terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Capítulo 1 | Shento – 1960, Balan, Sudeste da china


Para contar a história do meu nascimento, não vou começar pelo início, mas pelo fim do meu começo. Para falar a verdade, nasci duas vezes. A primeira foi quando rasguei a passagem escura das entranhas de minha mãe. A segunda foi quando o velho curandeiro da aldeia me salvou.
A jovem que me deu à luz pretendia acabar com tudo, não apenas com a sua vida, mas com a minha também, no exato momento da minha chegada a este mundo. Tinha pressa em se atirar do penhasco que ficava no topo do monte Balan, mas eu fui mais rápido do que suas pernas inchadas e escapei de seu ventre bem no momento em que ela avançava para a beira daquele precipício fatídico. As pessoas da aldeia tentariam imaginar o que a teria levado a isso, transformando-se numa espécie de mito ao saltar do ponto mais alto da montanha, comigo ainda ligado a ela pelo cordão da vida, o emaranhado cordão umbilical.
Pulei para fora antes que ela se atirasse no abismo, nascido em pleno ar, pairando acima de tudo. Posso imaginá-la lançando-se daquele penhasco escarpado como uma águia planando em direção ao solo, liberta de seu ninho, de suas amarras, de seus pecados, em seu lamento final, para ser esquecida pelo vento que fazia esvoaçar seu cabelo viçoso de moça, enquanto se arremessava precipício abaixo. Nós dois, anjos germinados e sem asas, caíamos em queda livre. Mas o impensável aconteceu. A mão do destino interveio. Eu, recém-nascido choroso, caindo no rastro de minha mãe pela encosta do penhasco coberto de trepadeiras, fiquei subitamente agarrados aos galhos de um arbusto de chá que crescia na entrada de uma gruta.
Em câmara lenta, num segundo que poderia ter durado uma vida inteira, rompeu-se o cordão umbilical. Apanhado por dois galhos flexíveis, soltei um grito assustador – minha ode ao vigoroso e resistente arbusto de chá. Minha mãe – o anjo do meu nascimento, de minha morte – e eu nos separamos em pleno ar, com o sangue jorrando por todo o lado, respingando nas folhas. Fiquei balançando, suspenso nas alturas, preso nos galhos daquela planta abençoada.
Minha mãe mergulhava em direção ao fundo, transformada num pequeno ponto que ia ficando cada vez mais diminuto, até que desapareceu no silêncio do vale que ficava lá embaixo, para nunca mais ser vista. Só muito depois é que eu viria saber o motivo de minha mãe ter escolhido cantar a canção da morte tão cedo em sua vida. Por ora, eu estava pendendo de um galho, tão periclitantemente quanto se poderia estar.
Porém o destino se interveio mais uma vez. A misericórdia divina desceu sobre mim na forma do velho curandeiro da aldeia – magro, ossudo e cheio de fé. Quando ele me viu chorando e me viu preso no penhasco açoitado pela ventania, desceu como um macaco para me resgatar.
Felizmente, era tão ágil quanto um deles, pois sua atividade exigia que percorresse as cadeias das montanhas, passando por todos os cumes, por todos os vales, indo de caverna em caverna em busca de raros ginseng e da saliva de andorinhas cujos ninhos eram encontrados apenas nos locais quase inalcançáveis escolhidos pelas aves.
Ele desceu pela costa do penhasco, abrindo caminho por entre os galhos das árvores, por vezes não encontrando os pontos de apoio para os pés e quase despencando em numa queda fatal. Mas, naquele dia, os céus permitiram que apenas uma morte ocorresse. Ofegante, conseguiu me agarrar. Este momento é que eu chamo de meu segundo nascimento, e que foi concedido pela graça e misericórdia de Buda, pelas mãos de uma pessoa que tinha praticado boas ações dia após dias, cuidando de um vilarejo repleto de gente pobre e doente. Digo que foi a graça e a misericórdia de Buda e foi exatamente isso, pois se fosse um outro homem que tivesse escutado meu choro e que, mesmo pela vontade do Buda, tivesse em seu coração a disposição e o desejo de salvar aquele pequeno ser, fosse ele um homem de bom coração ou não, poderia nunca ter conseguido fazer o que o curandeiro fez, porque ao coração daquele velho faltava um filho. O grito que lancei no ar, e que foi ouvido por ele, ecoou nos recônditos de sua própria alma, como ele mais tarde me contaria. Não era apenas o berro de um menino qualquer, mas o do seu próprio sangue.
Ele estava a apenas alguns centímetros de distância de mim quando uma rajada de vento por pouco não me arrancou novamente das mãos da vida. Mas, segurando na raiz de uma árvore, ele estendeu um dos braços para me pegar, agarrando a minha perninha minúscula a tempo de me aninhar na dobra de seu outro braço. Para ganhar tempo e me salvar, fez o que ninguém tinha ousado fazer antes, descendo centenas de metros pelo penhasco íngreme, arranhando os joelhos e os calcanhares, quase fraturando os ossos, para logo em seguida correr de volta para a casa ao encontro da mulher com quem era casado há quarenta anos, antes que os grandes felinos notívagos das montanhas pudessem sentir o cheiro do nosso rastro de sangue.
