sexta-feira, 18 de março de 2022

Capítulo 2 | Tan – 1960 Beijing

Sou filho do general Ding Long e único neto de duas famílias que gozam de muita influência na china: os Longs, uma dinastia de banqueiros, e os Xia, uma fábrica de militares. Estas duas famílias proeminentes eram tão diferentes quanto a noite e o dia.
Vovô Xia não teve nenhuma instrução formal. No entanto, caminhou ao lado do presidente Mão durante a grande marcha de nobreza que lhe rendeu o posto vitalício de comandante-em-chefe do Exército, da marinha e da Aeronáutica da China.
Vovô Long era um paradoxo vivo, um economista comunista que estudou em Oxford e era presidente do Banco da China. Seus irmãos fizeram uma fortuna como banqueiros na colônia capitalista de Hong Kong. Vovô Long, um homem de finanças sofisticados, que falava francês como um parisiense, que dominava perfeitamente o japonês formal e falava inglês com sotaque Oxford, preferia ternos da Savile Row feitos sob medida, charutos cubanos, vinhos finos, Beethoven e Shakespeare – pequenos pecados que tinha adotado desde a década de 1930, quando estudou na universidade de Oxford. Durante os anos da Guerra fria, era o único chinês que recebia diariamente o Wall Street Journal, o New York Times e o Financial times, que era o seu favorito, impresso na Inglaterra em papel rosado.
Em conformidade com a sua imagem de “o maior banqueiro da China”, ofereceram-lhe uma Mercedes-bens, modelo clássico, com um motorista uniformizado e o único chef da China com experiência na cozinha ocidental, vindo diretamente do Beijing Hotel. Afinal de contas, vovô Long era o presidente de um dos maiores banco do mundo, superado apenas pelo todo-poderoso Federal reserve dos Estados unidos. Os demonstrativos financeiros diziam tudo. O banco da China era o dono do país inteiro com todas as suas montanhas e rios, com direito sobre o espaço aéreo, sobre as jazidas do leito oceânico e tudo o mais que havia entre um e outro.
O curioso era que vovô Xia podia ser um general de cinco estrelas, mas mesmo desleixado e rústico, preferindo dormir em uma cama de madeira dura e com travesseiro também feito de madeira. Os colchões macios de espuma e com molas causavam-lhe dor nas costas e nos ombros.
Gostava de usar sandálias de palhas, que foram as melhores amigas de seus pés no tempos da juventude, quando trabalhava como mensageiro, percorrendo as montanhas rochosas e atravessando os rios a serviço do grande presidente Mão durante os primeiros tempos do Partido Comunista Chinês em Yenan, na província de Shaanxi. Tinha confessadamente uma mentalidade e camponês nortista e não confiava em privadas com descarga, preferindo usar o penico. Dizia que os cigarros finos era uma ofensa para os verdadeiros fumantes como ele, cujas células pulmonares só se sentiam estimuladas por um tipo especial de tabaco malcheiroso proveniente de um vilarejo próximo às montanhas do Himalaia. Qualquer outro fumo servia para entorpecer os seus pulmões.
Sua roupa predileta de todos os dias, quando tinha a oportunidade de escolher, era um short de linho bem folgado e costurado à mão. Como diversão, nada melhor que a Ópera de Pequim, com seus ganidos e cacarejos, que ele acompanhava cantarolando com sua voz gutural e desafinada, que assustava as crianças facilmente. Mas, o mais chocante de tudo, era a sua ingestão diária de testículos de boi assados, ostras cruas, joelho de porco e cabeças de peixes – os pratos gordurosos de seu cozinheiro particular, um primo que havia sido o açougueiro da aldeia onde morava. Tudo era servido em grandes tigelas, em quantidades imensas e com enorme variedade.
Era a comida da roça feita em casa, e cada refeição era um pequeno banquete que poderia alimentar um povoado inteiro. Ele experimentava todos os pratos, arrotava e dava o restante aos seus empregados, guarda-costas e suas famílias, como os imperadores faziam na sua dinastia anterior. Era como um rei na sua própria corte e comandava o maior Exército da história do mundo – dez milhões de soldados em tempos de paz, números que poderiam ser facilmente duplicado ou triplicado pelo contingente mobilizável à menor suspeita de qualquer indício de guerra. Sua piada favorita era aquela que dizia que, se alguém quisesse criar problemas, tudo o que a China precisava fazer era ordenar a seus soldados que urinassem todos aos mesmo tempo e assim o inimigo seria inundado por um dilúvio nauseabundo.
Diferentes como eram, vovô Long e vovô Xia representavam o pólo Norte e o pólo Sul do reinado feudalista que o presidente Mao exercia no país mais populoso da terra. Vovô Long impediu Mao de ir à falência, pelo menos nos livros contáveis. As reservas monetárias do banco eram maiores do que nunca, com seus inúmeros empréstimos. Apoiava todos os seus movimentos ideológicos iniciados por Mao e oferecia a ele todo o seu poder econômico. Vovô Xia cuidava para que o presidente não saísse do poder. E quando havia uma ameaça contra a sua vida, o presidente Mao jamais tomava conhecimento disso porque meu avô resolvia esses assuntos do jeito tradicional, ou seja, dava sumiço em qualquer um que representasse perigo.
