Foi
na manhã seguinte a um desses exercícios de posto de combate que
resgatamos um salva-vidas, avistado à deriva nas imediações do
navio.
Era
uma massa circular de cortiça, de aproximadamente vinte centímetros
de espessura e um metro e vinte de diâmetro, coberta com lona
alcatroada. Ao redor de toda a circunferência prendiam-se nós de
onde partiam cordas que terminavam em curiosas cabeças de turco.
Eram os cabos salva-vidas, destinados aos náufragos. No miolo da
cortiça havia uma vara enfiada na transversal, menor do que uma
haste de lança. Todo o salva-vidas estava ornado de vieiras, e suas
laterais emaranhadas em algas marinhas. Golfinhos surgiam e brincavam
ao seu redor, e um pássaro branco planava em torno do topo da vara.
Havia muito tempo que devia ter sido lançado ao mar para salvar
algum pobre náufrago que provavelmente se afogou, o salva-vidas
flutuou para longe.
Os
homens do castelo de proa o pescaram à vante; e a marujada
aglomerou-se em torno dele.
“Azar!
Azar!”, exclamou o capitão da latrina. “Não vai demorar pra
gente ficar com um a menos.”
O
tanoeiro do navio — cujas funções incluem verificar se os
salva-vidas estão em ordem — saiu de perto do grupo.
Nos
vasos de guerra, noite e dia, semana após semana, dois salva-vidas
são mantidos pendurados à popa; e dois homens, com machadinhas nas
mãos, caminham de um lado para o outro, preparados, ao primeiro
aviso, para cortar-lhes a corda e lançá-los ao mar. Como sentinelas
em guarda, eles são rendidos a cada duas horas. Cuidados similares
não são adotados nas marinhas mercante ou baleeira.
Profundamente
atentas à preservação da vida humana são, portanto, as regulações
de um navio de guerra; e raras vezes houve melhor ilustração de tal
preocupação do que durante a Batalha de Trafalgar, quando, depois
de “muitos milhares” de marinheiros franceses, segundo lorde
Collingwood, terem sido aniquilados e, segundo relatórios oficiais,
seiscentos e noventa ingleses terem sido mortos ou feridos, os
capitães dos navios restantes ordenaram que as sentinelas
salva-vidas deixassem seus mortíferos canhões e fossem para seus
postos de vigilância, como oficiais da Sociedade Filantrópica.
“Ali,
Batoque!”, gritou Escaramuça, um dos homens da âncora
d’esperança. “Tá aí um bom modelo pra você; vê se faz um par
de salva-vidas feito esse; alguma coisa capaz de salvar um homem, não
que fique cheio d’água e afunde junto com ele, feito o que vai
acontecer com esses seus barris furados assim que a gente precisar
deles. Um dia desses eu quase que caí da proa; quando subi de volta,
resolvi dar uma olhada neles. As tábuas estavam todas abrindo. Que
horror! Imagine você cair ao mar e se ver afundando em cima dos
salva-vidas que você mesmo fez… o que me diz disso?”
“Nunca
subo o cordame e não pretendo cair no mar”, respondeu Batoque.
“Cuidado
com o que diz!”, devolveu o homem da âncora d’esperança. “Vocês
que ficam a passeio pelos conveses aqui e ali estão mais perto do
fundo do mar do que o marinheiro ligeiro que solta a vela mais alta
do mastro principal. Presta atenção, Batoque… presta atenção!”
“Presto,
sim”, retrucou Batoque. “Você também!”
No
dia seguinte, mal nasceu o sol, despertei em minha maca com o grito
de “Marinheiros ao convés! Rizar velas!”. Subindo as escadas,
soube que, das mesas de guarnição, um marinheiro fora ao mar; e,
lançando um olhar à popa, pude perceber, a partir dos gestos dos
presentes, que as sentinelas haviam lançado os salva-vidas.
Soprava
uma brisa fresca; veloz, a fragata singrava as águas. Mas os mil
braços de quinhentos homens logo a viraram de bordo e refrearam seu
avanço.
“Estão
vendo o homem?”, gritou o oficial do quarto de vigia com seu
porta-voz, chamando os homens da gávea do mastro principal. “Homem
ou salva-vidas, estão vendo alguma coisa?”
“Nada,
senhor”, foi a resposta.
“Largar
escaleres!”, foi a ordem seguinte. “Trompete! Convocar as
tripulações do segundo, terceiro e quarto escaleres. Marinheiros ao
cordame!”
Em
menos de três minutos, as três embarcações estavam no mar. Mais
marinheiros foram requisitados num deles e, entre outros, embarquei
para substituir a tripulação ausente.
“Agora,
homens, remar! Atenção para onde apontam os remos, e olho vivo!”,
exclamou o oficial de nosso escaler. Por algum tempo, no mais
absoluto silêncio, subimos e descemos navegando sobre a espuma dos
imensos vagalhões do mar, mas sem sucesso.
“Não
adianta”, disse o oficial. “Ele se foi, seja lá quem for. Remar,
homens, remar! Logo eles vão nos chamar de volta.”
“E
que se afogue!”, retrucou um dos homens ao remo. “Acabou com a
minha folga.”
“Quem
era o pobre-diabo?”, perguntou outro.
“Alguém
que morreu sem conhecer caixão!”, respondeu um terceiro.
“Meus
amigos, por ele ninguém jamais vai anunciar ‘Marinheiros,
encomendar o morto’!”, disse um quarto.
“Silêncio”,
ordenou o oficial, “e olho vivo.” Mas os dezesseis remadores
continuaram a falar; e, depois de remar por duas ou três horas,
avistamos a bandeira no topo do mastaréu de joanete de proa nos
convocando de volta e retornamos a bordo, sem qualquer sinal mesmo
dos salva-vidas.
Os
botes foram içados, as vergas estaiadas, e assim seguimos adiante —
com um homem a menos.
“Toca
mostra!”, foi, então, a ordem. Chamados um por um, verificou-se
que o tanoeiro era o único ausente.
“Eu
disse, marujada”, falou o capitão da latrina, “disse que logo
perderíamos um homem.”
“Batoque,
não é?”, devolveu Escaramuça, o homem da âncora d’esperança.
“Eu avisei que os salva-vidas dele não salvavam um homem se
afogando; agora ele viu que eu tava certo!”
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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