quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Largar! Segundo, terceiro e quarto escaleres, largar!

Foi na manhã seguinte a um desses exercícios de posto de combate que resgatamos um salva-vidas, avistado à deriva nas imediações do navio.
Era uma massa circular de cortiça, de aproximadamente vinte centímetros de espessura e um metro e vinte de diâmetro, coberta com lona alcatroada. Ao redor de toda a circunferência prendiam-se nós de onde partiam cordas que terminavam em curiosas cabeças de turco. Eram os cabos salva-vidas, destinados aos náufragos. No miolo da cortiça havia uma vara enfiada na transversal, menor do que uma haste de lança. Todo o salva-vidas estava ornado de vieiras, e suas laterais emaranhadas em algas marinhas. Golfinhos surgiam e brincavam ao seu redor, e um pássaro branco planava em torno do topo da vara. Havia muito tempo que devia ter sido lançado ao mar para salvar algum pobre náufrago que provavelmente se afogou, o salva-vidas flutuou para longe.
Os homens do castelo de proa o pescaram à vante; e a marujada aglomerou-se em torno dele.
Azar! Azar!”, exclamou o capitão da latrina. “Não vai demorar pra gente ficar com um a menos.”
O tanoeiro do navio — cujas funções incluem verificar se os salva-vidas estão em ordem — saiu de perto do grupo.
Nos vasos de guerra, noite e dia, semana após semana, dois salva-vidas são mantidos pendurados à popa; e dois homens, com machadinhas nas mãos, caminham de um lado para o outro, preparados, ao primeiro aviso, para cortar-lhes a corda e lançá-los ao mar. Como sentinelas em guarda, eles são rendidos a cada duas horas. Cuidados similares não são adotados nas marinhas mercante ou baleeira.
Profundamente atentas à preservação da vida humana são, portanto, as regulações de um navio de guerra; e raras vezes houve melhor ilustração de tal preocupação do que durante a Batalha de Trafalgar, quando, depois de “muitos milhares” de marinheiros franceses, segundo lorde Collingwood, terem sido aniquilados e, segundo relatórios oficiais, seiscentos e noventa ingleses terem sido mortos ou feridos, os capitães dos navios restantes ordenaram que as sentinelas salva-vidas deixassem seus mortíferos canhões e fossem para seus postos de vigilância, como oficiais da Sociedade Filantrópica.
Ali, Batoque!”, gritou Escaramuça, um dos homens da âncora d’esperança. “Tá aí um bom modelo pra você; vê se faz um par de salva-vidas feito esse; alguma coisa capaz de salvar um homem, não que fique cheio d’água e afunde junto com ele, feito o que vai acontecer com esses seus barris furados assim que a gente precisar deles. Um dia desses eu quase que caí da proa; quando subi de volta, resolvi dar uma olhada neles. As tábuas estavam todas abrindo. Que horror! Imagine você cair ao mar e se ver afundando em cima dos salva-vidas que você mesmo fez… o que me diz disso?”
Nunca subo o cordame e não pretendo cair no mar”, respondeu Batoque.
Cuidado com o que diz!”, devolveu o homem da âncora d’esperança. “Vocês que ficam a passeio pelos conveses aqui e ali estão mais perto do fundo do mar do que o marinheiro ligeiro que solta a vela mais alta do mastro principal. Presta atenção, Batoque… presta atenção!”
Presto, sim”, retrucou Batoque. “Você também!”
No dia seguinte, mal nasceu o sol, despertei em minha maca com o grito de “Marinheiros ao convés! Rizar velas!”. Subindo as escadas, soube que, das mesas de guarnição, um marinheiro fora ao mar; e, lançando um olhar à popa, pude perceber, a partir dos gestos dos presentes, que as sentinelas haviam lançado os salva-vidas.
Soprava uma brisa fresca; veloz, a fragata singrava as águas. Mas os mil braços de quinhentos homens logo a viraram de bordo e refrearam seu avanço.
Estão vendo o homem?”, gritou o oficial do quarto de vigia com seu porta-voz, chamando os homens da gávea do mastro principal. “Homem ou salva-vidas, estão vendo alguma coisa?”
Nada, senhor”, foi a resposta.
Largar escaleres!”, foi a ordem seguinte. “Trompete! Convocar as tripulações do segundo, terceiro e quarto escaleres. Marinheiros ao cordame!”
Em menos de três minutos, as três embarcações estavam no mar. Mais marinheiros foram requisitados num deles e, entre outros, embarquei para substituir a tripulação ausente.
Agora, homens, remar! Atenção para onde apontam os remos, e olho vivo!”, exclamou o oficial de nosso escaler. Por algum tempo, no mais absoluto silêncio, subimos e descemos navegando sobre a espuma dos imensos vagalhões do mar, mas sem sucesso.
Não adianta”, disse o oficial. “Ele se foi, seja lá quem for. Remar, homens, remar! Logo eles vão nos chamar de volta.”
E que se afogue!”, retrucou um dos homens ao remo. “Acabou com a minha folga.”
Quem era o pobre-diabo?”, perguntou outro.
Alguém que morreu sem conhecer caixão!”, respondeu um terceiro.
Meus amigos, por ele ninguém jamais vai anunciar ‘Marinheiros, encomendar o morto’!”, disse um quarto.
Silêncio”, ordenou o oficial, “e olho vivo.” Mas os dezesseis remadores continuaram a falar; e, depois de remar por duas ou três horas, avistamos a bandeira no topo do mastaréu de joanete de proa nos convocando de volta e retornamos a bordo, sem qualquer sinal mesmo dos salva-vidas.
Os botes foram içados, as vergas estaiadas, e assim seguimos adiante — com um homem a menos.
Toca mostra!”, foi, então, a ordem. Chamados um por um, verificou-se que o tanoeiro era o único ausente.
Eu disse, marujada”, falou o capitão da latrina, “disse que logo perderíamos um homem.”
Batoque, não é?”, devolveu Escaramuça, o homem da âncora d’esperança. “Eu avisei que os salva-vidas dele não salvavam um homem se afogando; agora ele viu que eu tava certo!”

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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