi chamado e até o padre. A família é meio herégica, mas nessa hora de juntar os nó cum Deus, a coisa destroca toda.
Se meteram pra lá, atravessando o escuro da noite, as ruas cheias de capinzal, pernilongo e pobreza de prefeitura. Entraram na casa e cumprimentaram a todos respeitosamente.
Padre Santa Helena, ainda esbaforido pela pressa, acabara de dar extrema-unção. Fitou os dois homens tão pobres e tão humildes que falavam com tanta doçura. Falavam baixinho, ao contrário das três Marias, tão esganiçadas e chatas e achatadas. Que mal poderiam fazer aquelas pobres criaturas? Mas haveria uma hora, tamanha a pressão que lhe faziam, que seria forçado a tomar uma atitude. Naturalmente tinham vindo ali por um ato de solidariedade humana. Porque não haveria milagre que salvasse aquele homem morto. Milagre era no tempo de Nosso Senhor Jesus Cristo. E isso já ia bem longe, dobrando a esquina dos séculos.
Olhou mais os homens e eles inocentemente retribuíram o seu olhar com o sorriso mais suave que se pudesse imaginar. Ia ser duro ter que agir. Preferia não julgar e antes de retirar-se fez uma promessa dentro do seu coração de que cada noite antes de dormir e na missa rezaria a Deus por aqueles homens, certamente ignorantes de tudo quanto se fazia contra as suas pessoas.
Espalharam-se os visitantes para que passassem e olharam com respeito os santos, medo no olhar até.
A casinha tinha luz de eletricidade que doía nos olhos.
Dona Maria José já penetrara no quarto para fazer a reportagem. No dia seguinte, jacaré, que só come coisa podre e tem bafo trágico, se criava na voz dela, detalhando para Dona Cordélia. Tinha morte, velório, facada, enforcamento, estava ela no posto. Mesmo quando não via jornal, não sabia de crimes, de nascimentos ruins com cesariana, esbarro de bondes, engavetamentos de trem, viradas de carro, ela ia contar as novelas que ouvira na Rádio Nacional, e só se lembrava de colorir sombriamente aqueles pedaços:
Sabe, Dona Cordélia? Aí ele viu que o violinista não era filho dela. De quem Paulo é filho? Diga, mulher perjura! Carlota não tinha voz. Ele apertava as mãos no pescoço dela, que era mais macio que seda, palha de seda... – Dava o grito igualzinho ao de Carlota.
Dona Cordélia sentia-se excitadíssima, colocava-se no lugar de todas as mulheres enforcadas, violentadas, adulteradas, menosprezadas, dava pancada na roupa, no sabão, na água e só conseguia balbuciar: “Que coisa!...”.
Dentro tinha muito povo. Dona Bárbara ajudou a introduzir os dois no quarto. O quarto se enchia mais para ver Antão. Antão entrou e se concentrou nessa hora.
Nem Ananias sabia o que o irmão pensava nesses momentos. Tinha uma prece? Devia ter. Quais seriam as palavras? Ninguém sabia. Pensava, rezava mexendo os lábios docemente, fechando e abrindo os olhos. E seu olhar adquiria um brilho singular, vitorioso, dominador.
O quarto ainda se encheu de mais gente e expectativa. Dona Maria José trepou no arranha-céu de sua curiosidade para não perder nada. E aquele mundaréu junto, se misturando, de humanidade suada, se comprimindo, se promiscuindo, poluía o mau cheiro da câmara da morte. Suor acre de barro pegado, suor de pedreira e enxada. O suor de barro melado e ácido de corpos. De células mortas, calos de mão, precisava ser forte mesmo para dinamizar o transpirar da terra.
Seu Antoninho Verdureiro ainda vivia, mas nada se poderia fazer mais. Nem o médico, nem o padre, nem os santos. Já era bem tempo. Assim ele descansava de roubar os outros na verdura, na quitanda. Antão pensaria isso? Ananias também? Seu Polydoro, que fazia questão de escrever o nome com ipsilone no meio e apertava a mão do velho português contra a vela, por acaso não seria vítima dos mesmos pensamentos?
Talvez sim, talvez não. O importante era segurar a vela, forçando-a entre os dedos, para que o pobre diabo encontrasse luz na porta que logo teria de transpor. Os olhos se abrindo, se fechando, prendendo o resto de luz como se os fosse aprisionando numa redoma. E escorria a baba viscosa. A boca se escancarando num roncar, mostrando os cacos de dentes escuros, o céu da boca limoso, tudo querendo prender a vida e enxotar a morte. As mãos crispadas contra o brancor da vela quase com raiva. Ter de morrer quando agora economizara trinta contos de réis escondidos. E todo mundo sabia disso, estaria no forro do boné? Enterrado na quitanda ou dentro de uma lata no fundo do quintal?
Nem bem desse o prego, iam escavocar tudo. Nem bem ficasse a mesa fria do seu corpo, haveria corrida em todas as direções e cavando e nada encontrando, só minhocas, cacos de garrafas, dinheiro nenhum.
Ananias abanou a cabeça, afastando a ideia. Não. Antão nunca pensaria nisso em sua prece muda. Seria outro o objeto do seu pensar de santo. Com ele, Ananias, ninguém poderia ter certeza...
