segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

12 | O bom ou o mau gênio dos marinheiros de um navio de guerra, em grande parte atribuível a seus postos específicos e funções a bordo do navio

Palmeta, o servente de artilheiro, era representativo de uma classe a bordo do Neversink bastante interessante para ser deixada à popa, sem qualquer comentário, na esteira veloz destes capítulos.
Como se viu, Palmeta era cheio de incontáveis caprichos; era, ademais, um senhorzinho mal-humorado, amargo, intragável e inflamável. Assim também eram todos os membros da divisão de artilharia, incluindo os dois subchefes do artilheiro e todos os seus serventes. Todos tinham a mesma pele marrom-escura, seus rostos mais pareciam peças de presunto defumado. Eles passavam quase todo o tempo grunhindo e resmungando em meio às peças, correndo de um lado para o outro entre canhões, afastando os marinheiros das armas, e lançando imprecações e maldições como se suas consciências se tivessem crestado em pólvora e se tornado calosas por costume do ofício. Era um grupo de homens bastante desagradável; em especial Escorva, um dos subchefes, de voz fanha e lábio leporino; e Cilindro, seu assistente gago de pés tortos. Mas você sempre vai notar que a divisão de artilharia de todo navio de guerra é invariavelmente composta de homens mal-humorados, feios e briguentos. Quando, certa feita, visitei um navio de linha de batalha britânico, a divisão de artilheiros ia de um lado para o outro, lustrando suas baterias, as quais, em respeito ao capricho do almirante, tinham sido pintadas de branco como neve. Correndo nervosamente entre os imensos canhões de trinta e duas libras e dirigindo comentários ferinos aos marinheiros, quando não os desferiam entre si, lembraram-me um enxame de vespas negras zunindo em torno de fileiras de túmulos brancos num adro de igreja.
Ora, não deve restar muita dúvida quanto ao fato de que permanecer por tanto tempo em meio aos canhões é o que torna o grupo dos artilheiros tão intratável e briguento. Houve ocasião, para nosso grande prazer, em que isso se provou verdadeiro a toda a companhia da gávea maior. Um ótimo companheiro de gávea, um dos mais alegres e gregários do grupo, teve a oportunidade de ser promovido ao posto de servente de artilheiro. Poucos dias depois, alguns de nós, homens da gávea maior, seus velhos conhecidos, saímos para visitá-lo, enquanto ele fazia uma de suas rondas regulares pelos canhões sob sua responsabilidade. Contudo, em vez de nos saudar com sua costumeira alegria e contando suas boas piadas, para nosso divertimento, não fez muito mais que grunhir; e por fim, quando nos queixamos de seu mau humor, tomou de um longo soquete negro e levou-nos ao convés principal, ameaçando nos denunciar se voltássemos a tratá-lo com intimidade.
Concluíram meus companheiros de gávea que a espantosa metamorfose era efeito produzido sobre uma personalidade fraca e sem valor, subitamente elevada do nível da marujada comum à nobre posição de oficial subalterno. Não obstante eu tenha visto tais efeitos produzidos sobre alguns membros da tripulação, em casos similares, fato é que neste eu sabia que não era isso; a razão era unicamente sua relação com aqueles vis, irritadiços e mal-humorados canhões; e, mais especialmente, por ele estar sujeito às ordens daqueles dois deformados bacamartes, Escorva e Cilindro.
A verdade parece ser, de fato, que todas as pessoas deveriam ser bastante cuidadosas ao eleger seus ofícios e atividades; muito cuidadosas em se certificar de que se acercam de objetos alegres e de aspecto agradável; bem como de sons tranquilizadores e harmoniosos. Mesmo os pendores angelicais não estão livres, amiúde, de pontas cortantes como as de uma serra; da mesma forma, muitas doces correntes de compaixão azedam no coração das pessoas com a má escolha de uma profissão e a ausência de paisagens aprazíveis em torno de si. Os jardineiros são pessoas de diálogo quase sempre afável; cuidado, porém, com os subchefes de artilharia, os vigilantes de arsenal e os solitários guardas de farol. E embora seja possível notar, de modo geral, que as pessoas que habitam arsenais e faróis tentam cultivar uns poucos vasos de flor ou uns poucos pés de repolho em hortas, de modo a manter, quiçá, alguma alegria em seus espíritos; o resultado é sempre nulo — pois estar em meio a canhões e mosquetes faz com que os botões das primeiras embolorem; e, ademais, como os repolhos poderiam prosperar num solo cujo húmus advém das quilhas destruídas de naus afundadas?
