Palmeta,
o servente de artilheiro, era representativo de uma classe a bordo do
Neversink bastante interessante para ser deixada à popa, sem
qualquer comentário, na esteira veloz destes capítulos.
Como
se viu, Palmeta era cheio de incontáveis caprichos; era, ademais, um
senhorzinho mal-humorado, amargo, intragável e inflamável. Assim
também eram todos os membros da divisão de artilharia, incluindo os
dois subchefes do artilheiro e todos os seus serventes. Todos tinham
a mesma pele marrom-escura, seus rostos mais pareciam peças de
presunto defumado. Eles passavam quase todo o tempo grunhindo e
resmungando em meio às peças, correndo de um lado para o outro
entre canhões, afastando os marinheiros das armas, e lançando
imprecações e maldições como se suas consciências se tivessem
crestado em pólvora e se tornado calosas por costume do ofício. Era
um grupo de homens bastante desagradável; em especial Escorva, um
dos subchefes, de voz fanha e lábio leporino; e Cilindro, seu
assistente gago de pés tortos. Mas você sempre vai notar que a
divisão de artilharia de todo navio de guerra é invariavelmente
composta de homens mal-humorados, feios e briguentos. Quando, certa
feita, visitei um navio de linha de batalha britânico, a divisão de
artilheiros ia de um lado para o outro, lustrando suas baterias, as
quais, em respeito ao capricho do almirante, tinham sido pintadas de
branco como neve. Correndo nervosamente entre os imensos canhões de
trinta e duas libras e dirigindo comentários ferinos aos
marinheiros, quando não os desferiam entre si, lembraram-me um
enxame de vespas negras zunindo em torno de fileiras de túmulos
brancos num adro de igreja.
Ora,
não deve restar muita dúvida quanto ao fato de que permanecer por
tanto tempo em meio aos canhões é o que torna o grupo dos
artilheiros tão intratável e briguento. Houve ocasião, para nosso
grande prazer, em que isso se provou verdadeiro a toda a companhia da
gávea maior. Um ótimo companheiro de gávea, um dos mais alegres e
gregários do grupo, teve a oportunidade de ser promovido ao posto de
servente de artilheiro. Poucos dias depois, alguns de nós, homens da
gávea maior, seus velhos conhecidos, saímos para visitá-lo,
enquanto ele fazia uma de suas rondas regulares pelos canhões sob
sua responsabilidade. Contudo, em vez de nos saudar com sua
costumeira alegria e contando suas boas piadas, para nosso
divertimento, não fez muito mais que grunhir; e por fim, quando nos
queixamos de seu mau humor, tomou de um longo soquete negro e
levou-nos ao convés principal, ameaçando nos denunciar se
voltássemos a tratá-lo com intimidade.
Concluíram
meus companheiros de gávea que a espantosa metamorfose era efeito
produzido sobre uma personalidade fraca e sem valor, subitamente
elevada do nível da marujada comum à nobre posição de oficial
subalterno. Não obstante eu tenha visto tais efeitos produzidos
sobre alguns membros da tripulação, em casos similares, fato é que
neste eu sabia que não era isso; a razão era unicamente sua relação
com aqueles vis, irritadiços e mal-humorados canhões; e, mais
especialmente, por ele estar sujeito às ordens daqueles dois
deformados bacamartes, Escorva e Cilindro.
A
verdade parece ser, de fato, que todas as pessoas deveriam ser
bastante cuidadosas ao eleger seus ofícios e atividades; muito
cuidadosas em se certificar de que se acercam de objetos alegres e de
aspecto agradável; bem como de sons tranquilizadores e harmoniosos.
Mesmo os pendores angelicais não estão livres, amiúde, de pontas
cortantes como as de uma serra; da mesma forma, muitas doces
correntes de compaixão azedam no coração das pessoas com a má
escolha de uma profissão e a ausência de paisagens aprazíveis em
torno de si. Os jardineiros são pessoas de diálogo quase sempre
afável; cuidado, porém, com os subchefes de artilharia, os
vigilantes de arsenal e os solitários guardas de farol. E embora
seja possível notar, de modo geral, que as pessoas que habitam
arsenais e faróis tentam cultivar uns poucos vasos de flor ou uns
poucos pés de repolho em hortas, de modo a manter, quiçá, alguma
alegria em seus espíritos; o resultado é sempre nulo — pois estar
em meio a canhões e mosquetes faz com que os botões das primeiras
embolorem; e, ademais, como os repolhos poderiam prosperar num solo
cujo húmus advém das quilhas destruídas de naus afundadas?
