Sou
filho do general Ding Long e único neto de duas famílias que gozam
de muita influência na china: os Longs, uma dinastia de banqueiros,
e os Xia, uma fábrica de militares. Estas duas famílias
proeminentes eram tão diferentes quanto a noite e o dia.
Vovô
Xia não teve nenhuma instrução formal. No entanto, caminhou ao
lado do presidente Mão durante a grande marcha de nobreza que lhe
rendeu o posto vitalício de comandante-em-chefe do Exército, da
marinha e da Aeronáutica da China.
Vovô
Long era um paradoxo vivo, um economista comunista que estudou em
Oxford e era presidente do Banco da China. Seus irmãos fizeram uma
fortuna como banqueiros na colônia capitalista de Hong Kong. Vovô
Long, um homem de finanças sofisticados, que falava francês como um
parisiense, que dominava perfeitamente o japonês formal e falava
inglês com sotaque Oxford, preferia ternos da Savile Row feitos sob
medida, charutos cubanos, vinhos finos, Beethoven e Shakespeare –
pequenos pecados que tinha adotado desde a década de 1930, quando
estudou na universidade de Oxford. Durante os anos da Guerra fria,
era o único chinês que recebia diariamente o Wall Street Journal, o
New York Times e o Financial times, que era o seu favorito, impresso
na Inglaterra em papel rosado.
Em
conformidade com a sua imagem de “o maior banqueiro da China”,
ofereceram-lhe uma Mercedes-bens, modelo clássico, com um motorista
uniformizado e o único chef da China com experiência na cozinha
ocidental, vindo diretamente do Beijing Hotel. Afinal de contas, vovô
Long era o presidente de um dos maiores banco do mundo, superado
apenas pelo todo-poderoso Federal reserve dos Estados unidos. Os
demonstrativos financeiros diziam tudo. O banco da China era o dono
do país inteiro com todas as suas montanhas e rios, com direito
sobre o espaço aéreo, sobre as jazidas do leito oceânico e tudo o
mais que havia entre um e outro.
O
curioso era que vovô Xia podia ser um general de cinco estrelas, mas
mesmo desleixado e rústico, preferindo dormir em uma cama de madeira
dura e com travesseiro também feito de madeira. Os colchões macios
de espuma e com molas causavam-lhe dor nas costas e nos ombros.
Gostava
de usar sandálias de palhas, que foram as melhores amigas de seus
pés no tempos da juventude, quando trabalhava como mensageiro,
percorrendo as montanhas rochosas e atravessando os rios a serviço
do grande presidente Mão durante os primeiros tempos do Partido
Comunista Chinês em Yenan, na província de Shaanxi. Tinha
confessadamente uma mentalidade e camponês nortista e não confiava
em privadas com descarga, preferindo usar o penico. Dizia que os
cigarros finos era uma ofensa para os verdadeiros fumantes como ele,
cujas células pulmonares só se sentiam estimuladas por um tipo
especial de tabaco malcheiroso proveniente de um vilarejo próximo às
montanhas do Himalaia. Qualquer outro fumo servia para entorpecer os
seus pulmões.
Sua
roupa predileta de todos os dias, quando tinha a oportunidade de
escolher, era um short de linho bem folgado e costurado à mão. Como
diversão, nada melhor que a Ópera de Pequim, com seus ganidos e
cacarejos, que ele acompanhava cantarolando com sua voz gutural e
desafinada, que assustava as crianças facilmente. Mas, o mais
chocante de tudo, era a sua ingestão diária de testículos de boi
assados, ostras cruas, joelho de porco e cabeças de peixes – os
pratos gordurosos de seu cozinheiro particular, um primo que havia
sido o açougueiro da aldeia onde morava. Tudo era servido em grandes
tigelas, em quantidades imensas e com enorme variedade.
Era
a comida da roça feita em casa, e cada refeição era um pequeno
banquete que poderia alimentar um povoado inteiro. Ele experimentava
todos os pratos, arrotava e dava o restante aos seus empregados,
guarda-costas e suas famílias, como os imperadores faziam na sua
dinastia anterior. Era como um rei na sua própria corte e comandava
o maior Exército da história do mundo – dez milhões de soldados
em tempos de paz, números que poderiam ser facilmente duplicado ou
triplicado pelo contingente mobilizável à menor suspeita de
qualquer indício de guerra. Sua piada favorita era aquela que dizia
que, se alguém quisesse criar problemas, tudo o que a China
precisava fazer era ordenar a seus soldados que urinassem todos aos
mesmo tempo e assim o inimigo seria inundado por um dilúvio
nauseabundo.
Diferentes
como eram, vovô Long e vovô Xia representavam o pólo Norte e o
pólo Sul do reinado feudalista que o presidente Mao exercia no país
mais populoso da terra. Vovô Long impediu Mao de ir à falência,
pelo menos nos livros contáveis. As reservas monetárias do banco
eram maiores do que nunca, com seus inúmeros empréstimos. Apoiava
todos os seus movimentos ideológicos iniciados por Mao e oferecia a
ele todo o seu poder econômico. Vovô Xia cuidava para que o
presidente não saísse do poder. E quando havia uma ameaça contra a
sua vida, o presidente Mao jamais tomava conhecimento disso porque
meu avô resolvia esses assuntos do jeito tradicional, ou seja, dava
sumiço em qualquer um que representasse perigo.
