O sentimento de insegurança com relação
aos bens pessoais a bordo do Neversink, instalado nas mentes
dos homens honestos por tudo que acima se relatou, curiosamente se
exemplificava no caso de meu pobre amigo Lemsford, jovem de gentis
hábitos e membro da guarda de popa. Travamos contato, eu e Lemsford,
logo no início da viagem. É curioso como somos certeiros no
encontro de espíritos de algum modo semelhantes aos nossos mesmo na
mais variada turba.
Lemsford era poeta; tão profundamente
inspirado pelo sopro da musa que nem mesmo todo o alcatrão e o
tumulto de uma fragata eram capazes de arrancar isso dele.
Como se pode sem muito esforço imaginar,
escrever versos na coberta dos canhões de um vaso de guerra é algo
bem diferente do que era para o gentil Wordsworth, na placidez de seu
retiro em Rydal Mount, em Westmorland.74 Numa fragata, não é
possível sentar e divagar às voltas com um soneto quando o coração
repleto dele o exige; apenas quando mais importantes deveres — como
estaiar as vergas ou rizar velas de sobrejoanete a popa e proa — o
permitem. Não obstante, cada fragmento de tempo sob o controle de
Lemsford foi por ele religiosamente dedicado às Nove Musas.75 Às
horas mais inoportunas, nós o víamos sentado, isolado de todos,
nalgum canto entre os canhões — uma caixa de munição diante de
si, pena à mão e olhos “revirando num fino e furioso frenesi”.
“Nasceu com problema, aquele ali?”;
“Ele tá tendo um ataque, num tá?”, eram as exclamações
mormente feitas pela tripulação menos culta. Alguns julgavam-no
feiticeiro; outros, louco; e os mais arejados de espírito, que se
tratava de um metodista ensandecido. Mas conhecendo bem, por
experiência, a verdade do dito segundo o qual “a poesia é, por si
mesma, o maior dos prêmios”, Lemsford escrevia; derramando épicos
inteiros, sonetos, baladas e acrósticos com uma facilidade que,
dadas as circunstâncias, me surpreendia. Muitas vezes ele recitou-me
suas efusões; e estas de fato valiam a atenção. Lemsford dispunha
de engenho, imaginação, sentimento e humor abundantes; e, a partir
do próprio ridículo com que alguns o julgavam, exercitava
maravilhosamente sua métrica, o que fazia o deleite, ora nosso, ora
do grupo seleto com que eram compartilhados.
Contudo, o sarcasmo e a mofa que mui
amiúde dirigiam a meu amigo poeta faziam-no por vezes sublevar-se em
fúria; e, em tais ocasiões, o arrogante escárnio que ele lançava
a seus oponentes era a prova cabal de que possuía aquele atributo, a
irritabilidade, quase universalmente imputada aos devotos adeptos do
Parnaso e das Musas.
Meu nobre capitão, Jack Chase, quase
sempre colocava Lemsford sob sua proteção e com bravura tomava seu
partido contra grupos inteiros de adversários. Muito frequentemente,
convidando-o a subir à gávea, pedia ao poeta que recitasse algumas
de suas criações; às quais prestava enorme atenção, como Mecenas
diante de Virgílio com uma Eneida em mãos. Tomando a
liberdade de um admirador, vez por outra o capitão da gávea
criticava com gentileza o poema, sugerindo algumas poucas e mínimas
alterações. E de fato meu nobre Jack, com todo o bom-senso, gosto e
humanidade que lhe eram inerentes, não era mal qualificado para
assumir a função de digestivo literário — isto é, mostrando-se
por fim leve, ainda que indigesta fosse a crítica.
Ora, para Lemsford era motivo de grande
aflição e cuidado, além de infinda fonte de dificuldades, a
preservação de seus manuscritos. Ele tinha uma caixinha, mais ou
menos do tamanho de uma nécessaire pequena, e fechada com um
cadeado, na qual guardava seus papéis e artigos de papelaria. Tal
caixa, evidentemente, não podia ser mantida em seu saco ou maca,
pois, de uma forma ou de outra, ele só poderia ir a ela uma vez por
dia. Era preciso preservá-la à mão para qualquer momento. Então,
quando não a estava usando, era obrigado a escondê-la longe dos
olhos de todos, onde fosse possível. E, de todos os lugares do
mundo, um navio de guerra, acima de seu porão, é o espaço que
menos recessos reserva. Quase todo centímetro é ocupado; quase todo
centímetro está à vista de todos; e quase todo centímetro é
continuamente frequentado e inspecionado. Acrescente-se a tudo isso a
hostilidade mortal de toda a tribo de subalternos do navio — do
mestre-d’armas, dos cabos navais e dos guardiões de contramestre
—, tanto ao poeta quanto à sua caixa. Eles a odiavam como se fosse
a própria caixa de Pandora, abarrotada até a tampa de furacões e
tempestades. Eles buscavam os esconderijos de Lemsford como cães de
caça, e não lhe davam paz, dia e noite.
Apesar de tudo, os enormes canhões de
vinte e quatro libras do convés principal ofereciam um promissor
esconderijo para a caixa; e, assim, esta não raro era colocada atrás
das carretas dos canhões, entre as talhas laterais, sua cor negra
misturando-se ao ébano que tingia o aço das armas.