O frio começou a descer pelos pulsos do português. Dona Bárbara, que tinha prática de apalpar galinhas e praticar ajuda em nascimentos, segurou no pé sebento, não antes sem arranhar o pulso nas unhas compridas do velho. Disse que o frio subia também. Quando os frios se encontrassem, davam um nó e o povo poderia procurar o dinheiro.
Antão abanou a cabeça. Dona Maria José prendeu a suspiração. Dona Bárbara soltou uma lágrima obrigatória que desceu aos saltos pelas escadas das rugas. A luz da vela foi abafando a respiração do velho e pouco mais os frios se encontraram.
Mais engrossadas as horas, no envelhecer da noite, começou a gurufinar o português. Arranjaram bancos e encheram o quintal, pois a casa já estava estourando de população. Além disso, o seu Antoninho Verdureiro, colocado na mesa com a toalha de um lençol barato, com quatro velas duramente acesas, tinha adquirido, com a morte, uma cara parva, barbada, terrosa, inexpressivamente besta. Estava o desgraçado estupidamente morto, sem jeito, sem deixar saudades, a provocar lembranças ou arrancar suspiros. Nem pena chegava a dar. Nem mesmo a vela, substituída de vez em quando, nova, viçosa, esbanjando luz, conseguia dar um tom além do anedótico naquela cara-pedaço de canteiro de hortaliças. O quente do verão propalava mais ainda o fedor do apodrecimento, o cheiro de sujo, de mijo. Uma quitanda de micróbios se fragmentando, se devorando, se consumindo. Um horror.
Lá fora tinha estrelas, fazia calor no escuro sem vento. Alguém começou a ideia da vaquinha e a história quase sempre se repetiu. Mais dinheiro para a pinga do que para o café e o pão. Depois do primeiro embalo, se conversava de tudo menos lembrar as grandes qualidades do defunto esquecido, abandonado na companhia da mesma sombra que o perseguira em vida.
Alguns contavam histórias engraçadas até. Palavrão serrava a conversa num desabuso naturalíssimo. Outros, aventuras de caçadas onde as onças eram maiores que um leão e as espingardas faziam verdadeiros milagres de pontaria. Gente até jogava porrinha com palitos de fósforos já usados.
Rosinea chegou, olhou a contragosto, disfarçando mesmo aquela coisa que era o defunto. Tentou se constranger para impressionar se algum presente estivesse de olho nela. Saiu pressurosamente da sala e foi se postar no meio de Dona Bárbara e Dona Cordélia; e Dona Cordélia não deixava de dizer que coisa. Se bem que com pouca emoção, porque a morte evidente não conseguia ter a grande tragédia que Dona Maria José sabia usar nas contações. Naquele momento exato falavam sobre o morto. E o morto nem parecia aquilo lá dentro. O morto de fora tinha mais vida e significava qualquer coisa.
De repente as três ensaiaram se cutucar ao mesmo tempo e ouve um entrechoque de cotovelos.
Espie só a fita da Taninha. Taninha só casou mais ele porque queria dar nome à filha. Sempre falou dele como bacorinho de chiqueiro, como sujo de casinha. Como se o pobre fosse que nem Sapucaia.
Que coisa, mas não é?
Então no olhar de Dona Cordélia (e estava custando) se passou o sacrifício do holocausto. Era agora todas as pessoas que morreram abandonadas, exploradas, injustiçadas.
Quiterinha se chegou para Taninha, porque “chegara” a hora de dizer qualquer coisa ao seu ouvido. Aí todas as mulheres entrechocaram os cotovelos.
Só Antão permanecia impassível, distanciado, no seu papel de santo, de tudo que se comentava. Mas Ananias, como anjo, olhava tudo. Sapecava uma maliciazinha aqui e outra acolá. Se arrependia um pouco porque aquilo poderia contar no exame de fim de ano da pré-santidade... Melhor observar estrelas, olhar o jogo, escutar as mentiras dos caçadores.
Passou-se um tempinho e Taninha soltou o grito, alto, agudo, impressionante, enchendo a noite de fantasmas apressados... Pôs a mão no coração, revirejou os olhos e tombou penosamente. Correu gente para acudir.
Algumas balançaram a cabeça e se explicaram de maneira cochichosa.
Não disse que Quiterinha foi avisar que estava chegando a hora?
Levaram Taninha para dentro do quarto e afrouxaram as grossas peças da intimidade. Abanaram que abanaram. Abriram as janelas.
Antão foi chamado. Rezou mudo, falou com o olhar e ela foi melhorando.
Taninha peneirou as lágrimas e foi dizendo:
Magine, seu Antão. O senhor, que é santo, pode compreender. Ele morreu, ele se passou, e eu que fui tudo na vida para ele. E a minha maior mágoa, seu Antão, foi que ele morreu e nem me disse onde escondeu os trinta contos. Não teve fé nem confiança em mim. Nem fé, nem confiança, nem caridade. O que seremos da gente, meu Deus!...
Rosinea se levantou, ajeitou a blusa na cintura fina e deitou importância.
Preciso me recolher. Amanhã tenho que sair muito cedo, pegar o maria-fumaça, gramar a viagem em pé por causa da minha aula de violino.
Olhou ainda que disfarçando para dentro e divisou o nariz afilado de seu Antoninho Verdureiro, que continuava duro, estupidamente morto dentro das velas renovadas.

José Mauro de Vasconcelos, in Rua Descalça

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