A qualquer homem que, por uma infeliz e já inapelável escolha de profissão, sinta o próprio humor azedar, há de ser conselho válido tentar contrapor essa infelicidade enchendo seus aposentos de paisagens felizes e sons agradáveis. No verão, é possível colocar uma harpa eólica em sua janela sem que isso lhe custe muito; uma concha marinha pode permanecer sobre o aparador da lareira, para ser levada ao ouvido e acalmá-lo com seu contínuo acalanto, sempre que se sentir acometido de um ataque de tristeza. Para os olhos, recomenda-se uma poncheira alegremente pintada ou uma caneca holandesa — não se preocupe em enchê-la. Esta poderia ser colocada num suporte na parede. Para dirimir o tédio, serão igualmente de boa serventia uma concha de prata, um galheteiro de mesa decorado, uma imponente garrafa de vinho — enfim, qualquer coisa que cheire a comes e bebes. Mas talvez o melhor de tudo seja uma prateleira de livros alegremente encadernados contendo comédias, farsas, canções e romances alegres. Não é preciso abri-los; apenas tenha os títulos aos olhos. Para tanto, O peregrino Pickle é um bom livro; assim como Gil Blas e Goldsmith.
Mas, dentre toda a mobília de quarto que existe no mundo, o melhor para curar maus humores e cultivar os bons é a visão de uma bela esposa. Se tem filhos em fase de dentição, contudo, é mister que ela e a criança permaneçam o mais afastadas possível, de preferência no andar superior da casa — no mar, tal lugar seria a gávea do mastro de gata. Crianças em fase de dentição são o diabo para o humor de um pai de família. Conheci três pais de família promissores completamente destruídos nas mãos de suas mulheres por conta de crianças em tal condição, cuja inquietação calhou de piorar à época por causa da gripe intestinal. Com o coração em frangalhos e o lenço aos olhos, segui esses três jovens e infelizes pais de família, um após o outro, no caminho de seus túmulos prematuros.
Cenas de fofoca alimentam fofoca. Quem mais linguarudo que atendentes de hotel, mulheres feirantes, leiloeiros, donos de bar, farmacêuticos, repórteres, amas e todos os que vivem em multidões alvoroçadas ou estão presentes a cenas de linguarudo interesse?
A solidão alimenta a melancolia; isso todos sabem; quem mais taciturno que a raça dos escritores?
Uma quietude interior forçada em meio a grande comoção exterior enseja pessoas rabugentas. Quem mais rabugento que um guarda-freios de ferrovia, um condutor de barco a vapor, um timoneiro ou um encarregado de tear mecânico num moinho de algodão? São pessoas que precisam manter a paz enquanto trabalham, deixando que as máquinas tagarelem à vontade sem se permitir uma sílaba que seja.
Essa teoria da assombrosa influência de sons e panoramas habituais sobre o temperamento humano foi sugerida por minhas experiências a bordo de nossa fragata. E embora tome o exemplo fornecido por nossos subchefes de artilharia — e, em especial, aquele que outrora fora nosso companheiro de gávea — como de longe o mais forte argumento em favor da teoria geral; fato é que todo o navio estava repleto de exemplos dessa verdade. Que homens eram mais progressistas, altivos, alegres, agradáveis, flexíveis, corajosos, dados ao divertimento e à galhofa, do que os homens das gáveas de proa, de gata e do mastro principal? A razão de sua disposição progressista era que se lhes ordenava diariamente que vagassem com liberdade pelo cordame. E a razão de sua altivez de espírito era que permaneciam nas alturas, acima dos tumultos menores, das preocupações irritantes e insignificâncias do convés abaixo.
E estou convencido, no mais íntimo de minha alma, de que se deve a eu ter sido gajeiro do mastro principal, e, em especial, ter estado lotado na verga mais alta da fragata, a verga de sobrejoanete grande, o fato de, neste momento, ser capaz de oferecer um relato livre, amplo, direto, panorâmico e, mais do que tudo, imparcial sobre nosso mundo flutuante; nada escondendo; nada inventando; tampouco adulando ou ferindo quem quer que seja; mas distribuindo a todos — comodoro ou aspirante mensageiro — seu quinhão preciso de descrições e merecimentos.
A razão da jovial alegria desses homens de gávea era que sempre estavam com os olhos voltados ao azul infinito, ondulado, sorridente e ensolarado do mar. Não menciono, em sentido inverso ao desta teoria, os dias tempestuosos, quando o rosto do oceano se fazia negro e sombrio, e alguns de nossos homens ficavam mal-humorados e preferiam sentar-se a sós. Pelo contrário, isso apenas reforça o que afirmo. Pois mesmo em terra firme são muitas as pessoas naturalmente alegres e de coração feliz que, sempre que os ventos outonais começam a soprar e rugir por entre as chaminés, ficam imediatamente impacientes, irritadiças e aborrecidas. O que é mais suave do que uma boa e velha cerveja? O trovão, porém, tornará amargo mesmo o melhor malte já fermentado.
