A aula de trabalhos manuais no grupo era
um tédio. Um pedaço de tábua, o mapa de Minas desenhado, a gente
passava a aula martelando um prego dentro dos limites do desenho, eu
não sabia para que — só depois fiquei sabendo que os furos eram
para reter a argila que viria depois. O produto final seria um mapa
de Minas em alto relevo. Mas que menino estava interessado num mapa
de Minas em relevo? Minha cabeça estava cheia de projetos mais
audazes. Queria participar da guerra. Os gibis estavam cheios de
heróis meninos, o Águia Fantasma, piloto que sempre derrotava os
japoneses. Fiz canhões e espingardas com bambu e elástico. Bolei e
construí uma mira de avião bombardeiro com bambu e um espelhinho.
Também com um bambu fiz periscópios. E catapultas que lançavam
pedras. Aprendi o uso das ferramentas e leis de física. Aprendi que
o atrito produz calor e que o calor amolece os metais. Como aprendi?
Fixando as rodeiras dos meus carros de rolimã (que não eram de
rolimã...) com pregos grossos. Bastava que o carro corresse por
alguns metros, eu em cima, para que os pregos entortassem. Ficavam
quentes. O calor amolecia os metais duros. Conclusão: as rodas do
carro não podem ser fixadas com pregos, por grossos que sejam.
Aprendi as leis da luz fazendo aparelhinhos de cinema. Constavam de
uma caixa de sapatos, um buraco na frente, uma lâmpada dentro. A
lente? Era fabricada com lâmpadas queimadas. Eram abertas pela
rosca, seu conteúdo esvaziado, e cheias de água. Eram dependuradas
na frente do buraco por onde passava a luz. Aprendemos logo que o
filme, feito com desenhos a nanquim sobre uma tira de papel celofane,
tinha de ser colocado de cabeça para baixo. E brincava de fazer
bolhas de sabão: água morna numa caneca, sabão preto, um canudinho
feito com talo de mamoeiro.
Equilibrava um cabo de vassoura no
queixo. Sobre isso fazíamos campeonato. Uns loucos entravam dentro
de um pneu que um outro ia rodando morro abaixo. Eu nunca tive
coragem. E fazíamos bandas de música com instrumentos feitos com
talos de aboboreira. Talos finos, som fino. Talos grossos, som
grosso. Havia os talos retos e os talos retorcidos. E lá íamos nós,
marchando, cada um soprando do jeito que o talo permitia.
Eu queria muito ter uma sinuquinha.
Comprar, nem pensar! Primeiro, eu não tinha dinheiro. Segundo, não
havia sinuquinhas para serem compradas. Tinham de ser feitas. O que
demandava tempo, paciência e habilidade. Primeiro era preciso
encontrar uma tábua bem lisa. Depois, juntar dinheiro para comprar
um pedaço de flanela que seria usado para fazer o forro da
sinuquinha. A seguir, as madeiras para as tabelas. E as tiras de
borracha que seriam colocadas nelas. Por fim, meias velhas que
serviriam de caçapas. Eu já tinha tudo que precisava para fazer
minha sinuquinha. Resolvi fazê-la num fim de semana. Sozinho. Mas aí
chegou o meu pai. Resolveu ajudar-me, sem que eu tivesse pedido.
Aconteceu o desastre. Ele não sabia que o brinquedo, para ser
divertido, tem de ser difícil. A bola tem de passar justinha no
buraco da caçapa. Se o buraco for grande demais é fácil acertar.
Quem começa o jogo vai até o fim, sem errar. Mas acho que ele
raciocinou de outra forma: “Se um buraco apertado, difícil de a
bola passar nele, dá à criança um quantum de alegria, um
buraco largo deve dar muito mais alegria”. Pegou o serrote e
começou a fazer buracos enormes nos ângulos da tábua. Eu
implorava: “Não, pai, não...”. “Fica quieto, menino, eu sei o
que estou fazendo...” Ele fez a sinuquinha. Mas nunca a usei. Não
tinha graça. Era muito fácil.
Mas, de todos os brinquedos, aquele que
eu mais amava era o balanço. Tão fácil de fazer. Basta ter uma
árvore com um galho forte na horizontal e uma corda. Nos brinquedos
comuns a criança brinca com o brinquedo. No balanço é o brinquedo
que brinca com a gente. O corpo inteiro goza. O vento na cara, o frio
na barriga...
O meu balanço estava amarrado num galho
de uma ameixeira. Quando não se sabe ainda, é preciso a colaboração
de um amigo que nos empurre. Depois a gente aprende o segredo. Com
sucessivos deslocamentos do centro de gravidade do corpo, o balanço
voa. Ah! A alegria de tocar com a ponta do pé uma folha num galho
alto! Eu fazia um monte de folhas secas à frente do balanço. A
aventura que exigia coragem era pular do balanço quando ele
estivesse no alto para cair no monte de folhas secas.
Depois de velho, psicanalista, dei-me
conta de que um balanço é um excelente remédio para a depressão.
Por experiência própria. Bastava que eu balançasse para que a
tristeza sumisse. Balanço e tristeza são incompatíveis. No balanço
não há passado, não há futuro. É só o presente.
Desde então, por onde vou, anuncio: “É
preciso fazer balanços”. Nos parques infantis os balanços são só
para crianças até doze anos de idade. Sinto-me excluído. As
prefeituras fariam bem em fazer, nas praças, balanços para os
adultos. Um adulto que se assenta num balanço é porque perdeu a
vergonha. E perder a vergonha é o início da felicidade.
Recebi a foto de um senhor respeitável
balançando num balanço que mandou fazer no seu quintal depois que
me ouviu falar sobre os poderes mágicos dos balanços. Tem a cara de
uma criança. Os balanços fazem rejuvenescer.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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