A
qualquer homem que, por uma infeliz e já inapelável escolha de
profissão, sinta o próprio humor azedar, há de ser conselho válido
tentar contrapor essa infelicidade enchendo seus aposentos de
paisagens felizes e sons agradáveis. No verão, é possível colocar
uma harpa eólica em sua janela sem que isso lhe custe muito; uma
concha marinha pode permanecer sobre o aparador da lareira, para ser
levada ao ouvido e acalmá-lo com seu contínuo acalanto, sempre que
se sentir acometido de um ataque de tristeza. Para os olhos,
recomenda-se uma poncheira alegremente pintada ou uma caneca
holandesa — não se preocupe em enchê-la. Esta poderia ser
colocada num suporte na parede. Para dirimir o tédio, serão
igualmente de boa serventia uma concha de prata, um galheteiro de
mesa decorado, uma imponente garrafa de vinho — enfim, qualquer
coisa que cheire a comes e bebes. Mas talvez o melhor de tudo seja
uma prateleira de livros alegremente encadernados contendo comédias,
farsas, canções e romances alegres. Não é preciso abri-los;
apenas tenha os títulos aos olhos. Para tanto, O peregrino Pickle
é um bom livro; assim como Gil Blas e Goldsmith.
Mas,
dentre toda a mobília de quarto que existe no mundo, o melhor para
curar maus humores e cultivar os bons é a visão de uma bela esposa.
Se tem filhos em fase de dentição, contudo, é mister que ela e a
criança permaneçam o mais afastadas possível, de preferência no
andar superior da casa — no mar, tal lugar seria a gávea do mastro
de gata. Crianças em fase de dentição são o diabo para o humor de
um pai de família. Conheci três pais de família promissores
completamente destruídos nas mãos de suas mulheres por conta de
crianças em tal condição, cuja inquietação calhou de piorar à
época por causa da gripe intestinal. Com o coração em frangalhos e
o lenço aos olhos, segui esses três jovens e infelizes pais de
família, um após o outro, no caminho de seus túmulos prematuros.
Cenas
de fofoca alimentam fofoca. Quem mais linguarudo que atendentes de
hotel, mulheres feirantes, leiloeiros, donos de bar, farmacêuticos,
repórteres, amas e todos os que vivem em multidões alvoroçadas ou
estão presentes a cenas de linguarudo interesse?
A
solidão alimenta a melancolia; isso todos sabem; quem mais taciturno
que a raça dos escritores?
Uma
quietude interior forçada em meio a grande comoção exterior enseja
pessoas rabugentas. Quem mais rabugento que um guarda-freios de
ferrovia, um condutor de barco a vapor, um timoneiro ou um
encarregado de tear mecânico num moinho de algodão? São pessoas
que precisam manter a paz enquanto trabalham, deixando que as
máquinas tagarelem à vontade sem se permitir uma sílaba que seja.
Essa
teoria da assombrosa influência de sons e panoramas habituais sobre
o temperamento humano foi sugerida por minhas experiências a bordo
de nossa fragata. E embora tome o exemplo fornecido por nossos
subchefes de artilharia — e, em especial, aquele que outrora fora
nosso companheiro de gávea — como de longe o mais forte argumento
em favor da teoria geral; fato é que todo o navio estava repleto de
exemplos dessa verdade. Que homens eram mais progressistas, altivos,
alegres, agradáveis, flexíveis, corajosos, dados ao divertimento e
à galhofa, do que os homens das gáveas de proa, de gata e do mastro
principal? A razão de sua disposição progressista era que se lhes
ordenava diariamente que vagassem com liberdade pelo cordame. E a
razão de sua altivez de espírito era que permaneciam nas alturas,
acima dos tumultos menores, das preocupações irritantes e
insignificâncias do convés abaixo.
E
estou convencido, no mais íntimo de minha alma, de que se deve a eu
ter sido gajeiro do mastro principal, e, em especial, ter estado
lotado na verga mais alta da fragata, a verga de sobrejoanete grande,
o fato de, neste momento, ser capaz de oferecer um relato livre,
amplo, direto, panorâmico e, mais do que tudo, imparcial sobre nosso
mundo flutuante; nada escondendo; nada inventando; tampouco adulando
ou ferindo quem quer que seja; mas distribuindo a todos — comodoro
ou aspirante mensageiro — seu quinhão preciso de descrições e
merecimentos.
A
razão da jovial alegria desses homens de gávea era que sempre
estavam com os olhos voltados ao azul infinito, ondulado, sorridente
e ensolarado do mar. Não menciono, em sentido inverso ao desta
teoria, os dias tempestuosos, quando o rosto do oceano se fazia negro
e sombrio, e alguns de nossos homens ficavam mal-humorados e
preferiam sentar-se a sós. Pelo contrário, isso apenas reforça o
que afirmo. Pois mesmo em terra firme são muitas as pessoas
naturalmente alegres e de coração feliz que, sempre que os ventos
outonais começam a soprar e rugir por entre as chaminés, ficam
imediatamente impacientes, irritadiças e aborrecidas. O que é mais
suave do que uma boa e velha cerveja? O trovão, porém, tornará
amargo mesmo o melhor malte já fermentado.
