Evitei
essa conversa por muito tempo. Confesso que sucessivos lutos — meu
pai morreu um ano após minha mãe — me fizeram agir no automático.
A ferida que sangra agora é velha, uma ferida que foi aberta anos
atrás e não cicatrizou. E toda vez que sinto dor parecida, mesmo
vindo de situações diferentes, o corte se põe a sangrar de novo, e
muito. Mas agora me sinto pronta, vó.
Minha
dificuldade em assumir a tristeza me atrapalhava. Eu só fui chorar a
morte dos meus pais depois de algum tempo. Lembro que um dia tocou À
la claire fontaine no rádio e eu desabei. Os versos “Há muito
tempo que eu te amo, jamais te esquecerei” despertaram em mim todas
as lágrimas represadas, todo o amor que precisava ser filtrado por
águas salgadas. Eu jamais esqueceria meus amores primeiros, mas era
preciso uma canção cantada com ternura para me lembrar que eles
precisam ser eternizados sem dor em demasia. Como essa dor será
carregada para sempre, ela não pode nos fazer afundar e esquecer as
memórias felizes. Para que não evitemos um sorrisinho de canto
quando nos pegamos repetindo aquilo que condenávamos nos nossos
pais. Para que seja possível rir do dia em que fugimos de uma surra.
Para que possamos ir atrás do caderno de receitas toda vez que bater
a saudade de acordar com o delicioso cheiro de pão caseiro assando.
Para trazer as memórias dos dias em que acordávamos cedo para
passar o dia na praia com meu pai.
No
enterro de minha mãe, a mãe de uma amiga me disse: “Não chore,
você precisa ser forte pelos seus irmãos”. Sei que ela não falou
por mal, mas quão cruel é dizer para uma jovem de vinte anos que
ela não pode chorar a morte de sua mãe? E mais: que ela precisa ser
forte?
Essa
imagem da mulher negra forte é muito cruel. As pessoas se esquecem
de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser porque o Estado
é omisso e violento. Restituir a humanidade também é assumir
fragilidades e dores próprias da condição humana. Somos
subalternizadas ou somos deusas. E pergunto: quando seremos humanas?
Muitas
vezes eu me tranquei no banheiro para chorar, porque eu não me
sentia à vontade para fazer isso na frente dos outros. “Não
chore, não chore, não fique assim”, as pessoas diziam se me
vissem. Há uma obrigação de felicidade insuportável. Uma
obrigação de fortaleza insuportável.
Em
geral, as pessoas não se interessam em nos perguntar onde e como
dói, pois acreditam que já conhecem o antídoto para a dor, ou que
simplesmente não há a necessidade de senti-la. Numa das poucas
vezes que me abri e falei da minha dor, ouvi de uma vizinha que “a
vida é dura para quem é mole”. Eu era muito jovem, mas sempre
soube identificar a indiferença. A indiferença a outras realidades
e vidas que não haviam começado com cheiro de talco e cama
confortável. Sua vida foi dura, vó, mas você estava longe de ser
mole. Conseguiu jorrar amor pelas frestas do concreto e possibilitar
um mundo sem náuseas para uma menina preta que buscava sentido na
vida. Mas seria perda de tempo explicar para a vizinha que nós não
éramos responsáveis pela dureza da vida, porque ela estava ocupada
demais com as ofertas do supermercado e não tinha sequer disposição
para um banal “vai passar”.
A
outra vez em que tentei falar das minhas dores foi no centro espírita
que eu frequentava, um espaço muito importante na minha vida.
Cheguei a ele por meio de uma amiga de escola quando eu tinha
dezessete anos. Cursei a Mocidade Espírita, a Escola de Aprendizes
do Evangelho e tive amparo espiritual por um tempo. Quando minha mãe
morreu, vó, procurei uma das dirigentes do centro para conversar.
