quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Incontrolável

Na noite escura e funda da alma, as lojas de bebida e os bares estão fechados. Ela enfiou a mão debaixo do colchão; a garrafa de vodca estava vazia. Sentou na cama, depois levantou. Estava tremendo tanto que teve que sentar no chão. Estava hiperventilando. Se não tomasse alguma coisa, ela entraria em delirium tremens ou teria um ataque.
O segredo é procurar desacelerar a respiração e a pulsação. Manter-se o mais calmo possível até poder comprar uma bebida. Açúcar. Chá com açúcar, era isso que davam para você nas clínicas de desintoxicação. Mas ela estava tremendo demais para ficar de pé. Deitou no chão e começou a respirar fundo, usando a técnica da ioga. Não pense, pelo amor de Deus, não pense no estado em que você está ou vai acabar morrendo, de vergonha, de derrame. A sua respiração se acalmou. Ela começou a ler os títulos dos livros na estante. Concentre-se, leia os nomes em voz alta. Edward Abbey, Chinua Achebe, Sherwood Anderson, Jane Austen, Paul Auster, não pule nenhum, vá devagar. Quando terminou de ler toda a parede de livros, já estava se sentindo melhor. Levantou-se do chão. Apoiando-se na parede, tremendo tanto que mal conseguia botar um pé na frente do outro, ela foi até a cozinha. Não tinha baunilha. Extrato de limão. O limão queimou sua garganta e lhe deu ânsia de vômito; ela tapou a boca e se forçou a tornar a engolir. Fez chá com bastante mel e o tomou bem devagar no escuro. Às seis, ou seja, dali a duas horas, ela poderia comprar vodca na Uptown Liquour Store em Oakland. Em Berkeley você tinha que esperar até as sete. Ai, Deus, será que ela tinha dinheiro? Arrastou-se de volta até o quarto para ver quanto tinha na carteira. Seu filho Nick devia ter tirado a carteira e as chaves do carro da bolsa dela. Não havia como procurar a carteira e as chaves no quarto dos filhos sem acordá-los.
Encontrou um dólar e trinta centavos num pote de moedas em cima da sua mesa. Vasculhou todas as bolsas guardadas no armário, bolsos de casacos, uma gaveta da cozinha, até que finalmente conseguiu juntar os quatro dólares que o maldito indiano cobrava por uma garrafa de meio litro àquela hora. Todos os bêbados doentes pagavam o preço dele, embora a maioria comprasse vinho doce, que fazia efeito mais rápido.
Era longe para ir a pé. Ela levaria uns quarenta e cinco minutos para chegar lá e teria que voltar correndo para casa para estar lá antes que os meninos acordassem. Será que conseguiria? Mal podia andar de um cômodo até outro. Teria que rezar para que nenhum carro de patrulha passasse por ela. Queria ter um cachorro para levar para passear. Já sei, pensou, rindo, vou pedir emprestado o cachorro dos vizinhos. Claro. Nenhum dos vizinhos falava mais com ela.
Uma coisa que a ajudava a manter o equilíbrio era se concentrar nas rachaduras da calçada e contá-las, um, dois, três. Andava se apoiando, se pendurando em arbustos e troncos de árvores, como se escalasse uma montanha de lado. Atravessar as ruas era aterrorizante, largas como eram, com seus sinais piscando, vermelho, vermelho, amarelo, amarelo. De vez em quando passava um caminhão de revistas, um táxi vazio. Um carro de polícia passou rápido, com as luzes apagadas. Os policiais não a viram. Um suor frio escorria pelas suas costas, seus dentes batiam ruidosamente na manhã escura e silenciosa.
Ela estava ofegante e fraca quando enfim chegou à Uptown Liquor Store, na Shattuck. Ainda não estava aberta. Sete homens negros, todos velhos com exceção de um rapaz, estavam parados do lado de fora, no meio-fio. Alheio a eles, o indiano tomava café, sentado atrás da vitrine. Na calçada, dois homens dividiam um frasco de xarope para tosse Nyquil. A morte azul, essa você pode comprar a noite toda.
