segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Capítulo seis | Um pouco de cobra


A normalidade era mestiça entre aqueles que soam e os bichos. Quando tudo ainda estabelecia seus primeiros acordos, para medrarem e sobreviverem até suas maiores sortes e dignidades, todas as coisas dialogaram e dependeram de muitas misturas ou afastamentos. Eram recentes as últimas fecundações entre os que soam e os bichos, e ainda corria boato de temíveis ou ternas tentações. Por muito tempo e juízo, na intuição avisada, tantas femininas foram duplas de feras. Entregavam-se as filhas mais fecundas aos grandes predadores de modo a fazer paz, criar família e proteger a comunidade. As aldeias mantiveram sua prosperidade e novos curumins e curatãs foram sonhados devido à sensatez dessa valentia. Negociadas com as feras, depositadas nos mistérios dos predadores, as sedutoras femininas copulavam e ofereciam muita graça à cultura dos bichos. Por vezes, algumas podiam regressar, enviuvadas ou imprestáveis, com suas descendências repostas nas aldeias diante do aspecto abaeté. As maiores mestiçagens houve com seres canoros. Os abaeté são ansiedade de canto. A comunidade inteira é maturação disso.
Não fora a domesticação das plantas, a abundância da caça, o cheio dos mares, talvez houvesse necessidade de regressar aos acordos bravos com os bichos mais ferozes, cedendo as femininas às suas culturas, mensageiras da paz. Extasiadas com suas duplas femininas, as feras, como onça, tatu, coatá, tucano, jacaré, cobra ou maiores aranhas, suavizavam os modos de suas próprias aldeias. Levavam notícia de amizade com aqueles que soam e períodos longos de bonança se espalhavam pelas ilhas. Em algumas ocasiões, como sempre se contava, as femininas também partiam por compaixão ou fascínio. Eram honrosas suas vontades. Entoados os seus nomes nos rituais, maravilhavam na encantaria para sempre. Como Manhã de Chuva, que vivia sentindo pressa e pediu para partir com um caititu, por mais que um caititu nem fosse ameaça à aldeia e não tivesse particular gentileza às sensibilidades dos que soam. Outras femininas rogaram que se acordasse por outro, uma fera mais intensa ou fascinante, talvez um boto, mas ela respondia que se apoucava de chuva, era tentada pela partida e estava convencida daquela atracção. Quando partiu, a aldeia sentiu orgulho por que fizesse sentimento tão forte. Quando voltou, numa sobra de vida, encantou logo depois, entoando que fora feliz. O quase nada de ter ido fora bastante. Valera muito. Desde então, para intuir um duplo, os pajés escutam no coral o timbre de Manhã de Chuva que passa afinado numa doçura sempre certa. Pai Todo assim o fez quando abençoou que Boa de Espanto fosse dupla de Altura Verde. Foi Manhã de Chuva quem no coral indicou o apoio da encantaria.
Nas primeiras noites, quando a feminina se mudara para a maloca grande onde Altura Verde tinha chão, eram os dois estendidos igual a galhos enxutos sem movimento. Depois, como vegetação que parasita o galho caído, germinavam. Fremiam muito lento, mais tarde com outra intensidade. Então, moveram-se por completo e foi Altura Verde quem mexeu na feminina que, igual a sentir dor, gemeu. Mas sentira dor nenhuma senão, prazer.
Quando Honra eclodiu, seu nascimento libertou o corpo de Boa de Espanto e mais se mexeram nas noites e tudo se assemelhava à normalidade dos comuns. O corpo liberto de Boa de Espanto era belo e essa beleza era apreciada e havia muita gratidão entre um e outro, que viram o curumim crescer como quem o procurava anoitecer, mas ele apenas amanhecia. Apenas horrivelmente amanhecia.
Assim, Boa de Espanto confessou a Honra que ela mesma era um pouco de cobra. Talvez por isso seu corpo fosse tão sensual, tão belo entre os corpos todos das femininas. Queria convencer o filho de que também ela, mestiça, encontrara sentido e cabia na comunidade sem perder-se de ser abaeté. E Honra respondeu:
não sinto.
Estava rigorosamente nada convencido de que suas mestiçagens fossem de mesma dignidade. Para amigar as feras, se deram femininas de duplas por ser necessário. Já seu caso era distinto. Houvera nenhum acordo, senão violência. E fizera-se paz nenhuma. Criou maior fúria. Uma promessa de maior matança. Honra entoou que seu desejo era o de reconhecer o rosto branco por comparação com sua própria imagem. Se pais e filhos aproximam as feições, são imaginações cercanas, uma tendência de uma mesma coisa, podia ser que de entre todos os brancos que vivessem ele pudesse inequivocamente saber quem o feriu no ventre de sua mãe. E assim o escolher para a morte.
Quantos brancos podem haver, sagrada mãe.
Honra perguntou.
Boa de Espanto entoou:
muitos. Sagrada Lua Interior confia que mais de mil guerreiros. Alguns mais que os guerreiros abaeté. Mas estarão longe por maior terra, escorraçados das nossas ilhas e três mares, o lugar do começo e da bênção da Verdadeiríssima Divindade. Os brancos, Honra, são carniça. Caminham como mortos pelas matas. Mortos que não puderam encantar.
Eu vou encontrar o rosto de que descende o meu e vou atacar de súbito e cortar a cabeça. Trarei a cabeça mas não lhe cantarei, não dançarei nem tocarei flauta. Cobrirei sua boca de podridões e cuspirei e deitarei no lugar das piranhas que a devorem. Jamais o abrigarei. Sagrada mãe. Eu jamais o abrigarei ou lhe educarei a morte. É necessário que eu possa odiá-lo para o matar melhor. Para lhe sobreviver melhor.
Boa de Espanto entoou:
Pai Todo vai bater tua cara. Sentes torto. Entoas torto. O que será se súbito sopra o vento. Cala. Respeita a boca. Cala.
O guerreiro branco calou. Olhou a tarde quente. A comunidade absorta em suas tarefas sem qualquer angústia. Era o único abaeté em desassossego. O feio era o único abaeté em desassossego. Resolveu entoar:
obrigado, sagrada mãe. Se existirem mil guerreiros brancos, matarei mil guerreiros brancos e nunca mais uma feminina se verá ofendida do mesmo modo.
Quando anoitecia, entre os rituais dos fumos e dos cânticos, passando pelos que dançavam, Pai Todo buscou o guerreiro branco e o chefiou de o seguir. Subiram ao coto da figueira e imediatamente todos se silenciaram para escutar. O santo aguardou que se abeirassem também, e a comunidade foi sentando perto, fumando seus cachimbos importantes e curiosos. Então, o pajé explicou:
é ofício abaeté amar Honra. Sua transparência termina. Honra é tarde. Honra é guerreiro.
Assim o condecorou com a opacidade.
As femininas entreolharam-se inquietas e Altura Verde apertou Boa de Espanto
num abraço orgulhoso e melhor escutou. Pai Todo entoou:
conheci que todos nossos mortos amam Honra e nos obrigam a amar também. E conheci que ele será ensinado na língua inimiga do branco para ser mascarado de branco e trazer à nossa comunidade a informação sobre a multiplicação dessa malignidade e um ferro de matar num grito. A comunidade saberá o segredo desse grito e saberá matar igual, para proteger a verdadeiríssima vida de cada um. Este guerreiro está chamado para ser um herói. Isso comove a comunidade.
Pai Todo chefiou que a aldeia chorasse e a aldeia chorou.

