Existem muitas formas de se combater a
inércia existencial que adoece um indivíduo na metade aproximada da
vida, estágio conhecido popularmente como meia-idade. Mudar de
profissão? Poucos ousam, pois o risco é grande numa economia de
alto risco (de altos e baixos) tal qual a globalizada.
Mudar de cidade, de casa, de família e
de ciclo ajudam, mas o tédio pode voltar em maior proporção depois
que a novidade se dissipa. Mudar de barbeiro? A marca da maionese, o
sapato, a padoca e o carro? Não ajuda, já que não se mudou nada
profundamente. Mudar de time? Ousado demais. A mais radical delas.
Melhor evitar.
Mulheres mudam o cabelo, o nariz, o peito
e a barriga já há décadas. Homens começam a se perguntar se não
é um caminho: uma forma de reacender o interesse pela vaidade.
O problema: algumas mulheres entram na
clínica com rugas e saem com a orelha engolida e a testa
desaparecida. Homens agora se arriscam. A maioria apenas tinge o
cabelo, para espantar o grisalhar que aparece como um alerta.
Vestir-se como um garotão não funciona.
Ou você acha apropriado um sujeito de bom senso e na fila do
cardiologista usar uma calça larga caída, com a cueca aparecendo na
cintura? Mesmo que a cueca fosse Calvin Klein. Boné ainda vai.
Esconde a calvície, protege o tiozinho do sereno e dá um ar jovial.
Mas se bater um vento, a realidade revelada choca. Perigoso. A melhor
e mais barata maneira de rejuvenescer é alterar aquilo que ninguém
vê: o cérebro.
Marcondes acordou diferente um dia depois
da sua festa de 45 anos. Abriu os olhos e imaginou no teto o gráfico
em que a curva das vontades chegara ao topo e decairia com o tempo.
Agora, é amadurecer até a morte. Ficou na cama mais tempo do que o
normal, imobilizado pela constatação.
Automaticamente, caminhou de costas até
o banheiro, refazendo os passos que dera na noite anterior, apoiando
com cuidado os pés nas pegadas já apagadas da sua ida à cama.
Escovou os dentes da direita pra esquerda, invertendo a escovação
habitual.
Caminhou de costas até a copa, para o
seu café da manhã. Denise, a mulher, saíra antes. Foi a primeira
vez que Diogo e Maria, o casal de filhos gêmeos, pararam de brigar
pelo jornal. Surpreenderam-se depois que o pai abriu a geladeira,
sentou-se na mesa com o iogurte e disse: “Boa noite, durmam com os
anjinhos.”
Marcondes começou a ler o jornal de trás
para a frente. Lia os artigos do final para o começo. Só depois lia
a manchete e exclamava: “Ah, claro...” Evidentemente, Diogo e
Maria o imitaram, procurando desvendar a incógnita escondida naquele
gesto, e porque acharam que o pai lhes dava uma lição de vida.
No quarto, ele vestira a roupa que usara
na noite anterior. E saiu de casa. De costas. Entrou no carro e saiu
de ré da garagem. Foi de ré até o trabalho, causando um transtorno
pelas ruas do bairro. Ao entrar no elevador, disse: “Obrigado.” O
ascensorista apertou o andar num gesto mecânico e só depois
percebeu que seu conhecido passageiro entrara de costas. No andar do
escritório, Marcondes saiu e disse: “Bom dia. Seu time, hein?”
Na mesa, ele atendia o telefone com um “a
gente se fala”. Refez as tarefas do dia anterior. Almoçou o mesmo
prato no mesmo quilo do dia anterior. E no dia seguinte, revisitou os
mesmos lugares em que esteve no dia anterior ao anterior. E três
dias depois do início da sua extravagância, repetiu tudo o que
fizera três dias antes, só que na ordem inversa.
Todos os dias, refez o caminho de volta
da sua vida. Só que de táxi, pois cassaram a sua carteira de
motorista, depois de multas por andar de ré em vias expressas e
movimentadas. Revisitou lugares, reencontrou pessoas, releu livros,
como se o tempo abrisse uma pista num espelho, e Marcondes caminhasse
nela. De costas.
Muitos problemas surgiram devido à
rotina espalhafatosa. Quando Denise chegava com as compras, ele
enfiava tudo num carrinho, voltava ao supermercado, colocava na
esteira e revendia os produtos. Com o dinheiro na mão, ia até um
caixa eletrônico e o devolvia para a máquina, enfiando as cédulas
de uma em uma, até a mesma engolir todo o montante.
Declarado incapaz, Marcondes acabou
aposentado pelo escritório, abandonado pela mulher e pelos gêmeos,
que até hoje leem o jornal de trás para a frente. Ele nem se
importou, pois quis renamorar todas as garotas com quem saiu antes de
se casar. Não eram mais garotas, a maioria estava casada, mas
receberam com carinho aquele rapaz de antigamente que aparecia de
surpresa com um maço de flores, uma caixa de bombom, um colete de
lã, um cabelo pastinha e um romantismo démodé, porém
agradável.
Anette, viúva, até o renamorou. Mas não
aguentou o pique de sair todas as noites para dançar, assistir a
filmes nos antigos e gloriosos cinemas do centro, que agora só
exibem pornôs.
Aos 65 anos, Marcondes surpreendeu e fez
vestibular. Deu até entrevistas como personagem exótico. Passou a
frequentar a mesma faculdade que cursou aos 20 anos. Recebeu o mesmo
diploma.
Aos 80, sentava-se no banco de madeira da
escola estadual que frequentou no ginásio, sem perceber que a mesma
virara uma repartição pública indefinida, dirigida por
funcionários fantasmas. Aos 85, cantava no coral infantil no mesmo
coreto da praça preservada pelo patrimônio histórico. Coral de uma
voz e dois bêbados. Aos 90 anos, instalou-se num quarto na
maternidade em que nasceu, prédio já abandonado há tempos,
esqueleto ocupado por um grupo sem-teto radical. E lá ficou até
morrer.
Marcondes é considerado um homem
paredão: o bate e volta. No meio do caminho, resolveu voltar. Viveu
duas vezes a mesma vida. Recusou-se a envelhecer. Aprendeu duas vezes
as mesmas lições. Emocionou-se duas vezes pela mesma experiência.
Foi a forma mais original de alguém combater a inércia existencial.
Original e covarde.
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
Nenhum comentário:
Postar um comentário