Meu
pai era viajante. Gostava de viajar de trem. Mas agora tinha um
automóvel, o Plymouth 1929. Era um orgulho! Nas redondezas só uma
outra pessoa possuía automóvel, o seu Manoel, nosso vizinho à
direita, que tinha um carro de aluguel. Pois meu pai, valendo-se da
presença de meu irmão mais velho, que tinha vindo passar férias em
casa, resolveu viajar de automóvel, na companhia dele. Para uma
cidadezinha bem próxima, onde uma freguesia de fazendeiros comprava
sacos de aniagem para café. Lá se foram os dois no Plymouth
sacolejante, meu pai de guarda-pó, boné e cachimbo.
Quando
meu pai viajava, todo mundo dormia num quarto só: minha mãe; eu,
caçula; meu irmão lvan, logo acima de mim; e até mesmo a
Astolfina. Por nada deste mundo ela concordaria em dormir em quarto
separado, por medo de assombrações. Seu medo de assombrações era
tanto que só dormia de cabeça coberta com a colcha — coisa que
nunca entendi, pois uma vez tentei, e quase morri sufocado.
A
noite ainda não terminara quando bateram à porta. Foi um
sobressalto. Quem estaria batendo àquelas horas da madrugada? Meu
irmão atendeu. Era um soldado da cadeia.
“É
aqui que mora o Ivan?”, ele perguntou.
“É.
Sou eu”, meu irmão respondeu.
“Telefonema
interurbano, na cadeia.”
Meu
irmão se vestiu e foi. Ficamos acordados, à espera, sabendo que
coisa boa não podia ser. Telefone às quatro e meia da madrugada, só
se for morte.
Meu
irmão atendeu ao telefone:
“Alô...”,
ele disse.
“É
o Ivan?”, alguém perguntou do outro lado da linha.
“É.”
“Papai
morreu...”
Meu
irmão chegou logo depois. Minha mãe falou:
“Não
me dê notícia ruim!”
Ele
disse, meio abobalhado:
“Papai
morreu...”
Foi
aquele alvoroço, aquela choradeira.
Dona
Mazinha, que acordava cedo por causa da idade, deve ter escutado o
barulho diferente. Sua insaciável voracidade por novidades a havia
transformado numa assídua frequentadora de velórios, pois, como é
bem sabido, é ali que circulam as notícias de primeira mão. Pois
dona Mazinha apareceu logo para saber do ocorrido. Sua face se
iluminou e logo se pôs a tomar mil providências com a desenvoltura
de alguém que tem familiaridade com as coisas de defunto. Acordou a
vizinhança, mandou a criançada pelos quatro ventos, como arautos do
triste acontecimento, com ordens precisas para parar nas casas que
tivessem jardim e que dali só saíssem com um maço de flores.
Administrou a organização da sala onde ficaria o defunto, ordenando
que para ali se trouxesse uma cama patente de solteiro, sem colchão
— porque defunto não precisa de colchão e, se por acaso um
colchão for usado, nenhum dos vivos quererá depois dormir nele, por
medo da alma do finado, só prestando então para ser dado às
pedideiras de esmolas.
A
vizinhança chegava sem parar, todos de cara compungida, e enquanto
isto acontecia a nossa casa se transformava. Defunto é coisa
estranha: de um lado é tristeza; do outro lado é festa. Defunto é
a suspensão de todas as proibições, a interdição de todas as
regras do dia-a-dia. A começar com a porta da rua, fechada. Pois
quando existe defunto na casa a porta fica aberta para quem quiser,
conhecido e desconhecido, e bater à porta fica sendo falta de
educação. Defunto é desculpa para não ir trabalhar, para não ir
à escola, para não comparecer a encontro, para não pagar dívida,
para deixar a casa sem varrer, para não fazer o almoço, para adiar
casamento. “Tive de ir a um enterro”: está tudo explicado, está
tudo desculpado.
E
as mulheres, umas que nunca havíamos visto, outras que nunca haviam
passado da sala de visitas, se apropriaram da casa e se moviam como
se a casa fosse sua, abriam as gavetas da cômoda à procura de meias
quentes para a viúva (toda viúva sente frio), iam para a cozinha,
faziam café, fritavam bolinhos, serviam os circunstantes. Festa
estranha, mas não deixa de ser festa... O defunto retira da viúva e
dos seus parentes qualquer controle da situação. Estão entregues à
sua dor e, por isso, quem passa a dar ordens na casa são os de fora.
Seu
Manoel se prontificou a levar a gente para buscar o morto. E lá
fomos nós, deixando atrás o velório, na expectativa do momento
grave da volta.
O
automóvel rodava pela estrada de terra. Não havia sobre o que
falar. Eu pensava em como traríamos o pai. Será que já estava
esticado? Eram assim todos os mortos que eu tinha visto. Mas se
estivesse esticado não caberia no automóvel. Ou será que ele viria
assentado, escorado entre mulher e filho? O lugarejo só tinha um
hoteleco, o Hotel dos Viajantes, onde meu pai e meu irmão tinham de
ter se hospedado. O nome estava pintado na parede. Mas tudo estava
calmo demais para ser o lugar onde havia um morto. Nenhum movimento
incomum, nenhuma aglomeração de curiosos.
“Não,
aqui não morreu ninguém. O viajante do Plymouth? Fez a praça e
prosseguiu viagem ontem mesmo. Defunto, na cidade, há um só.” Com
estas palavras, o hoteleiro, de chinelo e paletó de pijama, apontou
para um lugar. De longe se percebia que naquela casa, de fato, havia
um morto. Chegamos, meio sem jeito, com perguntas esquisitas. O seu
Manoel explicou. Um moço respondeu:
“É,
tem um outro filho que mora na cidade donde vocês vêm. O Ivan, meu
irmão. Ainda não chegou. Já devia ter chegado. Mora perto da
cadeia, na terceira casa acima da linha. Eu conversei com ele mesmo,
de madrugada, no telefone da cadeia, e contei que nosso pai tinha
morrido...”
O
mistério estava resolvido. O morto não era meu pai. Era um outro
que tinha um filho que também se chamava Ivan, como o meu irmão.
Tudo tinha sido uma enorme confusão de irmãos, de lugares, de
nomes, de casas próximas à cadeia!
A
viagem de volta foi uma alegria, com uma viúva desenviuvada e um
filho que tinha pai de novo. Fomos chegando, o povaréu do velório
espiando. Uns homens fortes já se preparavam para carregar o
defunto, prova suprema de amizade. Foi então que eu pus a cabeça
para fora e gritei:
“Não
morreu não, não morreu não!”
Foi
um espanto e um desapontamento. Os carregadores de defunto recolheram
os músculos, as beatas que rezavam terço em volta da cama pararam a
reza e se benzeram, dona Mazinha apagou as velas e catou as flores,
dizendo que ia levá-las para um outro defunto, e até uma cesta de
biscoitinhos que rodava entre os presentes desapareceu. Se velório é
festa, naquele dia não houve festa.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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