Mas Palmeta, um dos serventes de peça de
artilharia, tinha olhos de doninha. Palmeta era um velho marinheiro
de fragata, de baixa estatura (no máximo, um metro e meio) e um
semblante que mais parecia um ferimento de tiro depois de
cicatrizado. Era incansável no cumprimento de suas funções, que
consistiam em cuidar de uma divisão de canhões, composta por dez
das já mencionadas peças de vinte e quatro libras. Alinhadas contra
a amurada do navio com espaçamento regular, tais peças não pouco
lembravam uma coudelaria de cavalos negros em suas baias. Em meio a
esse haras de aço, o pequeno Palmeta corria sem parar de um lado
para o outro, vez por outra polindo os canhões com um trapo como
quem os penteasse, ou espantando com uma escovada as moscas. Para
Palmeta, a honra e a dignidade dos Estados Unidos da América
pareciam indissociáveis da manutenção do asseio de suas baterias,
reluzentes e imaculadas. Ele próprio sempre se apresentava preto
como um escovão de chaminé, tal era o cuidado que desvelava em
esfregá-las com tinta preta. Por vezes, saía pelas portinholas para
espiar suas bocas como um macaco faria com garrafas, ou um dentista
com seus pacientes. Com igual frequência, escovava o ouvido do
canhão com um tufo de estopa, como um barbeiro chinês em Cantão
que limpasse a orelha de um cliente.
Tão dedicado ele se mostrava que era de
se lamentar que não fosse capaz de ficar ainda mais baixo e pequeno
a ponto de rastejar pelo ouvido do canhão e, examinando o interior
da peça, emergir por fim à boca. Palmeta jurava por sua artilharia
e dormia ao seu lado. Maldito era quem ele encontrasse encostado em
suas peças ou de algum modo conspurcando-as. Palmeta parecia tomado
da louca fantasia de que seus canhões de vinte e quatro libras eram
frágeis e podiam quebrar, como tubos de ensaio.
Ora, diante da vigilância de Palmeta,
como poderia meu pobre amigo poeta ter a esperança de escapar com
sua caixa? Vinte vezes por semana ela era atacada com um “aqui está
a maldita caixa de remédios de novo!”, seguida de uma sonora
ameaça, de que seria lançada ao mar da vez seguinte, sem qualquer
aviso ou bênção de um padre. Como muitos poetas, Lemsford sofria
dos nervos; e em tais ocasiões tremia feito vara. Certa feita, veio
ele a mim — o semblante inconsolável —, dizendo que sua caixa
desaparecera; que procurara por ela em seu esconderijo, mas não a
encontrara.
Perguntei-lhe onde ela estava escondida.
“Entre os canhões”, respondeu ele.
“Então pode estar certo, Lemsford, de
que Palmeta deu cabo dela.”
O poeta foi direto a Palmeta. Mas este
nada sabia da caixa. Por dez dias o poeta não teve paz, dividindo
seu tempo livre entre amaldiçoar Palmeta e lamentar a perda.
Acabou-se o mundo, deve ter pensado: desde o Dilúvio, calamidade
maior não houve; foram-se meus versos.
Palmeta, descobriu-se posteriormente,
dera com a caixa; e, contrariando as expectativas, não a destruiu; o
que, sem dúvida, levou Lemsford a inferir que a Providência se
interpusera, onividente, para preservar à posteridade sua
inestimável caixa. Esta foi encontrada, ao fim e ao cabo, no chão,
aos olhos de todos, próxima à cozinha do navio.
Lemsford não era o único literato a
bordo do Neversink. Havia outros três ou quatro homens que mantinham
diários de viagem.84 Um desses diaristas enfeitou seu trabalho —
escrito num grande livro-caixa — com várias ilustrações
coloridas de portos e baías frequentadas pela fragata, e esboços em
giz de cera baseados em cômicos incidentes ocorridos a bordo da
própria fragata. Tal homem promovia, entre os canhões, frequentes
leituras de passagens de seu livro a um admirável círculo dos mais
refinados marinheiros, que declaravam seu desempenho um milagre da
arte. E, como o autor lhes tivesse dito que tudo seria impresso e
publicado tão logo encerrada a viagem, competiam entre si à procura
de assuntos de interesse a serem incorporados em capítulos
subsequentes. No entanto, sob rumores espalhados alhures, segundo os
quais tal diário seria ameaçadoramente intitulado A viagem do
Neversink, ou Uma canhonada contra os abusos da Marinha;
e, tendo chegado aos ouvidos da praça-d’armas a notícia de que a
obra em questão trazia reflexões de alguma forma depreciativas à
dignidade dos oficiais, o volume foi apreendido pelo mestre-d’armas,
munido de mandado assinado pelo capitão. Dias depois, um imenso
prego lhe foi cravado de capa a capa e dobrado na ponta; e o livro,
selado para todo o sempre, foi entregue às profundezas do mar.
Talvez o argumento das autoridades na ocasião fosse que a obra feria
certa cláusula dos Artigos de Guerra, sob a qual se proibia qualquer
pessoa da Marinha de aviltar um membro da mesma corporação, o que o
volume extraviado indubitavelmente fazia.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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