Contei das dificuldades que enfrentava, da tristeza que sentia e de
como, com a volta da tia Edna para casa dela — depois de alguns
meses cuidando de mim e de meus irmãos — tudo estava difícil
demais para os meus vinte anos. Ela escutou com atenção, me
aconselhou, mas, talvez por eu ter problemas tão distantes da
realidade dela, acabou caindo no lugar-comum: “Quando a vida te der
limões, faça uma limonada”.
A
gente sabe, vó, que na nossa família as mulheres já fizeram jarras
inteiras de limonada com só meio limão — como aquele dito popular
de colocar mais água no feijão. Nosso povo inventou a feijoada com
restos de porco e a transformou no prato mais conhecido do país,
numa espécie de milagre da multiplicação. Não nego a genialidade
da criatividade, sou grata a ela, porém questiono essa fixação no
escasso.
De
certo modo, entendi que a resposta da dirigente do centro espírita
se assemelhava em muito àquela dita pela minha vizinha — difícil.
As pessoas estão acostumadas a reproduzir frases de efeito
acreditando espalhar pílulas de sabedoria por aí. Mas tudo o que eu
desejava — e precisava — era alguém que pudesse me dedicar
alguns minutos antes de voltar metodicamente a seus compromissos e
dissesse simplesmente: “Chore, tudo bem ficar triste”, ou mãos
me abraçando em silêncio, acolhendo meus soluços enquanto eu
colocava pra fora minha dor e saudade.
Porém,
ao contrário, o que vi foi a crueldade de se esperar que uma jovem
de vinte anos fosse forte no dia da despedida de sua mãe. Aprendi a
não chorar para não incomodar, a controlar as lágrimas em público
— até o momento que sequei cada uma delas até pra mim. Acreditei
que eu precisava ser forte e me recusei a entrar em contato com a
dor.
Confesso
que depois que você partiu, vó, eu perdi um pouco da vontade de ir
a Piracicaba. Só voltei depois de três anos, e foi difícil passar
na sua casa e não chorar. A Renata, filha da tia Edna, ficou morando
lá. Até hoje tenho medo de entrar e não ver o lugar que me acolheu
com tanto amor — e por isso nunca mais fui visitá-la. Vou à casa
dos meus tios, mas não consigo ir à linda casinha branca no bairro
São Dimas. Prefiro manter intactas as memórias dos dias cheirando a
boldo, de sentir a terra úmida do quintal no pé quando chovia e do
gosto do doce de abóbora de domingo. Não quero ter de perguntar o
que aconteceu com o pé de manga. É pra lá que eu volto nos meus
dias tristes.
Quantas
histórias eu teria aprendido, quantos colos eu perdi. Sobretudo, o
quanto não conheci você e dona Erani como mulheres, para além do
papel de avó e mãe. Eu não tive tempo de contar sobre minhas
frustrações no amor, de mostrar como minha filha, Thulane, se
parece com vocês duas. Mas acredito que contar minha própria
história é um modo de revivê-las, de mantê-las vivas. Quero
escrever sobre você, vó, e te contar o que não tive tempo de
contar antes. Quero que muitas pessoas saibam que, para além da
aspereza e dureza da vida, você transmitiu ensinamentos importantes.
Afinal, como não ser dura quando a vida é assim? Como educar sem
bater quando a violência era herança e cotidiano? Minha mãe nos
criou assim também. Mas você quebrou esse ciclo comigo, vó, me
amando como me amou. Por isso, fui capaz de fazer o mesmo com a minha
filha. Você humanizou toda uma linhagem e é meu dever também
humanizá-la e, ao contar a você um pouco do que aprendi, eu me
humanizo também. Não apenas eu não tive tempo de conhecê-la, mas
você também não pôde me conhecer. Apesar de você sempre saber
quem eu era, com essas cartas quero lhe apresentar quem me tornei.
Espero que não se incomode por eu chamá-la de “você” e não de
“senhora”, mas é porque eu quero aqui conversar com a Antônia.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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