Meus dois avôs nunca se olharam nos olhos, nem mesmo nas reuniões mais íntimas com o presidente, que já estava envelhecendo. Viviam discutindo como dois meninos de escola. Suas alterações eram famosas e às vezes eles quase chegavam às vias de fato. O único comentário de Mao sobre essas discussões era que isso o fazia lembrar de sua jovem terceira esposa, a célebre Madame Mao.
Como todos os homens de confiança, do imperador, meus avós eram amados pelo líder supremo e recompensados generosamente. Moravam em grande mansões em
Zhong Nan Hai, o elegante bairro de luxo em Beijing, a capital do país, rodeado por montanhas e lagos cinematográficos. As casas eram circundadas por muros altos que as protegiam dos olhares da gente do povo e do barulho das ruas congestionadas. Ganharam também casas de veraneio, com decoração sofisticada, situadas nas longas e desertas praias de Beidahe, uma área de lazer do governo próximo ao mar da China. Um trem particular com vagões-leitos, salas de majongue e provido de um cozinheiro transportava-os da cidade para a casa da praia e vice-versa, de acordo com sua vontade.
Devido a posição que ocupava, os dois recebiam do governo alimentos dos mesmos tipos e qualidades, tinham o mesmo números de empregados, a mesma televisão a cores e a mesma quantidade de linhas telefônicas. E, evidentemente, suas propriedades estavam localizadas na mesma área, eram construídas e decoradas no mesmo estilo, chegando a ter o mobiliário idêntico.
O tratamento igualitário do presidente Mao significava que os dois estavam sempre juntos no trabalho ou no lazer, sendo vizinhos na cidade e na casa de praia. O relacionamento entre eles era tão intransigente que um se recusava a deixar o outro se divertir sozinho, e o seguia onde quer que fosse apenas para irritá-lo com a sua presença.
Apesar de tudo, as coisas corriam bem, a não ser por um pequeno acontecimento que criou raízes, cresceu e floresceu no quintal destes homens como uma semente de salgueiro que um cisne em imigração tivesse deixado cair. Hua, quer dizer “flor”, era única filha do vovô Xia. Pianista concertista, era bonita, tímida e tinha alma de artista. Vovô Long, o banqueiro, costumava dizer que ela era uma bela flor que brotou num monte de esterco.
O filho único do vovô Long, cujo nome era Ding Long, era um jovem general do Exército. Desde pequeno, e sempre que podiam, Hua Xia e Ding Long fugiam às escondidas para o jardim que separava as duas casas para brincar juntos. No verão, quando as famílias passavam as férias à beira-mar q quando seus pais não estavam por perto, as duas crianças catavam marisco e apanhavam caranguejos. Deixavam mensagens secretas em código, escrevendo na areia da praia com os dedos dos pés descalços, marcando encontros à noite sob a luz da lua e das estrelas, escondidos atrás das dunas e dos despojos que o mar lançava na praia. A amizade transformou-se em amor. Enquanto meus avós dormiam e roncavam, a escuridão suave e delicada era a única testemunha do romance que brotava. As duas crianças inocentes acreditavam que o seu amor e o seu futuro casamento acabariam com a inimizade entre os dois homens.
Num certo dia chuvoso de verão, na praia de Bedaihe fustigada pelo vento, Ding Long e Hua Xia apareceram de mãos dadas diante dos dois velhos, que estavam naquele momento chutando areia um no outro, discutindo sobre a fronteira inexistente entre as duas propriedades. Os pombinhos mandaram que os dois parassem a discussão e lhes informaram que em breve seriam parentes. O general e o banqueiro quase tiveram ataques cardíacos simultâneos. Os dois precisaram ser levados por suas enfermeiras de volta às suas salas de estar.
Mamãe e papai se casaram sob a bandeira vermelha. Num brinde à felicidade dos recém-casados, meus dois avós, que agora eram parentes por afinidade, apertaram as mãos um do outro pela primeira vez.
No dia em que nasci, os dois estavam animados e com muita pressa de chegar antes do outro para ter a primeira visão do primeiro neto, o que não foi surpresa para ninguém. O banqueiro transferiu as reuniões diárias com seus assistentes da pomposa sala de conferências do banco para o estacionamento do hospital onde minha mãe estava. Vovô Long espremeu-se com seus assistentes dentro das limusines compridas com a bandeira vermelha, enquanto seu secretário ficava indo e vindo, como um mensageiro, do carro para o hospital. Ele estava sentindo tão afortunado e generoso que, uma hora depois do meu nascimento, aprovou pessoalmente o maio empréstimo jamais visto na história da China para auxiliar as vítimas de uma catástrofe, uma verba colossal de duzentos milhões de iuanes chineses destinados a uma província do Sul do país. Os historiadores posteriormente registraram que este empréstimo ajudou a salvar milhões de vidas humanas.