Os
fiéis do porão de nossa fragata, os trogloditas, que viviam em
subsolos repletos de alcatrão e nas cavernas de sob a coberta das
macas, eram, em sua indiscutível maioria, homens soturnos de
perspectivas bastante amarguradas do mundo; um deles era um amistoso
calvinista. Enquanto os veteranos da âncora d’esperança, que
passavam seu tempo sob a brisa revigorante do mar e à luz do sol que
domina o castelo de proa, eram livres, generosos, caridosos e
repletos de boa vontade para com toda a marujada; embora alguns
deles, para dizer a verdade, se revelassem tristes exceções — as
quais, porém, sempre provam a regra.
Os
rancheiros da coberta das macas, os varredores e responsáveis pelas
escarradeiras — os chamados “fixos” em todas as divisões da
fragata, a popa e proa — formavam um grupo de raciocínio bastante
estreito e alma retraída; o que se deve, sem dúvida, a suas
aviltantes funções. Isso se mostrava de forma ainda mais evidente
nos casos dos abomináveis faxineiros noturnos e limpadores de fossa,
os ignóbeis poceiros.
Os
membros da banda marcial, em número de dez ou doze e que nada tinham
para fazer, exceto manter a limpeza de seus instrumentos, executar
alguma alegre ária vez por outra e agitar a circulação inerte nas
veias entorpecidas do pobre e velho comodoro, eram o mais jubiloso
grupo de rapazes que já se viu na vida. Eram portugueses embarcados
nas ilhas de Cabo Verde, em ocasião da viagem de ida. Faziam suas
refeições juntos; formando um grupo de convivas cuja alegria
durante um jantar não seria superada nem mesmo por um grupo de
jovens homens recém-casados, absolutamente satisfeitos com os
negócios celebrados, uma vez colocados à prova.
Mas
o que os deixa, agora, tão cheios de alegria? O que, senão seu
alegre ofício, melodioso e marcial? Quem poderia ser um sovina
infeliz e tocar um flajolé? Ou vil e desalmado, soprando vivamente
pelas almas de mil soldados sua trombeta de latão? Talvez ainda mais
eficaz na manutenção da leveza da banda fosse o pensamento
reconfortante de saberem que, caso o navio entrasse em ação,
estariam excluídos dos perigos de batalha. Nos navios de guerra, os
membros da “música”, como a banda é chamada, são em geral não
combatentes; e mui amiúde embarcam sob o entendimento expresso de
que, tão logo a nau entre na linha de tiro dos canhões de um
inimigo, é deles o privilégio de entocar-se no paiol de massame ou
na carvoaria do navio. O que demonstra que são gente inglória,
porém à qual não falta bom senso.
Veja
os barões da praça-d’armas — lugares-tenentes, comissário do
almoxarife, oficiais-fuzileiros, mestre de navegação —, todos
eles cavalheiros de semblante frio e narizes de corte aristocrático.
Por que isso? Quem pode negar que, depois de terem por tanto tempo
vivido no mais elevado da carreira militar, servidos por uma multidão
de camareiros e empregados servis, e desde sempre acostumados a
mandar a torto e a direito, quem pode negar ser essa a razão de seus
narizes terem se tornado finos, pontudos, aquilinos,
aristocraticamente cartilaginosos? Mesmo o velho Cutícula, o
cirurgião, tinha um nariz romano.
Mas
eu nunca fui capaz de explicar a razão de nosso encanecido primeiro
lugar-tenente ser um tanto penso; quero dizer, um de seus ombros era
desproporcionalmente caído. E quando percebi que praticamente todos
os primeiros lugares-tenentes que vira noutros vasos de guerra, além
de muitos segundos e terceiros lugares-tenentes, eram igualmente
tortos, entendi que devia existir alguma lei geral responsável pelo
fenômeno; e empenhei-me em desvendá-la como um problema de
interesse. Por fim, cheguei à conclusão — que ainda sustento —
de que usar por tanto tempo uma só dragona (pois é apenas a uma que
sua patente os qualifica) era a chave infalível para tal mistério.
E, quando se reflete sobre o fato tão conhecido de que muitos
lugares-tenentes do mar chegam à velhice e à decrepitude sem
alcançar o posto de capitão e receber as duas dragonas que lhes
devolveriam o devido equilíbrio dos ombros, a razão acima
mencionada não parecerá descabida.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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