Meus
dois avôs nunca se olharam nos olhos, nem mesmo nas reuniões mais
íntimas com o presidente, que já estava envelhecendo. Viviam
discutindo como dois meninos de escola. Suas alterações eram
famosas e às vezes eles quase chegavam às vias de fato. O único
comentário de Mao sobre essas discussões era que isso o fazia
lembrar de sua jovem terceira esposa, a célebre Madame Mao.
Como
todos os homens de confiança, do imperador, meus avós eram amados
pelo líder supremo e recompensados generosamente. Moravam em grande
mansões em
Zhong
Nan Hai, o elegante bairro de luxo em Beijing, a capital do país,
rodeado por montanhas e lagos cinematográficos. As casas eram
circundadas por muros altos que as protegiam dos olhares da gente do
povo e do barulho das ruas congestionadas. Ganharam também casas de
veraneio, com decoração sofisticada, situadas nas longas e desertas
praias de Beidahe, uma área de lazer do governo próximo ao mar da
China. Um trem particular com vagões-leitos, salas de majongue e
provido de um cozinheiro transportava-os da cidade para a casa da
praia e vice-versa, de acordo com sua vontade.
Devido
a posição que ocupava, os dois recebiam do governo alimentos dos
mesmos tipos e qualidades, tinham o mesmo números de empregados, a
mesma televisão a cores e a mesma quantidade de linhas telefônicas.
E, evidentemente, suas propriedades estavam localizadas na mesma
área, eram construídas e decoradas no mesmo estilo, chegando a ter
o mobiliário idêntico.
O
tratamento igualitário do presidente Mao significava que os dois
estavam sempre juntos no trabalho ou no lazer, sendo vizinhos na
cidade e na casa de praia. O relacionamento entre eles era tão
intransigente que um se recusava a deixar o outro se divertir
sozinho, e o seguia onde quer que fosse apenas para irritá-lo com a
sua presença.
Apesar
de tudo, as coisas corriam bem, a não ser por um pequeno
acontecimento que criou raízes, cresceu e floresceu no quintal
destes homens como uma semente de salgueiro que um cisne em imigração
tivesse deixado cair. Hua, quer dizer “flor”, era única filha do
vovô Xia. Pianista concertista, era bonita, tímida e tinha alma de
artista. Vovô Long, o banqueiro, costumava dizer que ela era uma
bela flor que brotou num monte de esterco.
O
filho único do vovô Long, cujo nome era Ding Long, era um jovem
general do Exército. Desde pequeno, e sempre que podiam, Hua Xia e
Ding Long fugiam às escondidas para o jardim que separava as duas
casas para brincar juntos. No verão, quando as famílias passavam as
férias à beira-mar q quando seus pais não estavam por perto, as
duas crianças catavam marisco e apanhavam caranguejos. Deixavam
mensagens secretas em código, escrevendo na areia da praia com os
dedos dos pés descalços, marcando encontros à noite sob a luz da
lua e das estrelas, escondidos atrás das dunas e dos despojos que o
mar lançava na praia. A amizade transformou-se em amor. Enquanto
meus avós dormiam e roncavam, a escuridão suave e delicada era a
única testemunha do romance que brotava. As duas crianças inocentes
acreditavam que o seu amor e o seu futuro casamento acabariam com a
inimizade entre os dois homens.
Num
certo dia chuvoso de verão, na praia de Bedaihe fustigada pelo
vento, Ding Long e Hua Xia apareceram de mãos dadas diante dos dois
velhos, que estavam naquele momento chutando areia um no outro,
discutindo sobre a fronteira inexistente entre as duas propriedades.
Os pombinhos mandaram que os dois parassem a discussão e lhes
informaram que em breve seriam parentes. O general e o banqueiro
quase tiveram ataques cardíacos simultâneos. Os dois precisaram ser
levados por suas enfermeiras de volta às suas salas de estar.
Mamãe
e papai se casaram sob a bandeira vermelha. Num brinde à felicidade
dos recém-casados, meus dois avós, que agora eram parentes por
afinidade, apertaram as mãos um do outro pela primeira vez.
No
dia em que nasci, os dois estavam animados e com muita pressa de
chegar antes do outro para ter a primeira visão do primeiro neto, o
que não foi surpresa para ninguém. O banqueiro transferiu as
reuniões diárias com seus assistentes da pomposa sala de
conferências do banco para o estacionamento do hospital onde minha
mãe estava. Vovô Long espremeu-se com seus assistentes dentro das
limusines compridas com a bandeira vermelha, enquanto seu secretário
ficava indo e vindo, como um mensageiro, do carro para o hospital.