Pegaram a cabra e a ordenaram. A mulher me alimentou com aquele leite como viesse do seu próprio seio. Naquela mesma hora e naquele exato momento, deram-me o nome de Shento – o topo da montanha, o cume.
Ele vai querer alcançar o céu, como o nosso sagrado monte Balan – disse q baba.
E vai subir aos céus como o espírito de nossos ancestrais – acrescentou mama. – Será que podemos ficar realmente com ele como se fosse o nosso próprio filho?
Mas é claro que sim! Ele é uma dádiva da nossa querida montanha, uma recompensa pelas boas ações que praticamos.
E se encaixa tão bem em nossos braços! – murmurou a mama, acariciando meu rosto.
E assim termina a história do meu nascimento e começa a da minha vida.
O sol se punha e a lua subia no céu, e aos poucos fui me tornando um menino de roça, robusto e forte, com o apetite de uma criança de três anos mais velha. Mama me dava comida com uma colher de bambu do tamanho usado pelos adultos. Não precisava ficar cantando nenhuma canção infantil para que eu comesse, Eu devorava uma colherada depois da outra até soltar pequenos arrotos. Meu prato predileto era bolo de arroz doce. Na nossa aldeia pobre, onde a comida de todos os dias era inhame, arroz doce era coisa rara e preciosa. Baba tinha que percorrer muitos quilômetros para atender pacientes em povoados distantes, e ganhar um dinheirinho extra para que eu pudesse comer aqueles preciosos bolos de arroz. Foi à antiga floresta, cortou as melhores varas de bambu e construí um cercadinho, grande o suficiente para que eu pudesse engatinhar e dormir. Pôs o cercado perto de sua escrivaninha na enfermaria. Com o auxílio de mama, atendia seus pacientes, dava conselhos e praticava acupuntura comigo ali ao lado.
Apoiado numa das paredes da enfermaria, havia um grande armário cheios de gavetas com medicamentos fitoterápicos que baba vendia aos seus pacientes, por grama ou por pitada. As gavetas tinham caracteres chineses antigos e misteriosos que apenas os médicos versados em texto clássico saberiam reconhecer. Certo dia, aos dois anos e meio de idade, surpreendi baba ao citar e localizar dez das ervas mais comumente utilizadas. Aos três eu sabia reconhecer mais da metade delas. Quando tinha quatro anos, alertei baba de que ele tinha pegado uma pitada da erva errada para uma determinada receita. O aviso, disse baba, evitou que uma mulher grávida sofresse um aborto, Baba e mama estavam convencidos de que eu não era uma criança comum.
Daquele dia em diante, baba começou a ler para mim os textos clássicos da medicina chinesa e me ensinou a memorizar os pontos usados na acupuntura.
Uma noite, deitado na cama antes de adormecer, escutei por acaso baba falando baixinho para mama:
O destino do nosso filho é ser o melhor médico que essas montanhas jamais irão conhecer.
Com a sua inteligência extraordinária, imagine só quantas curas vai descobrir!
Não! – retrucou a mama.
E porque não? Por que é que você discorda disso?
O destino do menino vai além do seu desejo limitado – disse ela. – Um dia, ele vai comandar milhares e governar milhões.
Você não está sendo um pouco ambiciosa demais, minha querida esposa? – ouvi baba dizer.
De jeito nenhum. Você não percebe? O nascimento dele foi um acontecimento trágico, e sua história não é diferente da vida de muitos imperadores que, vindos donada, ascenderam ao trono dourado.
Baba ficou em silêncio por um momento.
É... já li em algum lugar que os acontecimentos trágicos formam homens extraordinários.
É isso mesmo, mas, infelizmente, esses grandes homens nunca foram muito felizes.
Pois prefiro que ele seja um homem comum que viva feliz, e que tenha uma vida longa o suficiente para estar ao nosso lado, na hora da nossa morte – disse baba.
já é tarde demais para isso. O destino dele começou quando ele respirou pela primeira vez o ar daquele penhasco. Já é uma grande sorte para nós tê-lo conosco durante o tempo que o nosso bom e misericordioso Buda nos permitir.
Naquela noite, infringi as regras e me aconcheguei na cama dos dois, dormindo entre eles até o sol raiar. Mas, mesmo que falassem frequentemente sobre mim, nunca mencionavam meus verdadeiros pais. Se esse tabu fosse quebrado, o fantasma do meu passado voltaria para assombrar a nossa vida quase perfeita, ainda que simples.

Da Chen, in A montanha e o rio

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