terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O presépio

Havia uma única coisa que eu invejava nos católicos: no Natal, eles armavam presépios e nós, protestantes, tínhamos árvores de Natal. As árvores eram bonitas, mas não me comoviam como o presépio: uma cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis, anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha. A contemplação de uma criancinha amansa o universo. Os católicos mais humildes tinham alegria em fazer os seus presépios. As pobres salas de visita se transformavam em lugares sagrados. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços — os sapatos só eram usados em ocasiões especiais —, peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida.
Nós tratávamos de fazer os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante. Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celulóide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber, estávamos representando o sonho do profeta que anunciava o dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas. A estrebaria, nós mesmos a fazíamos com bambus. E as figuras que faltavam nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila. Tinha também de haver um laguinho onde nadavam patos e cisnes. Não importava que os patos fossem maiores que os elefantes. No mundo mágico tudo é possível. Era uma cena naïf, primitiva, indiferente às regras da perspectiva. Um presépio verdadeiro tem de ser infantil. E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranquila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro dele. Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores.
Aconteceu de verdade? Foi daquele jeito descrito pelas Escrituras Sagradas? As crianças sabem que isso é irrelevante. Elas ouvem a estória e a estória acontece de novo. Não querem explicações. Não querem interpretações. A beleza da estória lhes basta. Os teólogos que fiquem longe do presépio. Suas palavras atrapalham.
O presépio nos faz querer “voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Estamos encantados. Adivinhamos que somos de um outro mundo” (Octávio Paz).

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Nenhum comentário:

Postar um comentário