Ele estava sentindo tão afortunado e generoso que, uma hora depois
do meu nascimento, aprovou pessoalmente o maio empréstimo jamais
visto na história da China para auxiliar as vítimas de uma
catástrofe, uma verba colossal de duzentos milhões de iuanes
chineses destinados a uma província do Sul do país. Os
historiadores posteriormente registraram que este empréstimo ajudou
a salvar milhões de vidas humanas.
O
general, por sua vez, acordou em sua cama de mogno no dia do meu
nascimento para se defrontar com a notícia frustrante de mais uma
insurreição. Milhares de monges Miau tinham sidos presos por terem
atirado pedras e facas em integrantes do Exército Vermelho. O
general, geralmente propenso a pensar como um conquistar impiedoso,
mudou de atitude naquele dia.
– Solte-os
– disse ele. Em seguida, decolou em seu helicóptero rumo ao
hospital. Tendo sido informado com antecedência por seu serviço
secreto que o sogro de sua filha já se encontrava no estacionamento,
emitiu uma ordem militar de emergência endereçada ao gerente geral
do hospital para que fosse proibido o uso do estacionamento por
qualquer pessoa que não trabalhasse nele. Vovô Long pôde apenas
trincar os dentes ao ver a poeira que se levantou do chão quando o
helicóptero da aeronáutica pousou ruidosamente no estacionamento de
onde tinha acabado de ser expulso por razões militares sem
fundamento.
– Amanhã,
me lembre de sugerir ao presidente um corte drástico no orçamento
militar – disse ele a um de seus assistentes.
No
entanto, quando os meus dois avós finalmente me viram e me pegaram no
colo, tudo o que fizeram foi dar muitas gargalhadas, ficar rindo à
toa como dois velhos babões e comparar quem tinha sido agraciado com
a maior mancha de xixi feito por mim.
Como
era de se esperar, meus dois avós competiam pela minha afeição,
determinado a moldar meu futuro ao feitio de cada um, exercendo o
máximo possível da sua influência pessoal no meu dia-a-dia.
Vovô
Xia me ensinou a engatinhar e rastejar no melhor estilo militar
quando eu tinha seis meses. Todos os dias rastejávamos pelo piso
acarpetado da mansão, o general me ensinou como marchar como um
soldado com os pés bem erguidos no ar. Nada de arrastar ou empurrar
os pés. Esquerda, direita. Duas vezes por semana, ele me sequestrava
junto com a minha babá e nos levava para passear em seu jipe
blindado, seguido por sua equipe, para inspecionar a base militar que
ficava fora da cidade. Eu nunca dizia “oi” ou “até logo” ao
general. Solenemente, batia continência para ele.
Ao
se dar conta de que havia muitos soldadinhos de brinquedos à venda
no mercado e praticamente nenhum bonequinho de banqueiro, vovô Long
alocou uma vultosa verba para uma fábrica estatal de brinquedos em
Beijing para que fossem fabricados alguns modelos, todos vestidos com
terninhos no estilo Mao. De mãos dadas comigo, inventava canções
de ninar usando as tabuadas e desenhava os gráficos de flutuação
de juros com lápis de cor. Aos sábados, quando as bolsas de valores
do mundo inteiro estavam fechadas, vovô Long me botava sentado em
sua espaçosa poltrona de mogno forrada de couro, enquanto andava
pela sala, ouvindo os informes econômicos mundiais da semana
apresentados por seus assistentes.
Sentia
grande prazer quando percebia que eu ficava particularmente quieto
durante o relatório semanal sobre as taxas de juros do EUA, sobre o
Índice Dow Jones, e a proposta de Títulos do Tesouro americano
feita pelo Federal Reserve, que eram denunciados na voz calma e
tranquila de sua equipe, ph.D. pela Universidade de Harvard e única
mulher do grupo.
No
meu quarto, os sinais do embate travado entre meus avós eram bem
visíveis. Numa das paredes ficavam os presentes do general: rifles,
tanques, jipes e soldados. Na outra, havia um gráfico coloridos com
as taxas de juros e a flutuação das taxas de câmbio mais
importantes do mundo inteiro.
Mas
a verdadeira competição aconteceu no meu primeiro aniversário.
Seguindo a tradição, eu, muito bem lavado, penteado e vestindo uma
roupa nova de marinheiro, fui colocado no chão rodeado de objetos
variados. Aquele que eu escolhesse iria simbolizar o que eu seria
quando crescesse. Para a surpresa de todos, não escolhi nem o tanque
e nem o ábaco, que estavam estrategicamente posicionados bem diante
dos meus olhos e facilmente ao meu alcance, enquanto meus dois avós,
joelhados, tentavam me influenciar na escolha. Em vez disso, peguei
um globo terrestre em miniatura, cravei os dentes nele e o
despedacei. Em seguida, com a mão direita, peguei o ábaco, que
descartei quase que imediatamente, e apanhei o tanque de guerra.
O
banqueiro cantou vitória, mas o general disse que ele riria por
último. Ficou decidido que, por eu ter apanhado o globo terrestre,
meu destino era ser um grande líder mundial, mas que eu seria
ambivalente no que dizia respeito ao instrumento a ser usado para
alcançar aquela posição.
Da Chen, in A montanha e o rio
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