quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Quase

Meu táxi aproximava-se do túnel que leva para o Leme ou para Copacabana, quando olhei e vi a Igreja de Santa Teresinha. Meu coração bateu mais forte: reconheci dentro da carne da alma, que sentia na dor, reconheci que seria na igreja que eu poderia encontrar refúgio.
Despedi o táxi e senti que era com um andar humilde que eu entrava na penumbra fresca da igreja. Sentei-me num banco e ali fiquei. A igreja estava totalmente vazia. O seu cheiro de flores me envolvia e me sufocava brandamente. Pouco a pouco meu tumulto interior foi se transformando numa resignação melancólica: eu dava minha alma em troca de nada. Porque não era paz o que eu sentia. Sentia que o meu mundo havia desmoronado e que eu restara de pé como testemunha perplexa e incógnita.
Depois fui esquecendo minha dor e olhando os santos da igreja. Todos tinham sido martirizados: pois este é o caminho humano e divino. Todos tinham desistido de uma vida maior em prol de uma vida mais profunda e mais machucada. Todos não tinham “aproveitado” da vida única que nós temos. Todos tinham sido tolos, no sentido mais puro da palavra. E todos haviam sido perpetuados para sempre, para o nosso coração sedento de misericórdia. E por que, meu Deus, era tão necessário o sacrifício de nossos desejos mais legítimos? Por que a mortificação em vida?
Olhei a igreja vazia em busca de resposta e vi no centro da nave principal o caixão. Levantei-me, fui até ele. Lá estava deitada a figura de Santa Teresinha, com os pés cobertos de flores. Fiquei olhando.
Alguma coisa porém eu estranhava. É que sempre as imagens de Santa Teresinha representavam-na jovem e com flores na mão. E esta era uma Santa Teresinha tão velhinha que a pele parecia, como se diz, de pergaminho enrugado. Seus olhos estavam fechados, as mãos brancas cruzadas no peito, e as flores vivas e rubras rebentando como um grito de vida a seus pés.
A imagem não era de porcelana, isso logo vi. Mas de que material? Parecia cera. Cera, no entanto, derreteria ao calor das velas e do verão, não podia pois ser. Era um material que eu nunca tinha visto. Eu sabia que, se tocasse na santa, saberia de que ela era feita. Quando eu era pequena, nossa empregada Rosa, irritada porque eu mexia em tudo, costumava dizer: “Essa menina tem os olhos nas mãos, só sabe ver pegando.”
Eu só saberia ver pegando, mas sabia que se o padre entrasse e visse não havia de gostar. Olhei em torno de mim, a igreja continuava vazia, então furtivamente estendi a mão para tocar no rosto de Santa Teresinha.
Não pude completar o gesto porque do fundo da igreja apareceram duas moças que se encaminharam para o caixão e ali comigo ficaram. As duas moças tinham o ar aborrecido, e ficamos as três mudas ali. Até que uma disse para a outra:
Afinal de contas quando é que vem todo o mundo para o enterro de vovó? Ela não pode ficar morando na igreja!
Ouvi, ou melhor, mal ouvi, e entendi de súbito. De súbito toda pálida por dentro entendi que aquela não era Santa Teresinha e sim uma mulher morta. Uma mulher morta que eu quase havia tocado com meus dedos. Quase. Por um átimo de segundo eu fora interrompida pela chegada das netas da morta.
À ideia de que eu estivera a pique de pegar na morte, minhas pernas se enfraqueceram e mal caminhei até um banco onde me sentei meio inconsciente, meio desmaiada. Meu coração batia muito fora do lugar do coração: no pulso, na cabeça, nos joelhos, e no peito também.
Sei que embaixo do batom meus lábios deviam estar brancos. E eu mesma não entendia por que tanto susto ao quase tocar na morte – se a morte faz parte de nossa vida. Não se entende vida sem morte, no entanto eu quase desmaiara ao tocar no que era também minha. Eu tinha que sair daquela igreja e os pés me faltavam ao solo. Finalmente consegui uma força maior, levantei-me e sem olhar para nada saí.
Como explicar o que vi lá fora? Vertiginosa como eu estava, mais vertiginosa ainda fiquei vendo o sol aberto e uma alegria de abelha em flor, os carros passando, as pessoas todas vivas, vivas – só a velha morta e eu quase morta por ter aspirado as flores vermelhas aos pés da morte.
Na rua fiquei de pé muito tempo aspirando o cheiro que estar vivo tem. É uma mistura de carne, de corpo com gasolina, com vento do mar, com suor de axilas: o cheiro do que ainda não morreu.
Depois mandei parar um táxi e fraca, porém tão viva como um botão fresco de rosa, fui toda pálida para casa.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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