O general, por sua vez, acordou em sua cama de mogno no dia do meu nascimento para se defrontar com a notícia frustrante de mais uma insurreição. Milhares de monges Miau tinham sidos presos por terem atirado pedras e facas em integrantes do Exército Vermelho. O general, geralmente propenso a pensar como um conquistar impiedoso, mudou de atitude naquele dia. 
– Solte-os – disse ele. Em seguida, decolou em seu helicóptero rumo ao hospital. Tendo sido informado com antecedência por seu serviço secreto que o sogro de sua filha já se encontrava no estacionamento, emitiu uma ordem militar de emergência endereçada ao gerente geral do hospital para que fosse proibido o uso do estacionamento por qualquer pessoa que não trabalhasse nele. Vovô Long pôde apenas trincar os dentes ao ver a poeira que se levantou do chão quando o helicóptero da aeronáutica pousou ruidosamente no estacionamento de onde tinha acabado de ser expulso por razões militares sem fundamento.
Amanhã, me lembre de sugerir ao presidente um corte drástico no orçamento militar – disse ele a um de seus assistentes.
No entanto, quando os meus dois avós finalmente me viram e me pegaram no colo, tudo o que fizeram foi dar muitas gargalhadas, ficar rindo à toa como dois velhos babões e comparar quem tinha sido agraciado com a maior mancha de xixi feito por mim.
Como era de se esperar, meus dois avós competiam pela minha afeição, determinado a moldar meu futuro ao feitio de cada um, exercendo o máximo possível da sua influência pessoal no meu dia-a-dia.
Vovô Xia me ensinou a engatinhar e rastejar no melhor estilo militar quando eu tinha seis meses. Todos os dias rastejávamos pelo piso acarpetado da mansão, o general me ensinou como marchar como um soldado com os pés bem erguidos no ar. Nada de arrastar ou empurrar os pés. Esquerda, direita. Duas vezes por semana, ele me sequestrava junto com a minha babá e nos levava para passear em seu jipe blindado, seguido por sua equipe, para inspecionar a base militar que ficava fora da cidade. Eu nunca dizia “oi” ou “até logo” ao general. Solenemente, batia continência para ele.
Ao se dar conta de que havia muitos soldadinhos de brinquedos à venda no mercado e praticamente nenhum bonequinho de banqueiro, vovô Long alocou uma vultosa verba para uma fábrica estatal de brinquedos em Beijing para que fossem fabricados alguns modelos, todos vestidos com terninhos no estilo Mao. De mãos dadas comigo, inventava canções de ninar usando as tabuadas e desenhava os gráficos de flutuação de juros com lápis de cor. Aos sábados, quando as bolsas de valores do mundo inteiro estavam fechadas, vovô Long me botava sentado em sua espaçosa poltrona de mogno forrada de couro, enquanto andava pela sala, ouvindo os informes econômicos mundiais da semana apresentados por seus assistentes.
Sentia grande prazer quando percebia que eu ficava particularmente quieto durante o relatório semanal sobre as taxas de juros do EUA, sobre o Índice Dow Jones, e a proposta de Títulos do Tesouro americano feita pelo Federal Reserve, que eram denunciados na voz calma e tranquila de sua equipe, ph.D. pela Universidade de Harvard e única mulher do grupo.
No meu quarto, os sinais do embate travado entre meus avós eram bem visíveis. Numa das paredes ficavam os presentes do general: rifles, tanques, jipes e soldados. Na outra, havia um gráfico coloridos com as taxas de juros e a flutuação das taxas de câmbio mais importantes do mundo inteiro.
Mas a verdadeira competição aconteceu no meu primeiro aniversário. Seguindo a tradição, eu, muito bem lavado, penteado e vestindo uma roupa nova de marinheiro, fui colocado no chão rodeado de objetos variados. Aquele que eu escolhesse iria simbolizar o que eu seria quando crescesse. Para a surpresa de todos, não escolhi nem o tanque e nem o ábaco, que estavam estrategicamente posicionados bem diante dos meus olhos e facilmente ao meu alcance, enquanto meus dois avós, joelhados, tentavam me influenciar na escolha. Em vez disso, peguei um globo terrestre em miniatura, cravei os dentes nele e o despedacei. Em seguida, com a mão direita, peguei o ábaco, que descartei quase que imediatamente, e apanhei o tanque de guerra.
O banqueiro cantou vitória, mas o general disse que ele riria por último. Ficou decidido que, por eu ter apanhado o globo terrestre, meu destino era ser um grande líder mundial, mas que eu seria ambivalente no que dizia respeito ao instrumento a ser usado para alcançar aquela posição.

Da Chen, in A montanha e o rio

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