Eu
estava doente. Diziam que eu sofria do fígado. Deitado, o estômago
enjoado. Aí chegou o correio trazendo um pacote para mim, do Rio de
Janeiro. Minha mãe leu o nome do remetente. O pacote vinha de uma
mulher cujo nome eu nunca ouvira: Elisinha. Não sei se era alta ou
baixa, gorda ou magra. Minha mãe explicou: era uma parenta. Não sei
como ela soube que o meu aniversário estava chegando. Sem me
conhecer, teve vontade de me dar um presente. Eu nunca havia recebido
nada pelo correio. Foi uma importância. Dentro do pacote havia dois
presentes. O primeiro era um livro de capa dura, Alice no País
das Maravilhas. Li mas não gostei. O mundo doido da tal Alice
embrulhou o meu estômago ainda mais. O segundo presente era uma
caixa. Quando a abri não entendi. Ninguém entendeu. Uma infinidade
de pequenas peças de papelão soltas, coloridas. Meu pai logo
decifrou o enigma. As peças deveriam ser ajuntadas para formar um
quadro. O quadro estava na tampa da caixa. Era a oficina de um velho,
vários relógios na parede, um peixinho num aquário, um gato, um
grilo e um boneco de madeira. Foi a primeira vez que soube da estória
do Pinóquio. De noite meu pai e meu irmão Ivan espalharam as peças
sobre uma mesa e se puseram a montar o quebra-cabeça. Eu, doente,
ficava de fora, olhando. Mas ficava fascinado ao ver as pequenas
peças formando desenhos à medida que eram ajuntadas. Apaixonei-me
por aquele quebra-cabeça. Apaixonei-me por todos os quebra-cabeças.
Ainda hoje, quando quero me desligar do mundo, ponho-me a armar
quebra-cabeças. Esqueço-me de tudo. Agora mesmo acabei de montar
um, pequeno, só quinhentas peças. Houve só um quebra-cabeça que
me derrotou. Era um dos desenhos de Escher, mil peças. Desisti.
Dei-o a uma instituição que cuida de crianças deficientes. De vez
em quando aparece entre os deficientes pessoas com habilidades
extraordinárias. Alguns têm uma memória fabulosa. São capazes de
decorar um livro de quinhentas páginas com uma só leitura — muito
embora não entendam o que decoraram. Outros têm a capacidade
sobre-humana de montar os quebra-cabeças mais complicados. Parece
que eles, por mecanismos que não entendemos, percebem quase
instantaneamente a forma das peças espalhadas sobre a mesa. O
deficiente armou o quebra-cabeças que me derrotou. Só fico triste
quando vejo quebra-cabeças formados colados num compensado e
transformados em quadros. O quebra-cabeças foi assassinado. Ninguém
poderá ter mais o prazer de montá-lo. O quadro é a sua urna
funerária.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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