*

Nessa alegria, Honra se mediu com tamanhos infinitos. Era crescido para sempre e começavam as danças em sua homenagem para legitimar sua opacidade. Não voltaria a ter de se declarar a ninguém. Tinha direito a seus segredos, seus silêncios, suas impaciências. Era agora complexo. Não valeria a pena que procurassem todos os seus motivos porque ele, chegado à idade adulta, era semelhante à Divindade, imaginava livre e estaria livre para seguir sua consciência e sensatez.
Na comoção por sua alegria, guerreiros e femininas abraçaram Honra e o levaram vezes sem conta aos corpos de seus pais, que deveriam rejeitá-lo em sinal de emancipação. E, de todas essas vezes, rejeitado, se reiterava que terminava sua submissão. Faltava apenas que entoasse o essencial. E Honra entoou:
sagrada mãe, assim lhe declaro meu amor.
E entoou:
sagrado pai, assim lhe declaro o meu amor.
Vinte passos às arrecuas, e o guerreiro branco mais entoou:
partirei um quase nada porque jamais poderei partir de tanto vos pertencer. Meus pais, meu santo, meu povo abaeté, nossa encantaria, sagrada Voz Coral, em toda a parte serei o lado, o dentro, o fora, o meio de cada um de vocês. Em cada palavra de minha boca haverá uma árvore da mata que inteira será raiz. E minha bravura é prometida desde o abraço até à morte do jacaré. Serei comovido e serei gentil. Lembrarei toda a vida e toda a vida servirei vossa guerra e vossa paz. Fumarei por vosso espírito. Fumarei no vosso espírito. Cortarei este pouco de cabelo para explicar ao corpo que vos obedece, por sangue e por carne, por vontade e por alegria, por sensatez e por amor. Deixem-me ir. Vou para depois da transparência. Serei pleno de minhas ideias. Quando calar, sobrará apenas a palavra adulto.
A promessa da encantaria se cumprira. O ovo de Boa de Espanto imaginara um guerreiro que fora capaz de a amar. Isso era bom para a mata. Isso era o sentido da mata. O sentido da vida.
Depois, o guerreiro branco foi preparado para seguir o igarapé pequeno, acima para a montanha, a caminho da aldeia subida, onde dois guerreiros tardios haviam capturado a língua do branco e a mantinham sob feitiço dentro de suas bocas. Para que não houvesse de ser abatido pelo veneno daquela língua, Honra teria de começar por fechar a toca do espírito, dividir numa mágica e entoar sem ofensa da Verdadeirissima Divindade. Honra teria de aprender a entoar por desprezo, sem abrigar na palavra, sem perigar de deitar fora do corpo, numa frase que soubesse expulsar seu espírito do corpo abandonado.
Bravo pela margem do igarapé acima, o feio sentia também escalar um clarão. Alguma coisa imensa era colocada diante de si e não queria descer jamais desse sentimento de estar progredindo para um golpe mais fundo. Progredia para a matança. Era como pensava. Que os tardios sapientes de tudo o fariam conhecer como ser guerreiro da mais justa matança. Por cada passo dado na mata, o jovem guerreiro considerava o começo do fim da humilhação, o começo do fim do branco. Ele pensava que passariam de mais de mil vezes dez a nenhum. Até que sobrasse nenhum e depois se limpasse das bocas abaetés sua língua e depois se parasse de contar sobre sua história, até que todas as ilhas e todos os mares estivessem salvos dessa presença feroz do mal, e esse mal fosse esquecimento eterno.
Ao caminhar pela mata, o guerreiro de corpo ocupado ia sempre em direcção ao ataque. Sua natureza estava eufórica por atacar.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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