Os fiéis do porão de nossa fragata, os trogloditas, que viviam em subsolos repletos de alcatrão e nas cavernas de sob a coberta das macas, eram, em sua indiscutível maioria, homens soturnos de perspectivas bastante amarguradas do mundo; um deles era um amistoso calvinista. Enquanto os veteranos da âncora d’esperança, que passavam seu tempo sob a brisa revigorante do mar e à luz do sol que domina o castelo de proa, eram livres, generosos, caridosos e repletos de boa vontade para com toda a marujada; embora alguns deles, para dizer a verdade, se revelassem tristes exceções — as quais, porém, sempre provam a regra.
Os rancheiros da coberta das macas, os varredores e responsáveis pelas escarradeiras — os chamados “fixos” em todas as divisões da fragata, a popa e proa — formavam um grupo de raciocínio bastante estreito e alma retraída; o que se deve, sem dúvida, a suas aviltantes funções. Isso se mostrava de forma ainda mais evidente nos casos dos abomináveis faxineiros noturnos e limpadores de fossa, os ignóbeis poceiros.
Os membros da banda marcial, em número de dez ou doze e que nada tinham para fazer, exceto manter a limpeza de seus instrumentos, executar alguma alegre ária vez por outra e agitar a circulação inerte nas veias entorpecidas do pobre e velho comodoro, eram o mais jubiloso grupo de rapazes que já se viu na vida. Eram portugueses embarcados nas ilhas de Cabo Verde, em ocasião da viagem de ida. Faziam suas refeições juntos; formando um grupo de convivas cuja alegria durante um jantar não seria superada nem mesmo por um grupo de jovens homens recém-casados, absolutamente satisfeitos com os negócios celebrados, uma vez colocados à prova.
Mas o que os deixa, agora, tão cheios de alegria? O que, senão seu alegre ofício, melodioso e marcial? Quem poderia ser um sovina infeliz e tocar um flajolé? Ou vil e desalmado, soprando vivamente pelas almas de mil soldados sua trombeta de latão? Talvez ainda mais eficaz na manutenção da leveza da banda fosse o pensamento reconfortante de saberem que, caso o navio entrasse em ação, estariam excluídos dos perigos de batalha. Nos navios de guerra, os membros da “música”, como a banda é chamada, são em geral não combatentes; e mui amiúde embarcam sob o entendimento expresso de que, tão logo a nau entre na linha de tiro dos canhões de um inimigo, é deles o privilégio de entocar-se no paiol de massame ou na carvoaria do navio. O que demonstra que são gente inglória, porém à qual não falta bom senso.
Veja os barões da praça-d’armas — lugares-tenentes, comissário do almoxarife, oficiais-fuzileiros, mestre de navegação —, todos eles cavalheiros de semblante frio e narizes de corte aristocrático. Por que isso? Quem pode negar que, depois de terem por tanto tempo vivido no mais elevado da carreira militar, servidos por uma multidão de camareiros e empregados servis, e desde sempre acostumados a mandar a torto e a direito, quem pode negar ser essa a razão de seus narizes terem se tornado finos, pontudos, aquilinos, aristocraticamente cartilaginosos? Mesmo o velho Cutícula, o cirurgião, tinha um nariz romano.
Mas eu nunca fui capaz de explicar a razão de nosso encanecido primeiro lugar-tenente ser um tanto penso; quero dizer, um de seus ombros era desproporcionalmente caído. E quando percebi que praticamente todos os primeiros lugares-tenentes que vira noutros vasos de guerra, além de muitos segundos e terceiros lugares-tenentes, eram igualmente tortos, entendi que devia existir alguma lei geral responsável pelo fenômeno; e empenhei-me em desvendá-la como um problema de interesse. Por fim, cheguei à conclusão — que ainda sustento — de que usar por tanto tempo uma só dragona (pois é apenas a uma que sua patente os qualifica) era a chave infalível para tal mistério. E, quando se reflete sobre o fato tão conhecido de que muitos lugares-tenentes do mar chegam à velhice e à decrepitude sem alcançar o posto de capitão e receber as duas dragonas que lhes devolveriam o devido equilíbrio dos ombros, a razão acima mencionada não parecerá descabida.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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