Um velho que chamavam de Champ sorriu para ela. “Tá enjoada, amor? O seu cabelo dói?” Ela fez que sim. Era essa a sensação que você tinha, o cabelo, os olhos, os ossos, tudo doía. “Aqui”, disse Champ, “é melhor você comer alguma coisa.” Ele estava comendo bolachas salgadas e deu duas para ela. “Você tem que se forçar a comer.”
Ei, Champ, me dá uma bolacha dessa aí”, pediu o rapaz.
Eles deixaram que ela fosse a primeira a ser atendida. Pediu uma garrafa de vodca e despejou sua pilha de moedas no balcão.
Está tudo aí”, ela disse.
Ele sorriu. “Conta para mim.”
Anda logo. Merda”, disse o rapaz, enquanto ela contava as moedas com mãos violentamente trêmulas. Ela enfiou a garrafa na bolsa e foi cambaleando até a porta. Do lado de fora, se apoiou num poste de telefone, com medo de atravessar a rua.
Champ estava tomando um gole da sua garrafa de Night Train.
Você é fina demais pra beber na rua?”
Ela fez que não. “Estou com medo de deixar a garrafa cair.”
Aqui”, disse ele. “Abre a boca. Você precisa tomar uns goles senão não vai conseguir chegar em casa nunca.” Ele derramou um pouco de vinho dentro da sua boca. Ela sentiu a bebida descendo dentro de si, quente. “Obrigada”, disse.
Atravessou a rua rapidamente, depois correndo aos trancos até em casa, noventa, noventa e um, contando as rachaduras. O céu ainda estava um breu quando ela chegou em frente à porta.
Esbaforida. Sem acender a luz, pôs um pouco de suco de cranberry num copo e acrescentou um terço do conteúdo da garrafa de vodca. Sentou diante da mesa e tomou a bebida devagar, o alívio do álcool se espalhando aos poucos pelo seu corpo inteiro. Estava chorando, de alívio por não ter morrido. Despejou mais um terço da garrafa e um pouco de suco no copo, deitando a cabeça na mesa entre um gole e outro.
Quando esvaziou o copo, já estava se sentindo melhor. Foi para a área de serviço e pôs uma carga de roupa na máquina de lavar. Levando a garrafa junto, entrou no banheiro. Tomou uma chuveirada, penteou o cabelo, vestiu roupas limpas. Mais dez minutos. Conferiu se a porta estava trancada, sentou no vaso e tomou o resto da vodca. Esse último terço da garrafa não só a fez se sentir melhor, como a deixou também levemente embriagada.
Transferiu as roupas da máquina de lavar para a secadora. Estava misturando concentrado de suco de laranja numa jarra de água quando Joel entrou na cozinha, esfregando os olhos. “Nada de meia e nada de camisa.”
Oi, filho. Senta aí e come o seu cereal. Até você acabar de tomar café e tomar banho, as suas roupas já vão estar secas.” Ela serviu um copo de suco para ele e outro para Nicholas, que estava parado no vão da porta, em silêncio.
Como você conseguiu comprar bebida?” Empurrando-a para o lado com o ombro, ele passou por ela e foi se servir de cereal. Treze anos. E já era mais alto que ela.
Será que dava pra devolver a minha carteira e as chaves?”, ela perguntou.
A carteira, sim. As chaves eu devolvo quando tiver certeza de que você está bem.”
Eu estou bem. Amanhã mesmo eu vou voltar pro trabalho.”
Você não tem mais como parar sem ir pra um hospital, mãe.”
Eu vou ficar bem. Por favor, não se preocupem. Vou ter o dia inteiro pra me recuperar.” Ela foi ver se as roupas já tinham secado.
As camisas estão secas”, ela disse a Joel. “As meias vão precisar de mais uns dez minutos.”
Eu não posso esperar. Vou usar elas molhadas mesmo.”
Os filhos pegaram os livros e mochilas, se despediram dela com um beijo e saíram. Ela foi para a janela e ficou vendo os filhos descerem a rua em direção ao ponto de ônibus. Esperou que eles entrassem no ônibus e que o ônibus seguisse pela Telegraph Avenue. Depois, foi até a loja de bebidas da esquina. Estava aberta agora.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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